quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Peixe dourado

           Yonatan teve uma ideia brilhante para um documentário. Bateria às portas das pessoas. Apenas ele, sem equipe de filmagem, com uma pequena câmera na mão, e perguntaria: “Se vocês encontrassem um peixe dourado falante que lhes concedesse três desejos, o que pediriam?”
As pessoas responderiam, e ele iria editar e montar clips com as respostas mais surpreendentes. Antes de cada conjunto de respostas, veriam a pessoa imóvel, na entrada de sua casa, e, superpostas a esta imagem, viriam as legendas com o nome, dados pessoais, renda mensal e talvez até mesmo o partido em que havia votado na última eleição. Junto com os desejos, todo o assunto se transformaria em um projeto social, que diria algo sobre o enorme abismo entre os nossos sonhos e a verdadeira situação em que a sociedade se encontra.
Era uma ideia genial e barata. Tudo que ele precisava era de uma porta e um coração pulsando atrás dela. E tinha certeza de que, com uma filmagem decente, seria capaz de vendê-la facilmente para o Canal 8 ou o Discovery, fosse como filme ou como uma coleção de vinhetas, cada qual exibindo uma alma diferente à sua porta de entrada e seus três preciosos desejos.
Com um pouco de sorte, talvez pudesse até interessar a algum banco ou empresa de celulares e, por fim, seria possível embalar o produto com o nome do patrocinador. Algo no estilo “Sonhos diversos, desejos diversos, um banco”. Ou “O banco que faz seus sonhos tornarem-se realidade”.
Yonatan decidiu começar a trabalhar nisso sem quaisquer preparações. Pegou sua câmera e foi bater à porta das pessoas. No primeiro bairro que filmou, a maioria dos que concordaram em cooperar pediram as coisas relativamente previsíveis: saúde, dinheiro, um apartamento maior. Mas houve também momentos tocantes. Uma mulher estéril pediu um filho. Um sobrevivente do Holocausto com um número tatuado no braço pediu que todos os nazistas ainda vivos pagassem pelos seus crimes. Um homossexual idoso pediu para ser mulher.
E estes eram desejos apenas de um pequeno bairro no subúrbio de Tel Aviv. Yonatan imaginava o que as pessoas iriam pedir nas cidades em desenvolvimento, comunidades ao longo da fronteira norte, nos assentamentos, nas aldeias árabes, nos centros de absorção de imigrantes repletos de trailers quebrados e pessoas exaustas abandonadas sob o sol do deserto.
Yonatan sabia que, para valorizar o projeto, seria muito importante ter também desempregados, religiosos, árabes, etíopes e expatriados americanos. Começou a planejar um cronograma de filmagens para os dias seguintes: Jafa, Dimona, Ashdod, Sderot, Taibe, Talpiot. Talvez até Hebron. Ele olhou para os nomes de comunidades que anotara no papel. Se conseguisse filmar um árabe pedindo paz como um dos seus desejos, isto seria uma bomba.
Sergei Goralick não gostava que estranhos lhe batessem à porta. Especialmente quando estes estranhos lhe faziam perguntas. Na Rússia, quando era jovem, isto acontecia muito. Pessoas da KGB batiam à sua porta porque seu pai era sionista e teve o pedido de imigração negado.
Quando Sergei se mudou para Israel, e então para Jafa, familiares lhe disseram, ei, o que você espera encontrar em um lugar como esse? Lá só tem drogados e árabes. Mas o que é muito bom com drogados e árabes é que eles não vêm bater à porta de Sergei. Assim, Sergei pode se levantar quando ainda está escuro, partir com seu barquinho para o mar, pescar um pouco e voltar para casa. E tudo sozinho. Em silêncio. Como deve ser.
Até que certo dia, um rapaz de brinco na orelha, parecendo homossexual, bate à sua porta, bem forte, do jeito que Sergei não gosta, e lhe diz que tem algumas perguntas, alguma coisa para a TV.
Sergei lhe diz claramente que não quer, não está interessado, e empurra um pouco a câmera para que ele entenda que está falando sério. Mas o rapaz de brinco insiste. Diz-lhe todos os tipos de coisas. Com rapidez. Sergei mal consegue acompanhar, o seu hebraico não é tão bom.
O rapaz de brinco diminui o ritmo, diz a Sergei que ele tem um rosto forte, um belo rosto, e que precisa dele para este filme. Sergei tenta fechar a porta, mas o rapaz é ágil e consegue entrar. Ele começa a filmar, sem autorização, e, por trás da câmera, novamente fala do rosto de Sergei, que ele transmite bastante sentimento. De repente, o rapaz vê o peixe dourado de Sergei nadando na grande jarra de vidro na cozinha.
O rapaz com o brinco começa a gritar. “Peixe dourado! Peixe dourado!” Isto aborrece Sergei, que lhe pede para não filmar o peixe e explica que se trata de um peixe comum que ele pegou na rede. Mas o rapaz não está ouvindo. Ele continua a filmar e fala várias coisas sobre o peixe, que ele fala, que realiza desejos mágicos.
