quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Classe

 


Não estou certo da localização. Algum lugar a nordeste da Califórnia. Hemingway recém acabara um romance, vinha da Europa ou de lá sei onde e estava no ringue lutando contra alguém. Havia jornalistas, críticos, escritores – aquela tribo – e também algumas jovens senhoritas sentadas nas cadeiras próximas ao ringue. Sentei na última fileira de cadeiras. A maioria das pessoas não estava observando Hemingway. Estavam conversando umas com as outras e rindo.
O sol estava alto. Era alguma das horas do início da tarde. Eu observava o Ernie. Já tinha derrotado o adversário, estava brincando com ele. Distribuía jabs e cruzados à vontade. Então colocou o adversário no chão. As pessoas os olhavam. O oponente de Hemingway levantou-se quando a contagem chegou ao oito. Hemingway foi na direção dele, então parou. Ernie tirou seu protetor bucal, riu e despachou o oponente com um aceno de mão. Foi uma vitória fácil. Ernie caminhou para o seu corner. Reclinou a cabeça para trás e alguém espremeu água em sua boca.
Levantei da minha cadeira e caminhei lentamente pelo corredor entre os assentos. Aproximei-me, espichei a mão e chamei-o com um cutucão.
Sr. Hemingway?
Sim, o que é?
Gostaria de lutar com senhor.
Você tem alguma experiência no boxe?
Não.
Então vá arranjar alguma.
Estou aqui para quebrar a sua cara.
Ernie riu. Disse para o sujeito no corner:
Arranje calções e luvas para o garoto.
O sujeito pulou para fora do ringue, e eu o segui pelo corredor entre as cadeiras até o vestiário.
Você está louco, garoto? – me perguntou.
Não sei. Acho que não.
Aqui. Experimente esses calções.
Ok.
Ih... está muito grande.
Foda-se. Vai assim mesmo.
Ok, deixe-me colocar a faixa nas suas mãos.
Sem faixas.
Sem faixas?
Sem faixas.
Que tal um protetor bucal?
Sem protetor.
Vai lutar com ele usando esses sapatos?
Lutarei de sapato.
Acendi um charuto e o segui até o ringue. Caminhei pelo corredor fumando o charuto. Hemingway subiu novamente no ringue e colocaram as luvas nele. Não havia ninguém no meu corner. Finalmente alguém chegou e colocou as luvas em mim. Fomos chamados ao centro do ringue para receber instruções.
Quando você partir para um clinch – disse o juiz –, eu vou...
Não uso o clinch – eu disse ao juiz.
Ele seguiu dando outras instruções.
Ok. Voltem para seus corners. Quando o gongo soar, lutem. Que vença o melhor homem. E – ele me disse – é melhor você tirar o cigarro da boca.
Quando o gongo soou, comecei com o charuto ainda na boca. Puxando uma boa baforada, soprei a fumaça na cara de Ernest Hemingway. A multidão riu.
Hem avançou, soltou um jab e um gancho e errou os dois. Eu tinha os pés rápidos. Ginguei um pouco, avancei, tap tap tap tap tap, cinco jabs de esquerda no nariz do papai. Dei uma olhada em uma garota da primeira fila, uma coisinha muito bonita, e então Hem acertou uma direita, tirando o charuto de minha boca. Senti minha boca e minha bochecha queimarem e tirei as cinzas quentes. Cuspi a bagana e acertei um gancho na barriga de Ernie. Ele soltou um gancho com a direita e me pegou na orelha com uma esquerda. Abaixou-se para se esquivar da minha direita e me acertou uma saraivada, levando-me até as cordas. Justo quando soou o gongo, ele soltou uma sólida direita no meu queixo. Levantei e caminhei para o meu corner.
Um sujeito apareceu com um balde.
O sr. Hemingway quer saber se você gostaria de lutar mais um round – o sujeito me perguntou.
Diga ao sr. Hemingway que ele teve sorte. Entrou fumaça nos meus olhos. Mais um assalto é só do que preciso para terminar o serviço.
O sujeito com o balde foi até lá e eu podia ver Hemingway rindo.
O gongo soou e eu saí rapidamente. Comecei soltando a mão, não com muita força, mas com boas combinações. Ernie recuou, errando seus socos. Pela primeira vez vi dúvida em seus olhos.
