Meu amigo está apaixonado, e me agarra
na mesa do bar. Fala monotonamente, e com veemência, da carta que
recebeu e dos telegramas que passou em resposta ― três ou quatro
ou cinco telegramas grandes e sucessivos, trezentos e quarenta e oito
cruzeiros de telegramas.
Pergunto porque não telefonou para a
moça. Não tivera coragem, não saberia falar, tivera medo do
interurbano não estar bom, da moça não poder falar direito por que
haveria gente escutando, e então ele acharia que ela estava
indiferente e sofreria demais: tivera medo sobretudo da hora de
desligar, da solidão insuportável em que se sentiria então depois
de ouvir sua voz, tivera medo de dizer alguma coisa que ela achasse
ridículo e ele sentisse isso, preferira escrever em telegramas
frases que pelo menos enquanto não tivessem resposta ficariam
vibrando, e não tinha certeza se até aquele momento ela já teria
chegado em casa, quem sabe, talvez naquele instante mesmo estivesse
abrindo os telegramas, talvez ainda de pé na sala, ainda com a bolsa
a tiracolo, vindo da rua, um pouco espantada de receber tantos
Westerns urgentes.
E com certeza sentaria no sofá, sentiria
que alguém da família a interrogava mudamente sobre aqueles
telegramas e diria alguma coisa vaga para afastar o curioso, e quem
sabe começasse a procurar entre aqueles números que vêm em cima do
telegrama a hora da expedição, para saber qual tinha sido mandado
primeiro, a diferença de tempo de um para outro.
Ou não teria saído de casa aquele dia,
e os telegramas teriam chegado ao longo da tarde, o primeiro devia
ter sido entregue pelo meio dia e meia, o segundo pelas três horas,
a empregada da casa com certeza teria rido achando graça de virem
assim tantos telegramas para dona Maria.
Ou talvez tivesse saído cedo e
telefonado da cidade dizendo que ia jantar fora, e então sua irmã
por exemplo teria dito “aqui tem quatro telegramas para você”,
ficaria indecisa se mandava abrir ou não, perguntaria de onde “meu
Deus que será isso”? Talvez pensasse em alguma notícia ruim,
alguma desgraça que a procurava com urgência: “bem, vou dar um
pulo aí em casa”. E então teria tomado um táxi e ao abrir os
telegramas teria ficado aliviada mas ao mesmo tempo também um pouco
desapontada, “que ideia” entretanto sorrindo.
Meu amigo está apaixonado e imagina
coisas, agora é tarde demais para telefonar, além disso seria
terrível saber que a essa hora ela não estava em casa ― não
estar em casa no dia que recebeu aqueles telegramas tão apaixonados!
Estar com aquele casal amigo e aquele sujeito em uma boate dançando,
sorrindo, talvez gostando um pouco demais da companhia daquele
sujeito, um sujeito que dança bem e tem esse traquejo de boate e
senhoras, essa bobagem que afinal qualquer idiota pode ter, ao passo
que uma paixão assim tão profunda, tão profunda, ninguém no mundo
nunca teve:
― “Rubem, v. nem pode imaginar, ela é
uma coisa! Quanto mais a gente conhece mais adora e acha mais linda e
além disso a maneira de sentir as coisas é uma criatura como não
existe no mundo, eu não sei não, tenho até medo, nunca na minha
vida tive uma paixão assim, também só mesmo uma mulher como aquela
poderia me fazer sentir isso”.
Meu amigo está apaixonado, tira do bolso
o envelope e tem de fazer um esforço violento, sinto que faz esse
esforço de cavalheirismo para não me mostrar a carta, mas pede que
eu olhe o sobrescrito, como se achasse a coisa mais maravilhosa do
mundo o nome dele escrito pela mão daquele anjo. Pode haver coisa
mais excelente e mais suprema? Aliás a carta não tem nada de mais,
mas o jeito dela dizer as coisas, “você nem pode imaginar, é uma
cartinha pequena eu já li cinquenta vezes”. E guarda aquele
envelope branco escrito à tinta azul como se fosse o único original
da única mensagem divina autêntica jamais enviada a um ser humano ―
e a esse ser humano sendo precisamente ele!
Meu amigo está apaixonado, já bebeu um
pouco demais, tira do bolso a passagem do avião para o dia seguinte
para ter certeza de que vai mesmo, de que amanhã poderá rever
aqueles cabelos, aqueles olhos, e o sorriso triste e lindo, ouvir
aquela voz dizendo coisas amigas, coisas para ele, coisas de sonho,
de sonho.... Meu amigo está apaixonado ― e de repente, no bar que
avança pela madrugada como um velho barco meio vazio eu sinto uma
estranha piedade e uma estranha inveja e uma secreta humilhação.
Rubem Braga, in Correio da Manhã, 25/03/1954
Nenhum comentário:
Postar um comentário