Nós
viemos de algum lugar – é assim com tudo. Quando é feita a
transição de espírito para carne, os portões devem ser fechados.
É uma gentileza. Seria cruel não os fechar. Talvez os deuses tenham
esquecido; às vezes eles são assim, distraídos. Não é malicioso
– ao menos, normalmente. Mas são deuses, afinal de contas, e não
se importam com o que acontece com a carne, principalmente porque ela
é lenta e entediante, estranha e grosseira. Eles não prestam muita
atenção à carne, exceto quando está sendo coletada, organizada e
almada.
Quando
ela (nosso corpo) moveu-se para fora e para dentro do mundo, molhada
e mais barulhenta do que uma aldeia de tempestades, os portões foram
deixados abertos. Deveríamos ter sido ancorados a ela naquele
momento, adormecidos dentro de suas membranas e sincronizados com sua
mente. Esse teria sido o jeito mais seguro. Mas já que os portões
estavam abertos, não fechados contra lembranças, ficamos confusos.
Éramos, ao mesmo tempo, velhos e recém-nascidos. Éramos ela,
porém, não. Não estávamos conscientes, mas estávamos vivos –
na verdade, o principal problema é que éramos um nós distinto, em
vez de ser completamente e simplesmente ela.
E
lá estava ela: um bebê gordo com cabelos pretos espessos e
molhados. E lá estávamos, novos neste mundo, cegos e famintos, em
parte presos à sua carne, e o resto de nós ficando para trás em
ondas, do outro lado dos portões abertos. Sempre quisemos acreditar
que foi alguma distração o que os deuses fizeram, e não
negligência deliberada. Mas o que pensamos quase não importa, mesmo
sendo o que somos para eles: filhos. Eles são incognoscíveis –
qualquer um sabe disso – e são tão gentis com os próprios filhos
quanto com os seus. Talvez até menos, porque seus filhos são apenas
frágeis sacos de carne com uma alma com data de validade. Nós, por
outro lado – os filhos deles, as crias, semideuses, ogbanje
– aguentamos muito mais horror. Não que isso importe – era óbvio
que ela (o bebê) ficaria louca.
Permanecemos
adormecidos, mas com os olhos abertos, ainda agarrados ao seu corpo e
à sua voz enquanto ela crescia, naqueles primeiros anos lentos em
que nada e tudo acontece. Ela era mal-humorada, inteligente, um sol
ofegante. Violenta. Gritava muito. Era gordinha e linda e insana, se
qualquer um soubesse o bastante para enxergar. Eles diziam que ela
puxava ao lado do pai, à avó que já era morta, por sua pele escura
e cabelos pretos. No entanto, Saul não escolheu seu nome em
homenagem à mãe, como outro homem talvez tivesse feito. Era sabido
que pessoas retornavam em corpos renovados; acontece o tempo todo.
Nnamdi. Nnenna. Mas ao olhar para dentro do escuro molhado dos olhos
dela, ele – surpreendentemente, para um homem cego, um homem
moderno – não cometeu este erro. De alguma maneira, Saul sabia que
o que quer que o olhava através dos olhos da filha não era sua mãe,
mas outra pessoa, outra coisa.
Todos
pairavam no ar ao seu redor, beliscando suas bochechas e a camada de
gordura debaixo delas, atraídos por ela, eles pensavam, mas, na
verdade, era por nós. Mesmo adormecidos, há coisas que não
conseguimos evitar, como atrair humanos. Eles nos atraem também, mas
um por vez; somos seletivos. Saachi observava os visitantes se
amontoarem ao redor do bebê, preocupação brotando nela como um
ramo verde. Tudo isso era novidade. Chima fora tão quieto, tão
tranquilo, frescor para o calor de Saachi. Perturbada, ela procurou
um pottu e encontrou, um círculo escuro de preto aveludado,
um terceiro olho portátil, e o colou na testa do bebê, naquele
espaço macio de pele novinha. Um sol para afastar mau-olhado e
desviar as intenções de pessoas perversas que bajulavam uma criança
e ao mesmo tempo a amaldiçoavam em sussurros. Ela sempre foi uma
mulher pragmática, Saachi. Havia boas chances de o bebê sobreviver.
Ao menos os deuses haviam escolhido humanos responsáveis, humanos
que a amavam intensamente, já que nesses primeiros anos a chance de
perdê-los é maior. Mesmo assim, não justifica o que aconteceu com
os portões.
O
pai humano, Saul, perdeu o parto. Nunca havíamos prestado muita
atenção nele enquanto éramos livres – ele não era do nosso
interesse; não continha recipientes ou universos em seu corpo. Ele
estava comprando refrigerantes para os convidados enquanto a esposa
lutava conosco por uma libertação de outro tipo. Saul sempre foi
esse tipo de homem, preocupado com status e imagem e capital social.
