sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Minha aldeia

          Até os meus vinte e tantos anos, passei todas as férias na aldeia. Até os trinta e tantos, eu voltava a Azinhaga pelo menos uma vez ao ano. Em Azinhaga estão guardadas minhas impressões fundamentais. Quando eu chegava à aldeia, a primeira coisa que fazia era tirar os sapatos. E a última coisa que fazia, antes de regressar a Lisboa, era calçá-los. Os sapatos, e a ausência deles, se tornaram um símbolo muito forte. Na aldeia, todos andavam descalços, menos os homens que usavam suas botas de trabalho.
[...]
[Durante as estadas em Azinhaga, quando criança] eu saía de casa pela manhã e dava longas caminhadas. Andava, andava sem parar. Não fui desses gênios que, aos quatro anos de idade, escrevem histórias. Apenas via as coisas do mundo e gostava de vê-las. Nunca fui de grandes imaginações. Eu não me interessava por fantasias, mas pelo que ocorria. Se um sapo me aparecia, eu ficava a vê-lo, quieto, a observá-lo atentamente como o maior tesouro do mundo. Convivi muito com animais: bois, porcos, carneiros, cabras. Convivi com seus cheiros e com essa espécie de vida nada sofisticada que os animais levam. Eu gostava de estar com a natureza sem abstrair dela nada mais do que ela é. Eu não era um menino muito imaginativo.
[...]
Minha aldeia era rodeada de olivais, com oliveiras antigas de troncos enormes. Elas desapareceram. Senti-me como se tivessem me roubado a infância. Hectares e hectares de oliveiras desapareceram para dar lugar a culturas mais lucrativas. A aldeia não mudou tanto, foi a paisagem que mudou. E essa mudança radical na paisagem foi, para mim, uma espécie de golpe no coração.
[...]
Regressar a Azinhaga, agora, é regressar a outro lugar que já não é o meu. A gente, na verdade, habita a memória. A aldeia em que nasci só existe em minha memória.

José Saramago, in A gente, na verdade, habita a memória, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de setembro de 1996 [Entrevista a José Castello]

Nenhum comentário:

Postar um comentário