Quem é esse garoto?”, ele devia estar pensando. Encurtei meus golpes, acertei-o com mais força. Acertei cada golpe. Cabeça e corpo. Combinações variadas. Boxeei como Sugar Ray e bati como Dempsey.
Coloquei Hemingway contra as cordas. Ele não tinha como cair. Cada vez que ele começava a cair para frente, eu o endireitava com outro soco. Era assassinato. Morte na tarde.
Dei uma passo para trás e o sr. Ernest Hemingway caiu para frente, nocauteado.
Desamarrei minhas luvas com os dentes, tirei-as e saltei para fora do ringue. Caminhei para o meu vestiário, quero dizer, o vestiário de Hemingway, e tomei um banho. Bebi uma garrafa de cerveja, acendi um charuto e sentei na ponta da mesa de massagem. Trouxeram Ernie carregado e o colocaram na outra mesa. Ele ainda estava fora do ar. Continuei sentado ali, pelado, observando-os enquanto se preocupavam com Ernie. Havia mulheres na sala, mas não dei atenção. Então um sujeito veio até mim.
Quem é você? – perguntou. – Qual o seu nome?
Henry Chinaski.
Nunca ouvi falar – ele disse.
Vai ouvir – eu disse.
Todos vieram me cercar. Ernie foi deixado sozinho. Pobre Ernie. Todos ao redor de mim. As mulheres também. Nenhuma em especial me chamava a atenção, com exceção de uma delas. Uma mulher muito classuda me olhava de cima a baixo. Parecia ser uma mulher da sociedade, rica, educada e todo o resto... bom corpo, boa cara, boas roupas, tudo aquilo.
O que você faz? – alguém me perguntou.
Trepo e bebo.
Não, não, quero saber qual a sua ocupação?
Lavador de pratos.
Lavador de pratos?
Sim.
Você tem algum passatempo?
Bem, não sei se dá para chamar de passatempo. Escrevo.
Escreve?
É.
O quê?
Contos. Coisa fina.
Já foi publicado?
Não.
Por quê?
Não mandei para ninguém.
Onde estão seus contos?
Ali – apontei para uma pasta rasgada.
Escute, sou um crítico do New York Times. Você se importa se eu levar suas histórias para casa e as ler? Vou devolver.
Por mim tudo bem, cara, mas não sei onde estarei.
A mulher de classe deu um passo à frente.
Ele estará comigo.
Então ela disse:
Vamos, Henry, vista suas roupas. É uma longa viagem e temos algumas coisas para... conversar.
Vesti-me e então Ernie voltou a si.
O que raios aconteceu? – ele perguntou.
Você encontrou um sujeito muito bom, sr. Hemingway – alguém lhe disse.
Acabei de me vestir e fui até onde ele estava.
Você é bom, papai, ninguém ganha todas – apertei sua mão. – Não vá estourar os miolos.
Saí com a grã-fina, e entramos em um carro conversível amarelo que tinha o comprimento de meio quarteirão. Ela dirigia com o pé no fundo e fazia as curvas derrapando e cantando os pneus e sem nenhuma expressão no rosto. Isso era classe. Se ela amasse como dirigia, seria uma noite e tanto.
O lugar ficava em cima das colinas, afastado de tudo. Um mordomo abriu a porta.
George – ela lhe disse –, tire a noite de folga. Não, pensando melhor, tire a semana de folga.
Entramos, e havia um sujeito grande sentado em uma cadeira com uma bebida na mão.
Tommy – ela disse –, desapareça.
Seguimos pela casa.
Quem era o grandão? – perguntei a ela.
Thomas Wolfe – ela disse. – Um tédio.
Ela parou na cozinha para pegar uma garrafa de uísque e dois copos. Então disse:
Vamos.
Segui-a para o quarto.
Na manhã seguinte o telefone nos acordou. Era para mim. Ela me alcançou o telefone, e me sentei ao lado dela na cama.
Sr. Chinaski?
Sim?
Li suas histórias. Fiquei tão entusiasmado que não pude dormir de noite. Você é certamente o maior gênio da nossa década!
Só da década?
Bem, talvez do século.
Assim está melhor.
Os editores da Harper’s e da Atlantic estão aqui comigo. Você pode não acreditar, mas cada um dele aceitou cinco histórias para publicação futura.
Acredito – eu disse.
O crítico desligou. Deitei. A mulher de classe e eu fizemos amor mais uma vez.

Charles Bukowski, in Ao sul de lugar nenhum

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