domingo, 27 de dezembro de 2020

Guardei meu cuspe

          Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. O senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a gente esbarra e espera! espera o que vão responder. A gente quer porções. Demais é que se está! muito no meio de nada. A morte? A coisa que o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais ter outros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar se estragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhor ali não tem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado de árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao senhor, dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, escorei, repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita munição, atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa mão, não queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com assombro. Em isso ele me crendo endoidado. Mas eu estava era de repente pensando em meu padrinho Selorico Mendes.
Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?! ― foi o que arranjei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que ele. Ri mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E aqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei meu.
...Se todos passam mão em arma e fecham volta de tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba... ― acho que pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilo como durou, demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu todo podendo descrever o Montesclarense, atrás dum toro de pau e moitas de anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não cabem em fazer ideia.
Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a gente não rastejava alterando de lugar, que não era o caso. Quase que só quando se pega no defendimento é que isso é de se fazer: para pensarem que se vai em número maior que a verdade. Como não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de lá chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era catando mover alheio, cujo descuido, como malandro malandrêia. Nem cento-e-cinquenta braças era o eito, jaculação minha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E mais de um, eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que para morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhor releve ideias. Era assim.
Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, de prão, em riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão, debaixo eu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das roupas, de sentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essas dormências numas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia avançar? Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para mostrar mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhos nas costas do Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada, alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia de valentia. Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade. Então, eu atirava, também. Bala e chumbo... ― eu peguei a dizer. Bala e chumbo... Bala e chumbo... O lugar do coração me apertando ― eu era carne muita e calor bravo. ― O que foi? Que é? ― o Hermógenes me perguntou. ― Nada não! ― respondi. Bala e chumbo... Chumbo e bala... Estrumes! Pelo que foi, de repente! bem apartado, da banda esquerda de nós, uns homens dos nossos deram figura, se pulando para diante, aos gritos, investiram ― contra o contra!
Ao que, eram dois... Três... ― Diá! ― o Hermógenes rosnou! ― Deu a fúria nesses, bute! Raspa que eles por lá entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou, suspende mos fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o Montesclarense ― coitado! ― também tinha crescido para avante, no igual, e, de lá, nele balearam. Caíu, catando cacos. Pobre. Deu doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no vespeiro dos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se acabavam estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara tivessem aprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povo nosso demos raiva de fogo ― aí é que foi atirar. O Hermógenes me resignou os ímpetos: ― Tatarana, te trava, não dá de esquentar arma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Só cobrar o dizmo. Aquele homem fazia frio, feito caramujo de sombra. A ver que tive sede, mas minha cabaça não dava gota mais. Guardei meu cuspe.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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