Licó, com seu chapéu de aba curta e o
bigodão sobre os lábios, fez sua proposta para o velho pai e
aguardava, pacientemente, a resposta.
— Meu filho, — disse o Saraiva com
aquela voz fina quase em falsete, que contrastava com sua cara sisuda
— não criei filha minha pra andar de conversa com o filho daquele
índio bandido. Tem certeza mesmo disto que tu está me dizendo?
– É o que andam falando. Não custa
nada se precaver, não é mesmo?
— Hum... Mas e esse guri aí que tu
queres juntar com tua irmã... Pode cuidar dela?
— Mas pai, já te expliquei. O Laurinho
é irmão da Mariana, tem praticamente a mesma idade da Luísa. E ele
vem aqui morar com o senhor, vai te ajudar. Pra ele é bom também,
parece que os Contreras não estão se dando muito bem em casa. Coisa
de família.
— E a Luísa? Que vai achar disso?
— Ela não tem que achar nada, meu pai.
Se o senhor decidir, está decidido.
— Que seja, então, Licó. Que seja.
Resignado, o velho Saraiva concordou com
o apelo do filho. Não gostava daquela gente com sangue índio, eram
uns tipos muy ladinos. Gostava menos ainda que estivessem falando de
sua filha por aquelas bandas.
O velho Saraiva coçou a testa,
preocupado. Forçou a tosse, parecendo que queria cuspir os pulmões.
Conhecendo a guria como ele conhecia, sabia que as coisas não seriam
tão fáceis assim.
VII.
Meses antes da tal proposta que licó fez
ao seu pai, em uma tarde de calor infernal – daquelas em que tudo
parece estar parado – fazendo o mínimo de esforço para não suar
ainda mais, Luísa cumpria com seu ritual doméstico diário. Após
todas as lidas da casa, ainda debulhou os milhos que serviam de ração
e atirou-os para as galinhas no terreiro. Sentia as mãos inchadas e
dormentes.
A moça morava com o velho Saraiva, seu
pai, em uma casinha simples, próxima ao povoado onde vendiam sua
pequena produção. A mãe, que Deus a tivesse, falecera quando ela
ainda era bem pequena. A menina cresceu sendo a mulher da casa,
cuidando do pai e do irmão. Muito embora tivesse pouco mais de
quinze anos, quem a visse pensaria já ser mulher feita.
Luísa espiou o pai pela porta
escancarada, ele sesteava sentado na cadeira de balanço. O mormaço
dava aquela moleza mesmo. A jovem correu, levantando poeira,
estalando os dedos para chamar Amarelo, o seu filhote de cachorro.
Desceu a pequena ladeira, logo após a horta, e foi em direção ao
arroio que corria nos fundos da casa.
Naquele lugar, que chamavam simplesmente
de “banho”, Luísa sempre recordava dos piqueniques nos domingos,
quando a avó e a mãe ainda estavam com eles. Ali aprendera a nadar,
a lavar... Ali naquele cantinho, protegido pelas copas das árvores,
na água clara e fresca, era onde renovava as energias e sentia mais
forte o olhar e o carinho da mãe, onde quer que ela estivesse.
Antônio saíra de casa mais cedo, mas
sabia que não era o certo. Seu pai, que todos conhecem por Índio
Feio, já havia lhe ensinado mais de mil vezes. A doma deve ser feita
nas primeiras horas da manhã e, depois, somente pouco antes do cair
do sol. Saber disso, Antônio sabia, mas guri novo era assim mesmo –
ansioso por natureza. O pai ganhara aquele potro como pagamento por
um lote de domas e havia-o entregado para que o menino mostrasse pra
ele se já aprendera alguma coisa.
Era um animal novo, arisco, de pelo
bragado. Diziam que não era um pelo bom e, talvez por isso,
descartaram o animal da tropilha. “Menos mal”, pensou o rapaz,
enquanto apertava o passo do cavalo, treinando-o para que tivesse um
trote macio.
Distanciou-se de casa mais do que o
normal. Apeou, revisou o bocal pra ver se não havia cortado a boca
do cavalo — que atirava a cabeça pra trás, ainda desconfiado. De
repente, as orelhas do bragado apontaram em uma única direção. O
rapaz procurou o que chamara a atenção do animal e, assim, avistou
a menina.
Ela estava com os olhos fechados, deitada
nas areias, descansando calmamente sob a luz alaranjada que lhe
beijava a fronte. Os cabelos queimados pelo sol descansavam no colo a
secar naturalmente pelo vento que soprava. O tecido de chita não
conseguia esconder os contornos de seu corpo de menina-moça.
Foi despertada de seus devaneios pelos
latidos do cachorro, alguém estava chegando. Rapidamente,
levantou-se e encarou o jovem que estava por ali.
— Buenas, moça, desculpa se te
assustei — disse ele, com o rosto corado, enquanto o cachorro não
parava de latir.
— Quieto, Amarelo! — mandou ela. —
Não me assustou, não. O que tu faz aqui em casa? — reparou que
não era nenhum conhecido de seu pai. Mas não ficou com medo, ele
era apenas um pouco mais velho que ela.
— Estava domando — apontou para o
potro — e nos estendemos demais, foi isso. Me chamo Antônio Neto.
— Bonito teu cavalo, Antônio Neto.
Antônio sorriu e fez um carinho na testa
do animal, que mais uma vez atirou a cabeça para trás.
— Pelo visto, ainda não está bem
manso. — disse ela com aquele sorriso que revelou uma covinha em
sua bochecha. — Vou me indo antes que meu pai me veja aqui de
conversa com um estranho. Ele te mataria.
Sem esperar resposta, a menina virou-se e
foi-se embora. Mais ao longe, ela deu uma última olhada para trás,
apenas para confirmar se ele ainda estava lá, porque, no fundo, ela
já sabia.
R. Tavares, in Andarilhos
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