sábado, 16 de janeiro de 2021

Lev Tolstói, Dois hussardos

      

          Entender como Tolstói constrói sua narração não é fácil. Aquilo que tantos narradores mantêm à mostra — esquemas simétricos, vigas mestras, contrapesos, dobradiças — nele permanece oculto. Oculto não significa inexistente: a impressão que Tolstói dá de levar tal e qual para a página escrita “a vida” (esta misteriosa entidade que para ser definida nos obriga a partir da página escrita) não passa de um produto da arte, isto é, de um artifício mais complexo que tantos outros.
Um dos textos em que a “construção” tolstoiana é mais visível é Dois hussardos, e como esta é uma de suas narrativas mais típicas — do primeiro e mais direto Tolstói —, e das mais belas, observando como é feito podemos aprender algo sobre o modo de trabalhar do autor.
Escrito e publicado em 1856, Dva gusara se apresenta como evocação de uma época remota, o começo do Oitocentos, e o tema é o da vitalidade, transbordante e sem freios, uma vitalidade vista como já distante, perdida, mítica. As estalagens onde os oficiais transferidos aguardam a troca dos cavalos para os trenós e se depenam jogando baralho, os bailes da nobreza de província, as noites de farra “junto com os ciganos”: é na classe alta que Tolstói representa e mitifica essa violenta energia vital, espécie de fundamento natural (perdido) do feudalismo militar russo.
A narrativa inteira está centrada num herói para quem a vitalidade é razão suficiente de sucesso, simpatia e domínio, e encontra em si mesma, na própria indiferença para com as regras e nos próprios excessos, uma moral e uma harmonia próprias. A personagem do conde Turbin, oficial dos hussardos, grande bebedor, jogador, mulherengo e dado a duelos, não faz senão concentrar em si a força vital difusa na sociedade. Seus poderes de herói mítico consistem em descobrir canais positivos para essa força que na sociedade manifesta suas potencialidades destrutivas: um mundo de trapaceiros, dilapidadores do dinheiro público, bêbados, fanfarrões, escroques, libertinos, cujos conflitos uma calorosa indulgência recíproca transforma em jogo e festa. A civilidade gentilícia só mascara uma brutalidade de horda de bárbaros; para o Tolstói de Dois hussardos a barbárie é o imediato ontem da Rússia aristocrática, e nessa barbárie achava-se a sua verdade e saúde. Basta pensar na apreensão com que, no baile da nobreza de K., a entrada do conde Turbin é vista pela dona da casa.
Contudo, Turbin reúne em si violência e suavidade; Tolstói o apresenta fazendo coisas que não deveriam ser feitas, mas dá aos movimentos dele o dom de uma milagrosa exatidão. Turbin é capaz de pedir emprestado dinheiro de um esnobe e nem sonhar em devolvê-lo, ou melhor, irá insultá-lo e agredi-lo; de seduzir como um raio uma jovem viúva (irmã de seu credor) escondendo-se na carruagem dela e de não se preocupar em comprometê-la, ao desfilar com o casaco de peles do marido morto; mas é também capaz de gestos de galanteria desinteressada, como voltar atrás em sua viagem de trenó para dar-lhe um beijo no sono e partir de novo. Turbin é capaz de dizer na cara de cada um aquilo que merece; chama um trapaceiro de trapaceiro, depois tira-lhe à força o dinheiro malganho para reembolsar o simplório que se deixara defraudar e com o que sobra ainda presenteia as ciganas.
Mas isso é apenas metade da narrativa, os primeiros oito de dezesseis capítulos. No nono capítulo, há um salto de vinte anos: estamos em 1848, Turbin é morto por um louco em duelo, e seu filho é então oficial dos hussardos. Também ele chega a K., em marcha rumo ao front, e encontra algumas das personagens da primeira história; um cavalariço presunçoso, a viuvinha transformada em resignada matrona; mais uma jovem filha para tornar a nova geração simétrica em relação à velha. A segunda parte da história — logo nos damos conta — repete especularmente a primeira, mas tudo ao contrário: a um inverno de neve, trenós e vodca responde uma doce primavera de jardins à luz da lua, ao primeiro Oitocentos selvagem das orgias nos caravançarás das paradas responde um pleno Oitocentos conformista de trabalhos de tricô e tédio tranquilo na calma familiar. (Para Tolstói esta era a contemporaneidade: é difícil hoje para nós situar-nos em sua perspectiva.)
O novo Turbin faz parte de um mundo mais civilizado e se envergonha da fama de boêmio deixada pelo pai. Enquanto o pai espancava e arrebentava o servo, mas estabelecia com ele uma espécie de complementaridade e confidência, o filho não para de brigar e lamentar-se com o criado, vexatório ele também, mas barulhento e mole. Há um jogo de baralho também aqui, uma partida em família, de poucos rublos, e o jovem Turbin com seus pequenos cálculos não hesita em depenar a dona de casa que o hospeda, enquanto cutuca o pé da filha. O que o pai tinha de prepotente ele tem de mesquinho, mas é sobretudo confuso, desajeitado. O flerte é uma sequência de equívocos; uma sedução noturna se reduz a uma tentativa desastrada, a um papelão; mesmo o duelo que estava por ter lugar se anula na lenga-lenga.
Dessa narrativa de costumes militares, obra do maior escritor de guerra en plein air, poderíamos dizer que a grande ausente é justamente a guerra. Ainda assim é um relato de guerra: as duas gerações (aristocrático-militares) dos Turbin são respectivamente aquela que derrotou Napoleão e aquela que reprimiu a revolução na Polônia e na Hungria. Os versos que Tolstói põe como epígrafe assumem um significado polêmico em relação à História com H maiúsculo, que só leva em conta batalhas e planos estratégicos e não a substância de que são feitas as existências humanas. Já é a polêmica que Tolstói desenvolverá dez anos depois em Guerra e paz: embora aqui não se afaste dos costumes dos oficiais, será esse mesmo discurso que levará Tolstói a contrapor aos grandes condottieri a massa camponesa dos soldados simples como verdadeiros protagonistas históricos.
Assim, não é tanto exaltar a Rússia de Alexandre I em contraposição à de Nicolau I que interessa a Tolstói, quanto procurar a vodca da história (ver a epígrafe), o combustível humano. A abertura da segunda parte (capítulo IX) — que faz pendant com a introdução, aos seus flashes nostálgicos contrapõe um pouco de repertório — não é inspirada numa lamentação do passado, mas numa complexa filosofia da história, num balanço dos custos do progresso. “…Muita coisa bonita e muita coisa feia, entre tudo o que era velho, desaparecera, muita coisa bonita, entre tudo o que era novo, se desenvolvera, e muito, ou melhor, muito mais — entre tudo de novo — incapaz de desenvolvimento, monstruoso, surgira sob o sol.”
A plenitude vital tão louvada pelos comentadores de Tolstói é — aqui como no restante da obra — a constatação de uma ausência. Como no narrador mais abstrato, o que conta em Tolstói é aquilo que não se vê, aquilo que não é dito, aquilo que poderia existir e não existe.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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