Mais digo ao senhor? Atirei, minhas
vezes. Aí, tomei ar. O senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a
gente esbarra e espera! espera o que vão responder. A gente quer
porções. Demais é que se está! muito no meio de nada. A morte? A
coisa que o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais
ter outros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar
se estragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhor ali não
tem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado de
árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao senhor,
dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, escorei,
repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita munição,
atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa mão, não
queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com assombro. Em isso
ele me crendo endoidado. Mas eu estava era de repente pensando em meu
padrinho Selorico Mendes.
Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não
quer?! ― foi o que arranjei vontade de gritar com o Hermógenes.
Cão, que ele. Ri mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o
Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E
aqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei meu.
...Se todos passam mão em arma e fecham
volta de tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba... ―
acho que pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente
marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilo como durou,
demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu todo podendo
descrever o Montesclarense, atrás dum toro de pau e moitas de
anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Vou longe. Se o senhor já
viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não
cabem em fazer ideia.
Combate quanto, combate grande. Ser
menos, que a gente não rastejava alterando de lugar, que não era o
caso. Quase que só quando se pega no defendimento é que isso é de
se fazer: para pensarem que se vai em número maior que a verdade.
Como não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de
lá chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era
catando mover alheio, cujo descuido, como malandro malandrêia. Nem
cento-e-cinquenta braças era o eito, jaculação minha. Aquilo
servia até para carga de bocamorte. E mais de um, eu etcétera, aí,
pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que para morrer estavam
com dia marcado. Minto? O senhor releve ideias. Era assim.
Deu vez de, os muitos tiros se
assanhavam, de prão, em riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí,
e as horas não acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol,
solão, debaixo eu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das
roupas, de sentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essas
dormências numas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia
avançar? Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não
desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para mostrar
mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço,
ali quase em minha frente. O Garanço tinha arrumado no chão o
bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de
xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas
dele, Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada,
alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu,
com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de leal
qualidade. Então, eu atirava, também. Bala e chumbo... ― eu
peguei a dizer. Bala e chumbo... Bala e chumbo... O lugar do coração
me apertando ― eu era carne muita e calor bravo. ― O que foi? Que
é? ― o Hermógenes me perguntou. ― Nada não! ― respondi. Bala
e chumbo... Chumbo e bala... Estrumes! Pelo que foi, de repente! bem
apartado, da banda esquerda de nós, uns homens dos nossos deram
figura, se pulando para diante, aos gritos, investiram ― contra o
contra!
Ao que, eram dois... Três... ― Diá! ―
o Hermógenes rosnou! ― Deu a fúria nesses, bute! Raspa que eles
por lá entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou, suspende
mos fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o
Montesclarense ― coitado! ― também tinha crescido para avante,
no igual, e, de lá, nele balearam. Caíu, catando cacos. Pobre. Deu
doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no vespeiro dos
bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se acabavam estraçalhados
que nem coelho com a cainça. Tomara tivessem aprontado seus alguns!
Assim aquilo sossegou, povo nosso demos raiva de fogo ― aí é que
foi atirar. O Hermógenes me resignou os ímpetos: ― Tatarana, te
trava, não dá de esquentar arma, gasta munição não. Só os tiros
bons poucos. Só cobrar o dizmo. Aquele homem fazia frio, feito
caramujo de sombra. A ver que tive sede, mas minha cabaça não dava
gota mais. Guardei meu cuspe.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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