Coisas humanas. Mas ele concedeu o nome dela e foi mais tarde, quando
estávamos acordados, que ficamos sabendo disso e compreendemos,
finalmente, por que ele havia sido escolhido. Muitas coisas começam
com um nome.
Depois
de o menino Chima nascer, Saul pedira por uma filha, então, quando
nosso corpo chegou, ele deu-lhe um nome do meio que significava “Deus
atendeu”. Ele quis dizer deuses atenderam. Ele quis dizer que nos
chamou e nós atendemos. Ele não sabia o que quis dizer. É comum
humanos rezarem e esquecerem o que suas bocas conseguem fazer,
esquecerem que todos os ouvidos estão escutando, que quando você
direciona seus desejos para os deuses, eles podem encarar como um
pedido pessoal.
A
igreja havia se recusado a batizar a criança sem aquele nome do
meio; eles consideram o primeiro nome anticristão, pagão. No
batizado, Saachi ainda era tão magra e angular quanto em Londres,
mas o estômago de Saul estava um pouco mais convexo do que antes, um
inchaço estabelecido. Ele vestia um terno branco com lapelas largas,
uma gravata branca deitada em uma camisa preta, e ficou observando,
as mãos apertadas, enquanto o padre marcava a testa do bebê
aninhado no colo da mulher. Saachi espiava através dos óculos
espessos, focada na criança, com uma seriedade calma, o chapéu
branco pressionando seus longos cabelos pretos, o veludo bordô do
vestido austero nos ombros. Chima estava ao lado do pai, vestindo
sarja verde-oliva, pequeno, a cabeça chegando apenas até as mãos
de Saul. O padre seguiu falando e nós dormíamos na criança quando
o gosto velho de água benta penetrou a testa dela e se estendeu para
dentro de nosso domínio. Eles ficavam chamando o nome de um homem,
um cristo, outro deus. A água velha o chamava e, em paralelo a nós,
ele virou a cabeça.
O
padre continuava falando enquanto o cristo se aproximou, espalhando
fronteiras, carregando um oceano preto atrás de si. Ele passou as
mãos por cima do bebê, água de romã e mel sob as unhas. Ela tinha
adormecido no colo de Saachi e se agitou um pouco com o toque dele,
as pálpebras tremendo. Nós nos viramos. Ele inclinou a cabeça,
aquela espuma de cachos pretos, aquela pele de casca de noz, e
recuou. Eles a ofereceram a ele, e ele aceitaria; não se importava
de amar a criança. Água escorreu para dentro das orelhas dela
enquanto o padre chamava seu segundo nome, a resposta de deus, aquele
exigido pela igreja por não saberem que o primeiro nome continha
mais deus do que poderiam imaginar.
Saul
havia consultado seu irmão mais velho durante a escolha do primeiro
nome. Esse irmão, um tio que morreu antes de podermos lembrar dele
(pena; se alguém saberia o que fazer sobre os portões, seria ele),
chamava-se De Obinna e era um professor que viajara por aquelas
aldeias do interior e conhecia as coisas que eram praticadas lá.
Diziam que ele frequentava a igreja Cherubim and Seraphim, e parece
que era verdade, quando morreu. Mas ele também era um homem que
conhecia as músicas e danças do Uwummiri, a devoção que se afoga
em água. Toda água é conectada. Toda água doce sai da boca de uma
píton. Quando Saul teve o bom senso de não dar à criança o nome
da avó, De Obinna interveio e sugeriu o primeiro nome, aquele com
muito deus.
Anos
depois, Saul disse à criança que o nome significava apenas
“preciosa”, mas essa tradução é vaga e insuficiente, ao mesmo
tempo correta e incompleta. O nome significava, em sua forma mais
verdadeira, o ovo de uma píton.
Antes
de uma amnésia induzida por cristo atingir os humanos, é sabido que
a píton era sagrada, mais do que réptil. É a fonte do riacho, a
carne da deusa Ala, que é a terra mesma, a juíza e mãe, criadora
da lei. Em seus lábios o homem nasce e lá passa toda a vida. Ala
carrega o mundo inferior repleto no ventre, os mortos flexionando e
alisando sua barriga, uma lua crescente sobre sua cabeça. Era tabu
matar a píton e quanto ao ovo, diziam, não se pode encontrá-lo.
Pois o ovo de uma píton é cria de Ala, e a cria de Ala não é, e
nunca será, feita para você.
Esta
é a criança pela qual Saul pediu, a carne da oração. É melhor
nem dizer seu primeiro nome.
Nós
a chamávamos de A Ada.
Akwaeke Emezi, in Água Doce
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