sábado, 5 de dezembro de 2020

Giammaria Orte

          Havia um homem que desejava calcular tudo. Prazeres, dores, virtudes, vícios, verdades, erros: para cada aspecto do sentir e do agir humanos esse homem estava convencido de poder estabelecer uma fórmula algébrica e um sistema de quantificação numérica. Combatia a desordem da existência e a indeterminação do pensamento com a arma da “exatidão geométrica”, isto é, de um estilo intelectual feito de contraposições nítidas e consequências lógicas irrefutáveis. O desejo do prazer e o temor da força eram para ele as únicas certezas das quais partir para penetrar na consciência do mundo humano: só por esta via podia chegar a estabelecer que também valores como a justiça e a abnegação tinham algum fundamento.
O mundo era um mecanismo de forças impiedosas; “o valor das opiniões são as riquezas, sendo notório que estas permutam e compram as opiniões”; “o homem é um feixe de ossos ligados por tendões, músculos e outras membranas”. É natural que o autor dessas máximas tenha vivido no século XVIII. Do homem-máquina de La Mettrie ao triunfo da cruel volúpia da Natureza em Sade, o espírito do século não conhece meias medidas ao desmentir qualquer visão providencial do homem e do mundo. E é natural também que tenha vivido em Veneza: em seu lento crepúsculo, a Sereníssima se sentia mais que nunca prisioneira no jogo massacrante das grandes potências, obcecada pelos lucros e perdas dos balanços de seus tráficos; e mais que nunca imersa em seu hedonismo, nas salas de jogo, nos teatros, nas festas. Que lugar podia oferecer mais sugestões a um homem que desejava calcular tudo? Ele se sentia chamado a investigar o sistema para vencer como no jogo de faraó, bem como a encontrar a justa medida das paixões num melodrama; e também a discutir sobre a ingerência do governo na economia privada e sobre a riqueza e a pobreza das nações. Mas a personagem da qual estamos falando não era um libertino na doutrina como Helvétius nem tampouco como Casanova na prática, e não era também um reformador que lutasse pelo progresso das Luzes, como seus contemporâneos milaneses da revista Il Caffè. (O Discorso sull‘indole del piacere e del dolore de Pietro Verri sai em 1773, depois que o nosso veneziano publicara, em 1757, o seu Calcolo de’ piaceri e de’ dolori della vita umana.) Giammaria Ortes, assim se chamava, era um padre seco e irascível, que opunha a complexa couraça de sua lógica aos avisos de terremoto que serpenteavam pela Europa e que repercutiam nos fundamentos de sua Veneza. Pessimista como Hobbes, paradoxal como Mandeville, argumentador peremptório e escritor preciso e amargo, quando lido não deixa dúvidas quanto à sua colocação entre os mais desencantados defensores da Razão com erre maiúsculo; e temos de fazer um certo esforço para aceitar os outros dados que os biógrafos e os conhecedores de sua obra completa nos fornecem sobre sua intransigência em matéria religiosa e sobre um substancial conservadorismo. (Ver Gianfranco Torcellan que, em 1961, trouxe à luz na “Universale” Einaudi as Riflessioni di um filosofo americano, um dos mais significativos “opúsculos morais” de Ortes.) E que isso nos ensine a confiar nas ideias recebidas e nos clichês: como a imagem de um Setecentos em que se defrontavam uma religiosidade toda pathos e uma racionalidade fria e descrente; a realidade é sempre mais facetada e os mesmos elementos se encontram combinados e sistematizados segundo diferentes possibilidades. Por trás da visão mais mecânica e matemática da natureza humana pode bem se instalar o pessimismo católico sobre as coisas terrenas: as formas exatas e cristalinas emergem do pó e ao pó hão de voltar.
Veneza era então mais que nunca o palco ideal para personagens excêntricas, um caleidoscópio de caracteres goldonianos: esse padre misantropo e obcecado com a aritmomania, que um desenho da época retrata com uma peruca bem-composta, o queixo agudo e um sorrisinho meio birrento, podemos muito bem imaginá-lo entrando em cena com o ar de quem está habituado a se ver no meio de gente que não quer entender o que para ele é tão simples, e nem assim renuncia a dar sua opinião e a lamentar os erros alheios, até que o vemos perder-se ao longe, na pracinha, meneando a cabeça.