Sergei não gosta disso, não gosta que o rapaz esteja próximo demais, quase alcançando a jarra. Neste instante, Sergei entende que o rapaz não veio por causa da televisão, que veio tomar o seu peixe. E, antes que a mente de Sergei Goralick realmente entenda o que o seu corpo fez, ele pega a frigideira do fogão e dá uma pancada na cabeça do rapaz de brinco. O rapaz cai. A câmera cai com ele. Quando chega ao chão, a câmera se abre, assim como o crânio do rapaz. Sai muito sangue da cabeça, e Sergei realmente não sabe o que fazer.
Quer dizer, ele sabe exatamente o que fazer, mas isto pode complicá-lo de verdade. Porque se levar o rapaz para o hospital, as pessoas vão perguntar o que aconteceu, o que daria um rumo à situação nada bom para ele.
Não há razão para levá-lo ao hospital – diz o peixinho, em russo. – Ele já está morto.
Ele não pode estar morto – Sergei protesta. – A pancada nem foi forte. Foi apenas uma frigideira.
A pancada não foi forte – o peixe concorda –, mas a cabeça do rapaz pelo visto é ainda menos forte.
Ele queria tirar você de mim – diz Sergei, quase chorando.
Nada disso – diz o peixe. – Ele estava aqui só para filmar alguma bobagem para a TV.
Mas ele disse...
Ele disse exatamente o que estava fazendo – afirma o peixe, interrompendo –, mas você não entendeu. O seu hebraico não é dos melhores.
E o seu é? – Sergei retruca.
Sim, o meu é excelente – diz o peixe impaciente. – Sou um peixe mágico. Fluente em todas as línguas.
A poça de sangue da cabeça do rapaz de brinco fica cada vez maior, e Sergei, desesperado, é obrigado a ficar colado à parede da cozinha para não pisar nela.
Ainda lhe resta um desejo – o peixe lembra Sergei.
Não – Sergei move a cabeça de um lado ao outro –, não posso. Eu o estou guardando.
Guardando para quê? – o peixe pergunta.
Mas Sergei não responde.
Sergei utilizou o primeiro desejo quando descobriram um câncer em sua irmã. Era um câncer de pulmão do tipo que a pessoa não se recupera. Mas o peixe acabou com ele em um segundo. O segundo desejo Sergei tinha desperdiçado cinco anos antes com o filho de Sveta. O garoto ainda era pequeno naquela época, nem tinha três anos, mas os médicos disseram que alguma coisa na cabeça dele não estava em ordem. Ele iria crescer retardado. Sveta chorou a noite toda, e de manhã Sergei voltou para casa e pediu para o peixe dar um jeito. Ele nunca contou isto para Sveta, e alguns meses depois ela o trocou por um policial, um marroquino, que tinha um Honda brilhante. Em seu coração, Sergei dizia que não tinha feito aquilo por Sveta, que formulara o desejo pelo menino. Mas, em sua mente, estava menos seguro, e todos os tipos de pensamentos sobre outras coisas que poderia ter feito com aquele desejo continuaram a corroê-lo, quase enlouquecendo-o. Ainda não formulara o terceiro desejo.
Posso trazê-lo de volta à vida – diz o peixe. – Posso fazer o tempo voltar para um instante antes de ele bater à sua porta. Posso fazer isso. Tudo o que precisa é fazer o pedido.
O peixe move a barbatana de um lado ao outro, um movimento que Sergei sabe que ele só faz quando está realmente emocionado. Entendeu que ele já estava farejando a liberdade. Depois do último desejo, Sergei não teria alternativa, seria obrigado a liberar o seu peixe mágico, o seu amigo.
Tudo ficará bem, de verdade – diz Sergei, meio para o peixe e meio para si. – Só preciso enxugar o sangue. E de noite, quando eu for pescar, vou amarrá-lo a uma pedra e jogá-lo ao mar. Ninguém jamais irá encontrá-lo. É isto. Não vou desperdiçar um pedido com isso.
Você matou uma pessoa, Sergei – diz o peixe –, mas não é um assassino de verdade. Se não vai desperdiçar um desejo com isso, então para que ele vai servir?
Foi em Tira que Yonatan encontrou finalmente o árabe cujo primeiro pedido era paz. Chamava-se Munir, era gordo, com um enorme bigode branco. Superfotogênico. O modo como formulou o desejo foi emocionante. Já durante a filmagem, Yonatan soube que ele seria sua peça promocional.
Ou ele ou o russo com as tatuagens que ele tinha encontrado em Jafa, aquele que olhou diretamente para a câmera e disse que, se encontrasse um peixe dourado falante, não iria lhe pedir nada, só o colocaria em uma grande jarra de vidro em uma prateleira e falaria com ele o dia todo, não importa sobre o quê. Talvez esporte, talvez política, sobre o que quer que um peixe estivesse interessado em falar.
Qualquer coisa, disse o russo, só para não ficar sozinho.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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