Em visita de férias à França, em 1957,
então com 71 anos, Manuel Bandeira conseguiu finalmente conhecer
Samuel Beckett, cuja literatura o intrigava desde que lera Molloy,
em 1951, no original em francês. Acompanhava-o Gala, de quem o poeta
ficara amigo em Clavadel, quase quarenta anos antes. Gala tinha um
encontro marcado com Beckett; combinara um jantar naquela noite
fresca de maio.
O que espantara Bandeira, em Molloy ,
fora a frase: “Não espere ser caçado para se esconder”. O poeta
tinha notícias de como Beckett atuara bravamente na resistência
francesa e essa frase o incomodava.
“Não concordo que Molloy quisesse se
esconder. Moran estava condenado a caçá-lo e nunca o encontraria —
Molloy escondendo-se ou não. Sei que você vai dizer que toda a sua
obra é contraditória e que esse absurdo faz parte da linguagem do
livro. Mesmo assim, não me convenço. Esse não deveria ser o mote
de Molloy.”
Beckett assustou-se. Gostara do
brasileiro, vinte anos mais velho, que vinha de longe lhe reclamar um
suposto disparate. Quem era esse Manuel Bandeira?
Gala rapidamente lhe traduziu alguns
versos do poeta. Ser como o rio que deflui, silencioso dentro da
noite. Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste, passei o
dia à toa, à toa. Explicou-lhe que, de certa forma, seus versos se
pareciam com os de Emily Dickinson e que o português soava como uma
língua intensa e ao mesmo tempo calma, muito diferente da tensão e
escuridão do francês ou do inglês. Beckett conhecia um pouco.
Tinha dois grandes amigos portugueses.
Concordo. Molloy, mesmo enlouquecido, não
poderia dizer que preferia esconder-se. Ele podia ser tudo, mas não
covarde.
Foi com base nessa conversa, depois
relatada por Bandeira a seu amigo Evaristo Cintra, que o poeta
escreveu, alguns anos mais tarde:
Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa
limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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