Mas parece-me ver, vejo decerto,
Vejo terra e o litoral aberto.
Já era madrugada quando Ariosto
terminou, com estas linhas, de escrever o seu poema Orlando.
Foi até a janela e ficou olhando longamente, àquela altura da
noite, as sombras dos ciprestes no Parque Ferrara, onde, dois séculos
mais tarde, seria erguido um monumento ao poeta. Angélica finalmente
encontrara Bayardo e, aparentemente, tudo acabara bem. Era primavera,
um vento fraco soprava no parque e os ciprestes balançavam as folhas
com leveza, fazendo as sombras se moverem sem formas complexas. Nada
parecia acompanhar a excitação e o tremor que dominavam as mãos de
Ariosto, sua incerteza completa. Desde o início do poema, e ainda
antes, Ariosto já tinha decidido que o nome Orlando seria um
anagrama de Rolando, o herói de todas as cavalarias. Não queria que
seu protagonista fosse apenas mais um cavaleiro, apesar das muitas
fugas, sobressaltos e duelos, pois Orlando tinha características que
nenhum Rolando poderia compartilhar. Ariosto intuía que de seu
Orlando, enlouquecido de amor, algo impensável para qualquer herói
digno do círculo de Carlos Magno, ainda nasceria outro herói,
melhor, mais louco e importante do que ele. Seria um herói mais
ousado e que, possivelmente, chegaria até a confundir moinhos de
vento com gigantes. Ariosto sabia que ali criava um novo caminho, e
os ciprestes nem por isso se mexiam. Ninguém enlouquecia como
Orlando ou como o próprio Ariosto sentia que vinha enlouquecendo, em
parte pela criação de seu personagem pioneiro, em parte pela
contaminação amorosa que sentia provir da ira amorosa de Orlando
por Angélica, só comparável à paixão que o próprio Ariosto
sentia por Alessandra Benucci. Trinta anos haviam se passado desde
que Ariosto começara aquela empreitada, que agora chegava
absurdamente ao final, como se fosse possível chegar ao final de
alguma coisa, e, sobretudo, algo como aquilo. Uma loucura salva pela
paixão, como o autor sabia que deveria ocorrer na letra de sua obra,
mas como não tinha certeza se também o salvaria em vida. O bom
porto entre a loucura e a lucidez também deveria servir para
resgatá-lo. Mas Ariosto não tinha certeza de nada. A lua, que
através de Astolfo havia esfriado a ira de Orlando, agora só
brilhava fraca sobre os ciprestes, não fazendo nada mais que
refletir sombras semimortas. Como transportar para a vida o que
parecia tão claro na ficção? Folheou o poema e releu o canto VI:
De mui bom grado quis eu dar-te aviso;
Que não sei se haverá de
aproveitar-te,
mas convém que não chegues de
improviso
e de seus costumes conheças parte;
Tal como é desigual o gesto e o riso,
Desiguais podem ser o engenho e a arte
Ao malefício escaparás, talvez,
O que, de mil, nenhum ainda fez.
Ele, o autor, é que se encontrava entre
aqueles outros mil a quem Orlando não soubera evitar o engano; ele é
que se encontrava na diferença atônita entre engenho e arte, presa
da astúcia e do pretenso domínio sobre as palavras. De que lhe
servia a beleza? Precisava agora encontrar um nome para o seu herói,
recuperado da loucura, de volta para a vida, pelo braço da paixão.
Qual era o elo que ligava a loucura à paixão? Ariosto procurou
afoito os epítetos gregos: Egletes, o radiante; Lício, o luminoso;
Nomios, o vagabundo. Partiu em seguida para os romanos: Febo, o
brilhante; Coelispex, o observador; Articenis, o arqueiro. Lembrou-se
subitamente das Erínias — Tisífone, Megera e Alecto. O castigo, o
rancor e a interminável. Eram elas o elo entre a loucura e a paixão,
e, embora não representassem de forma alguma o pensamento, elas
continham o fogo irado da loucura e a infinitude gasosa da paixão.
De nada adiantava sabê-lo; era preciso um Astolfo, uma lua, um poema
falso para a lucidez atuar como eixo mediano entre as duas forças.
Qual seria a palavra que poderia traduzir, em italiano, a abrangência
das Erínias? Orlando, o irado; o encolerizado; o raivoso. Procurou
avidamente em seus dicionários e encontrou uma raiz perdida no
latim: “delírio”, “desvairamento”; no latim: “árum”.
Foi ao alfabeto grego, pesquisou as letras e se deu conta de que a
letra f grega não tinha equivalente no alfabeto romano. Podia
encontrar uma palavra que sintetizasse as Erínias e o delírio
latino, “árum”. Traduziria as Erínias por Fúrias para o
romano, mantendo a raiz de “delírio” e acrescentando o f grego
latinizado. Fúrias. Orlando Furioso, o castigado, o rancoroso, o
infinito, o delirante. O que se salvou pelo delírio enfurecido.
Inventar a letra F acalmou um pouco a tensão de Ariosto. Logo se deu
conta de que a letra F habitaria também as flores e as fábulas,
além dos fracassos e das feridas. Orlando tinha enfim um epíteto;
Ariosto, uma obra e uma letra. Era um bom lugar para começar.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto
Nenhum comentário:
Postar um comentário