quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Mark Twain, "O homem que corrompeu Hadleyburg"



          Do papel de escritor de entretenimento popular, Mark Twain teve não só consciência mas também orgulho. Em 1889, escreve numa carta a Andrew Lang:

Jamais procurei em nenhum caso tornar cultas as classes cultas. Não estava preparado para fazê-lo: faltavam-me tanto os dotes naturais quanto a preparação. Ambições neste sentido não tive nunca, mas andei sempre em busca de caça com maior porte: as massas. Raramente me propus instruí-las, porém dei o melhor de mim para diverti-las. Diverti-las e basta: já teria satisfeito minha maior e constante ambição.

Como profissão de ética social do escritor, essa de Mark Twain tem pelo menos o mérito de ser sincera e verificável, mais que tantas outras cujas ambiciosas pretensões didáticas obtiveram e perderam crédito nos últimos cem anos: homem de massa ele era de fato, e lhe é completamente estranha a ideia de ter de se inclinar de um patamar mais alto para dirigir-se ao seu público. E hoje, reconhecendo-lhe o título de folk-writer ou contador de histórias da tribo — aquela tribo multiplicada em escala imensa que é a América provinciana de sua juventude —, não é só o mérito de divertir que se lhe atribui, mas o de ter reunido um estoque de materiais de construção do sistema mitológico e fabular dos Estados Unidos, um arsenal de instrumentos narrativos de que a nação necessitava para ter uma imagem de si mesma.
Como profissão estética, ao contrário, desmentir-lhe o filistinismo declarado é mais difícil, e mesmo os críticos que elevaram Mark Twain ao lugar que merece no panteão literário americano admitem como evidência que ao seu talento espontâneo e um tanto desengonçado só faltava um interesse pela forma. Contudo, o grande sucesso twainiano continua sendo um exercício de estilo e até com dimensão histórica: o ingresso na literatura da linguagem falada americana, com a estridente voz recitante de Huck Finn. Trata-se de uma conquista inconsciente, de uma descoberta fruto do acaso? Toda a sua obra, embora desigual e indisciplinada, indica o contrário, como pode resultar claro hoje que as formas da comicidade verbal e conceitual — do mote espirituoso ao nonsense — são objeto de estudo enquanto mecanismos elementares da operação poética, e o humorista Mark Twain se apresenta perante nós como um incansável experimentador e manipulador de engenhos linguísticos e retóricos. Aos vinte anos, quando ainda não havia escolhido seu bem-sucedido pseudônimo e escrevia num jornalzinho de Iowa, seu primeiro êxito foi a linguagem cheia de asneiras ortográficas e gramaticais das cartas de uma personagem caricatural.
Justamente por ser obrigado a escrever ininterruptamente para os jornais, Mark Twain está sempre à procura de novas invenções formais que lhe permitam extrair efeitos humorísticos de qualquer tema, e o resultado é que, se hoje a sua historieta do Jumping frog nos deixa frios, quando ele a retraduz em inglês de uma versão francesa ainda nos diverte.
Prestidigitador da escritura, não segundo uma exigência intelectual mas conforme sua vocação de entertainer de um público que era tudo menos refinado (e não esqueçamos que sua produção escrita se acopla com uma intensa atividade de conferencista e debatedor itinerante, pronto a medir o efeito de seus achados nas reações imediatas dos ouvintes), Mark Twain segue procedimentos que afinal não são muito diferentes daqueles do autor de vanguarda que faz literatura com a literatura: basta colocar-lhe entre as mãos qualquer texto escrito e ele se põe a brincar até que dali apareça um conto. Mas deve ser um texto que não tenha nada a ver com a literatura: um relatório para o ministério sobre um fornecimento de carne enlatada ao general Sherman, as cartas de um senador do Nevada em resposta aos seus eleitores, as polêmicas locais dos jornais do Tennessee, as rubricas de um jornal agrícola, um manual alemão de instruções para evitar raios e até uma declaração para o imposto de renda.
Na base de tudo encontra-se sua opção pelo prosaico contra o poético: mantendo-se fiel a esse código, ele consegue pela primeira vez dar voz e forma à surda consistência da vida prática americana — sobretudo nas obras-primas da saga fluvial Huckleberry Finn e Life on the Mississippi — e por outro lado é levado — em muitos dos contos — a transformar essa espessura cotidiana numa abstração linear, num jogo mecânico, num esquema geométrico. (Uma estilização que vamos reencontrar, trinta ou quarenta anos depois, traduzida na linguagem muda da mímica, nas gags de Buster Keaton.)
Os contos que têm por tema o dinheiro são bem indicativos desta dupla tendência: representação de um mundo que não dispõe de outra imaginação além da econômica, em que o dólar é o único deus ex machina atuante e ao mesmo tempo demonstração de que o dinheiro é algo de abstrato, cifra de um cálculo que só existe no papel, medida de um valor inatingível em si mesmo, convenção linguística que não remete a nenhuma realidade sensível. Em “The man that corrupted Hadleyburg” (1899), a miragem de um saco de moedas de ouro desencadeia a degradação moral de uma austera cidade de província; em “The $ 30,000 bequest” (1904), uma herança hipotética é gasta imaginariamente; em “The £ 1,000,000 bank-note” (1893), uma cédula enorme atrai a riqueza sem necessidade de ser investida e nem trocada. Nas narrativas do século XIX, o dinheiro tivera um lugar importante: força motriz da história em Balzac, pedra de toque dos sentimentos em Dickens; em Mark Twain o dinheiro é jogo de espelhos, vertigem do vazio.
