sábado, 5 de dezembro de 2020

Não espere ser caçado

          Em visita de férias à França, em 1957, então com 71 anos, Manuel Bandeira conseguiu finalmente conhecer Samuel Beckett, cuja literatura o intrigava desde que lera Molloy, em 1951, no original em francês. Acompanhava-o Gala, de quem o poeta ficara amigo em Clavadel, quase quarenta anos antes. Gala tinha um encontro marcado com Beckett; combinara um jantar naquela noite fresca de maio.
O que espantara Bandeira, em Molloy , fora a frase: “Não espere ser caçado para se esconder”. O poeta tinha notícias de como Beckett atuara bravamente na resistência francesa e essa frase o incomodava.
Não concordo que Molloy quisesse se esconder. Moran estava condenado a caçá-lo e nunca o encontraria — Molloy escondendo-se ou não. Sei que você vai dizer que toda a sua obra é contraditória e que esse absurdo faz parte da linguagem do livro. Mesmo assim, não me convenço. Esse não deveria ser o mote de Molloy.”
Beckett assustou-se. Gostara do brasileiro, vinte anos mais velho, que vinha de longe lhe reclamar um suposto disparate. Quem era esse Manuel Bandeira?
Gala rapidamente lhe traduziu alguns versos do poeta. Ser como o rio que deflui, silencioso dentro da noite. Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste, passei o dia à toa, à toa. Explicou-lhe que, de certa forma, seus versos se pareciam com os de Emily Dickinson e que o português soava como uma língua intensa e ao mesmo tempo calma, muito diferente da tensão e escuridão do francês ou do inglês. Beckett conhecia um pouco. Tinha dois grandes amigos portugueses.
Concordo. Molloy, mesmo enlouquecido, não poderia dizer que preferia esconder-se. Ele podia ser tudo, mas não covarde.
Foi com base nessa conversa, depois relatada por Bandeira a seu amigo Evaristo Cintra, que o poeta escreveu, alguns anos mais tarde:

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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