Até os meus vinte e tantos anos, passei
todas as férias na aldeia. Até os trinta e tantos, eu voltava a
Azinhaga pelo menos uma vez ao ano. Em Azinhaga estão guardadas
minhas impressões fundamentais. Quando eu chegava à aldeia, a
primeira coisa que fazia era tirar os sapatos. E a última coisa que
fazia, antes de regressar a Lisboa, era calçá-los. Os sapatos, e a
ausência deles, se tornaram um símbolo muito forte. Na aldeia,
todos andavam descalços, menos os homens que usavam suas botas de
trabalho.
[...]
[Durante as estadas em Azinhaga, quando
criança] eu saía de casa pela manhã e dava longas caminhadas.
Andava, andava sem parar. Não fui desses gênios que, aos quatro
anos de idade, escrevem histórias. Apenas via as coisas do mundo e
gostava de vê-las. Nunca fui de grandes imaginações. Eu não me
interessava por fantasias, mas pelo que ocorria. Se um sapo me
aparecia, eu ficava a vê-lo, quieto, a observá-lo atentamente como
o maior tesouro do mundo. Convivi muito com animais: bois, porcos,
carneiros, cabras. Convivi com seus cheiros e com essa espécie de
vida nada sofisticada que os animais levam. Eu gostava de estar com a
natureza sem abstrair dela nada mais do que ela é. Eu não era um
menino muito imaginativo.
[...]
Minha aldeia era rodeada de olivais, com
oliveiras antigas de troncos enormes. Elas desapareceram. Senti-me
como se tivessem me roubado a infância. Hectares e hectares de
oliveiras desapareceram para dar lugar a culturas mais lucrativas. A
aldeia não mudou tanto, foi a paisagem que mudou. E essa mudança
radical na paisagem foi, para mim, uma espécie de golpe no coração.
[...]
Regressar a Azinhaga, agora, é regressar
a outro lugar que já não é o meu. A gente, na verdade, habita a
memória. A aldeia em que nasci só existe em minha memória.
José Saramago, in A gente, na verdade, habita a memória, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de setembro de 1996 [Entrevista a José Castello]
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