Não por acaso Ortes pertence a um século teatral e à cidade teatral por excelência. A frase com que ele costuma encerrar os próprios textos: “Quem pode me dizer se não estou fingindo?” nos insinua a dúvida de que suas demonstrações matemáticas não passem de paradoxos satíricos e o lógico inexorável que figura como autor seja apenas a máscara caricatural que oculta uma outra ciência, uma outra verdade. Seria só uma fórmula ditada por uma prudência compreensível, para prevenir condenações advindas da autoridade eclesiástica? Não por acaso Ortes admirava acima de qualquer outro Galileu, o qual punha no centro de seu Dialogo uma personagem, seu porta-voz Salviati, que declarava estar somente recitando o papel de Copérnico, mesmo sendo agnóstico, e de participar do debate apenas como de um jogo de máscaras… Um sistema desse tipo pode demonstrar-se uma preocupação mais ou menos eficaz (não o foi para Galileu, mas para Ortes, pelo que sabemos, funcionou), mas é de qualquer modo testemunho do prazer que o autor experimenta pelo jogo literário. “Quem pode me dizer se não estou fingindo?”: na pergunta o jogo de luzes e sombras do teatro se instala no cerne do discurso, deste e quem sabe de todos os discursos humanos; quem decide se aquilo que está sendo dito é sustentado como verdade ou como ficção? Não o autor, dado que ele se sujeita (“quem pode me dizer”) à decisão de seu público; mas nem o público, dado que a pergunta é dirigida a um hipotético “quem”, que poderia também não existir. Talvez cada filósofo traga em si um ator que recita seu próprio papel, sem que o primeiro nele possa intervir; talvez cada filosofia, cada doutrina contenha um enredo de comédia que não se sabe bem onde começa e termina.
(Cerca de meio século depois, Fourier apresentará ao mundo uma figura igualmente contraditória e ainda completamente setecentista: também ele aritmomaníaco, também ele raciocinador radical mas inimigo dos philosophes, também ele hedonista e sensualista, e eudemonista na doutrina, também ele austero, solitário e carrancudo na vida, também ele apaixonado por espetáculos, também ele que se obriga a se colocar continuamente a pergunta: “Quem pode me dizer se não estou fingindo?”…)
Todo homem por natureza é levado ao prazer dos sentidos”, assim ressoa o início de Calcolo sopra il valore delle opinioni umane; e prossegue: “por isso, todos os objetos externos se tornam ao mesmo tempo objeto particular do desejo de cada homem”. Para apropriar-se de tais objetos de desejo, o homem é levado a usar a força e entra em conflito com a força alheia; daí a necessidade do cálculo das forças que se neutralizam reciprocamente. A natureza não é para Ortes uma imagem materna como para Rousseau, e o contrato social que daí nasce é como um paralelogramo de forças num manual de física. Se os homens na busca do prazer não se destroem mutuamente, isso se deve à opinião, fundamento de todos os aspectos daquilo que hoje chamamos de cultura em sentido lato. A opinião é o “motivo pelo qual a força congregada de todos atua mais ou menos a favor de cada um”. Não é a virtude, que é o dom celeste e como tal permite sacrificar-se pelo bem alheio; aqui estamos na terra, e vale somente a opinião, enquanto seu fim “é o interesse próprio”. A respeito de como exemplos sublimes de heroísmo e amor pátrio da história romana se explicam como cálculo pelo interesse próprio, Ortes dá demonstrações que poderiam ser avalizadas pelo behaviorismo de B. F. Skinner ou pela sociobiologia de E. O. Wilson.
As “opiniões” são aquelas formas de pensamento que permitem aceitar que determinadas categorias de pessoas disponham, cada uma a seu modo, de determinadas riquezas ou privilégios. Ortes cita sobretudo quatro: da nobreza, do comércio, das armas, das letras; ele trata de definir a fórmula do “valor” de cada uma dessas opiniões, e por “valor” entende nem mais nem menos que a renda.
