segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

F

Mas parece-me ver, vejo decerto,
Vejo terra e o litoral aberto.

Já era madrugada quando Ariosto terminou, com estas linhas, de escrever o seu poema Orlando. Foi até a janela e ficou olhando longamente, àquela altura da noite, as sombras dos ciprestes no Parque Ferrara, onde, dois séculos mais tarde, seria erguido um monumento ao poeta. Angélica finalmente encontrara Bayardo e, aparentemente, tudo acabara bem. Era primavera, um vento fraco soprava no parque e os ciprestes balançavam as folhas com leveza, fazendo as sombras se moverem sem formas complexas. Nada parecia acompanhar a excitação e o tremor que dominavam as mãos de Ariosto, sua incerteza completa. Desde o início do poema, e ainda antes, Ariosto já tinha decidido que o nome Orlando seria um anagrama de Rolando, o herói de todas as cavalarias. Não queria que seu protagonista fosse apenas mais um cavaleiro, apesar das muitas fugas, sobressaltos e duelos, pois Orlando tinha características que nenhum Rolando poderia compartilhar. Ariosto intuía que de seu Orlando, enlouquecido de amor, algo impensável para qualquer herói digno do círculo de Carlos Magno, ainda nasceria outro herói, melhor, mais louco e importante do que ele. Seria um herói mais ousado e que, possivelmente, chegaria até a confundir moinhos de vento com gigantes. Ariosto sabia que ali criava um novo caminho, e os ciprestes nem por isso se mexiam. Ninguém enlouquecia como Orlando ou como o próprio Ariosto sentia que vinha enlouquecendo, em parte pela criação de seu personagem pioneiro, em parte pela contaminação amorosa que sentia provir da ira amorosa de Orlando por Angélica, só comparável à paixão que o próprio Ariosto sentia por Alessandra Benucci. Trinta anos haviam se passado desde que Ariosto começara aquela empreitada, que agora chegava absurdamente ao final, como se fosse possível chegar ao final de alguma coisa, e, sobretudo, algo como aquilo. Uma loucura salva pela paixão, como o autor sabia que deveria ocorrer na letra de sua obra, mas como não tinha certeza se também o salvaria em vida. O bom porto entre a loucura e a lucidez também deveria servir para resgatá-lo. Mas Ariosto não tinha certeza de nada. A lua, que através de Astolfo havia esfriado a ira de Orlando, agora só brilhava fraca sobre os ciprestes, não fazendo nada mais que refletir sombras semimortas. Como transportar para a vida o que parecia tão claro na ficção? Folheou o poema e releu o canto VI:

De mui bom grado quis eu dar-te aviso;
Que não sei se haverá de aproveitar-te,
mas convém que não chegues de improviso
e de seus costumes conheças parte;

Tal como é desigual o gesto e o riso,
Desiguais podem ser o engenho e a arte
Ao malefício escaparás, talvez,
O que, de mil, nenhum ainda fez.

Ele, o autor, é que se encontrava entre aqueles outros mil a quem Orlando não soubera evitar o engano; ele é que se encontrava na diferença atônita entre engenho e arte, presa da astúcia e do pretenso domínio sobre as palavras. De que lhe servia a beleza? Precisava agora encontrar um nome para o seu herói, recuperado da loucura, de volta para a vida, pelo braço da paixão. Qual era o elo que ligava a loucura à paixão? Ariosto procurou afoito os epítetos gregos: Egletes, o radiante; Lício, o luminoso; Nomios, o vagabundo. Partiu em seguida para os romanos: Febo, o brilhante; Coelispex, o observador; Articenis, o arqueiro. Lembrou-se subitamente das Erínias — Tisífone, Megera e Alecto. O castigo, o rancor e a interminável. Eram elas o elo entre a loucura e a paixão, e, embora não representassem de forma alguma o pensamento, elas continham o fogo irado da loucura e a infinitude gasosa da paixão. De nada adiantava sabê-lo; era preciso um Astolfo, uma lua, um poema falso para a lucidez atuar como eixo mediano entre as duas forças. Qual seria a palavra que poderia traduzir, em italiano, a abrangência das Erínias? Orlando, o irado; o encolerizado; o raivoso. Procurou avidamente em seus dicionários e encontrou uma raiz perdida no latim: “delírio”, “desvairamento”; no latim: “árum”. Foi ao alfabeto grego, pesquisou as letras e se deu conta de que a letra f grega não tinha equivalente no alfabeto romano. Podia encontrar uma palavra que sintetizasse as Erínias e o delírio latino, “árum”. Traduziria as Erínias por Fúrias para o romano, mantendo a raiz de “delírio” e acrescentando o f grego latinizado. Fúrias. Orlando Furioso, o castigado, o rancoroso, o infinito, o delirante. O que se salvou pelo delírio enfurecido. Inventar a letra F acalmou um pouco a tensão de Ariosto. Logo se deu conta de que a letra F habitaria também as flores e as fábulas, além dos fracassos e das feridas. Orlando tinha enfim um epíteto; Ariosto, uma obra e uma letra. Era um bom lugar para começar.

Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

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