Do seu conto mais famoso é protagonista a pequena cidade de Hadleyburg, “honest, narrow, self-righteous, and stiggy”: honesta, estreita, hipócrita e avarenta. Uma cidadania inteira sintetizada em seus dezenove mais respeitados notáveis e estes dezenove resumidos em mr. Edward Richards e senhora, o casal cujas metamorfoses interiores acompanhamos, ou melhor, a revelação deles a si próprios. Todo o restante da população é coro, coro no verdadeiro sentido da palavra, enquanto acompanha o desenvolvimento da ação cantando pequenas estrofes, e com um corifeu ou voz da consciência cívica que é chamado anonimamente de “the saddler”, o seleiro. (De vez em quando assoma um diabinho inocente, o vagabundo Jack Halliday, única concessão marginal à cor local, erradia lembrança da saga do Mississippi.)
Também as situações são reduzidas àquele mínimo que serve ao mecanismo do conto para funcionar: um prêmio caído do céu para Hadleyburg — 160 libras de ouro, equivalentes a 40 mil dólares — do qual não se conhece nem o doador nem o destinatário, mas que na realidade — captamos desde o início — não é um dom e sim uma vingança e uma burla para desmascarar aqueles campeões de severidade como hipócritas e safados que de fato são. A burla tem como instrumento um saco, uma carta num envelope para ser aberta logo, uma carta num envelope para ser aberta posteriormente, mais dezenove cartas iguais mandadas por correio, mais diversos pós-escritos e outras missivas (os textos epistolares têm sempre uma função importante nos enredos de Mark Twain), e todos giram em torno de uma frase misteriosa, verdadeira palavra mágica: quem a conhecer ganhará o saco de ouro.
O suposto doador e autêntico castigador é uma personagem desconhecida; quer vingar-se de uma ofensa — não se sabe de qual — que lhe foi feita — impessoalmente — pela cidade: a indeterminação o circunda com uma espécie de halo sobrenatural, a invisibilidade e a onisciência fazem dele uma espécie de deus: ninguém se lembra dele, mas ele conhece todos e sabe prever as reações de todos.
Outra personagem tornada mítica pela indeterminação (e pela invisibilidade: porque está morto) é Barclay Goodson, cidadão de Hadleyburg diferente de todos os outros, o único capaz de desafiar a opinião pública, o único capaz do gesto inaudito de oferecer vinte dólares a um estrangeiro arruinado pelo jogo. Nada mais nos é dito a respeito dele; em que consistia a sua oposição ferrenha à cidade inteira é deixado na penumbra.
Entre um doador misterioso e um destinatário defunto se intromete a cidade na pessoa de seus dezenove notáveis, os Símbolos da Incorruptibilidade Cada um deles pretende — e quase se convence — identificar-se se não com o odiado Goodson, pelo menos com aquele que Goodson designou para sucedê-lo.
Esta é a corrupção de Hadleyburg: a avidez de possuir um saco de dólares de ouro sem dono derruba com facilidade qualquer escrúpulo de consciência e leva rapidamente à mentira, ao engodo. Se pensarmos em quão misteriosa, indefinível e cheia de sombras é a presença do pecado em Hawthorne e em Melville, a de Mark Twain nos parece uma versão simplificada e elementar da moral puritana, com uma doutrina da queda e da graça não menos radical mas transformada numa regra de higiene clara e racional como o uso da escova de dentes.
Também ele tem suas reticências: se sobre a não censurabilidade de Hadleyburg pesa uma sombra é a de uma culpa cometida pelo pastor, reverendo Burgess, mas isso só se comenta nos termos mais vagos: “the thing”, a coisa. Na realidade, Burgess não é responsável por essa culpa, e o único a saber disso — mas se absteve de dizê-lo — é Richards; talvez a responsabilidade fosse dele (também isso fica na sombra). Ora, quando Hawthorne não diz qual é a culpa do pastor que anda com um véu negro no rosto, seu silêncio pesa sobre todo o conto; quando é Mark Twain a não dizer, é apenas sinal de que para as finalidades da narrativa aquele é um detalhe que não interessa.
Alguns biógrafos contam que Mark Twain era submetido a uma severa censura prévia por parte de sua mulher Olivia, que exercia um direito de supervisão moralizadora sobre seus escritos. (Comenta-se mesmo que às vezes ele espalhava expressões inconvenientes ou blasfemas pela primeira versão de um escrito para que os rigores da esposa encontrassem um alvo fácil sobre o qual desabafar, deixando intacta a substância do texto.) Mas podemos ter certeza de que mais severa que a censura conjugal era uma autocensura tão hermética a ponto de se aproximar da inocência.
A tentação do pecado para os notáveis de Hadleyburg como para os cônjuges Foster (na “Herança de 30 000 dólares”) assume a forma incorpórea do cálculo dos capitais e dos dividendos; mas expliquemo-nos: a culpa é tal porque se trata de dinheiro que não existe. Quando as cifras com três ou seis zeros têm aceitação no banco, o dinheiro é a prova e o prêmio da virtude: nenhuma suspeita de culpa perturba o Henry Adams de “Cédula de 1 milhão de esterlinas” (homônimo, observe-se do primeiro crítico da mentalidade americana) que especula com a venda de uma mina californiana sob o escudo de uma nota autêntica embora impossível de ser gasta. Ele se conserva cândido como o herói de uma fábula ou de um daqueles filmes dos anos 30 em que a América democrática demonstra acreditar ainda na inocência da riqueza, como na idade de ouro de Mark Twain. Só ao se lançar um olhar no fundo das minas — as reais e as psicológicas — surgirá a suspeita de que as verdadeiras culpas são outras.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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