Em suma, a “opinião” equivaleria àquilo que em tempos mais próximos nos habituamos a chamar de “ideologia”, e nesse caso particular a “ideologia de classe”; mas Ortes, muito mais brutalmente que qualquer outro materialista histórico, não perde tempo em observar as especificidades superestruturais e se apressa em traduzir tudo em termos econômicos, ou melhor, em cifras de lucros e custos.
A conclusão, que numa sociedade mais numerosa se desfrutam mais prazeres e se sofrem menos temores (em suma, seríamos mais livres) do que seria possível fora de qualquer sociedade ou numa sociedade mais restrita, é um axioma que poderia ser desenvolvido num tratado de sociologia, para ser confirmado, determinado com exatidão, corrigido segundo nossa experiência atual; bem como uma tipologia inteira e casuística de conformismos e rebeldias, julgados conforme sua relativa sociabilidade ou associabilidade, poder-se-ia extrair da frase final do ensaio, em que são contrapostos aquele que é “suscetível” de maior número de opiniões e o “suscetível de menor número”: um “sempre mais tímido, mais cortês e mais simulado”, o outro “mais sincero, mais livre e mais selvagem”.
Construtor de sistemas e de mecanismos, Ortes não podia ter uma inclinação especial pela história, ou melhor, podemos dizer que pouco entendia do que fosse a história. Ele que demonstrara como a sociedade se baseia somente na opinião considera a verdade histórica só como testemunho ocular e num nível imediatamente inferior ao que se escuta de viva voz das testemunhas dos fatos. Mas, nas conclusões do Calcolo sopra la verità dell’istoria, Ortes revela um desejo de conhecimento cósmico direcionado para o detalhe infinitesimal e irrepetível: ele que sempre tende a exaurir o humano numa álgebra de elementos abstratos, que condena toda pretensão de conhecimento geral que não seja baseada numa inalcançável soma de todas as experiências particulares.
Claro, o seu método o conduzia às generalizações, reforçado pelo talento para as sínteses conceituais. Como nas caracterizações que ele traça do italiano, do francês, do inglês e do alemão, tratando do teatro das quatro nações: o francês baseado na mudança, o inglês na “fixação”, o italiano na “primeira impressão” e o alemão na “última”. “Primeira impressão” quer dizer, penso eu, imediatismo, e “última impressão”, reflexão; o termo mais difícil a ser decodificado é fixação , mas, pensando que sem dúvida era Shakespeare que ele tinha em mente para o teatro inglês, creio que falasse de levar as paixões e as ações às últimas consequências, e também de um excesso nas caracterizações e nos efeitos. A partir daí Ortes postula uma afinidade entre italianos e ingleses, pois suas qualidades têm como pressuposto a “fantasia”, e entre franceses e alemães, porque para eles conta mais a “razão”.
Esse discurso abre o texto mais vivaz e mais rico de Giammaria Ortes, as Riflessioni sul teatro per musica, onde a “exatidão geométrica” de seu método é aplicada às simetrias e às inversões das situações do melodrama. Aqui, o hedonismo programático de Ortes aponta para um bem menos incerto que tantos outros: o “divertimento” que a civilização veneziana sabia colocar no centro da vida social. E aqui se vê quanto a experiência empírica, mais que a razão matematizante, é o fundamento das reflexões do autor. “Todo divertimento consiste num movimento diferente que se recebe no órgão do sentido. O prazer nasce daquela diversidade de movimento, como o tédio da sua continuação. Assim, alguém que deseje dar um prazer que ultrapasse as três horas esteja certo de provocar tédio.”
Talvez a distração da música e do espetáculo, as emoções e as esperanças do jogador sejam os únicos prazeres não ilusórios. Quanto ao resto, um fundo de relativismo melancólico transparece sob todas as certezas. O Calcolo de’ piaceri e de’ dolori della vita umana se encerra com estas palavras: “Se essas doutrinas acreditam redundar em vergonha da espécie humana, eu próprio me considero dessa espécie sem me lamentar; e se concluo que todas as dores e os prazeres desta vida não passam de ilusões, posso acrescentar que todos os raciocínios humanos não passam de loucuras. E quando digo todos, não excetuo os meus cálculos”.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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