Havia um homem que desejava calcular
tudo. Prazeres, dores, virtudes, vícios, verdades, erros: para cada
aspecto do sentir e do agir humanos esse homem estava convencido de
poder estabelecer uma fórmula algébrica e um sistema de
quantificação numérica. Combatia a desordem da existência e a
indeterminação do pensamento com a arma da “exatidão
geométrica”, isto é, de um estilo intelectual feito de
contraposições nítidas e consequências lógicas irrefutáveis. O
desejo do prazer e o temor da força eram para ele as únicas
certezas das quais partir para penetrar na consciência do mundo
humano: só por esta via podia chegar a estabelecer que também
valores como a justiça e a abnegação tinham algum fundamento.
O mundo era um mecanismo de forças
impiedosas; “o valor das opiniões são as riquezas, sendo notório
que estas permutam e compram as opiniões”; “o homem é um feixe
de ossos ligados por tendões, músculos e outras membranas”. É
natural que o autor dessas máximas tenha vivido no século XVIII. Do
homem-máquina de La Mettrie ao triunfo da cruel volúpia da Natureza
em Sade, o espírito do século não conhece meias medidas ao
desmentir qualquer visão providencial do homem e do mundo. E é
natural também que tenha vivido em Veneza: em seu lento crepúsculo,
a Sereníssima se sentia mais que nunca prisioneira no jogo
massacrante das grandes potências, obcecada pelos lucros e perdas
dos balanços de seus tráficos; e mais que nunca imersa em seu
hedonismo, nas salas de jogo, nos teatros, nas festas. Que lugar
podia oferecer mais sugestões a um homem que desejava calcular tudo?
Ele se sentia chamado a investigar o sistema para vencer como no jogo
de faraó, bem como a encontrar a justa medida das paixões num
melodrama; e também a discutir sobre a ingerência do governo na
economia privada e sobre a riqueza e a pobreza das nações. Mas a
personagem da qual estamos falando não era um libertino na doutrina
como Helvétius nem tampouco como Casanova na prática, e não era
também um reformador que lutasse pelo progresso das Luzes, como seus
contemporâneos milaneses da revista Il Caffè. (O Discorso
sull‘indole del piacere e del dolore de Pietro Verri sai em
1773, depois que o nosso veneziano publicara, em 1757, o seu Calcolo
de’ piaceri e de’ dolori della vita umana.) Giammaria Ortes,
assim se chamava, era um padre seco e irascível, que opunha a
complexa couraça de sua lógica aos avisos de terremoto que
serpenteavam pela Europa e que repercutiam nos fundamentos de sua
Veneza. Pessimista como Hobbes, paradoxal como Mandeville,
argumentador peremptório e escritor preciso e amargo, quando lido
não deixa dúvidas quanto à sua colocação entre os mais
desencantados defensores da Razão com erre maiúsculo; e temos de
fazer um certo esforço para aceitar os outros dados que os biógrafos
e os conhecedores de sua obra completa nos fornecem sobre sua
intransigência em matéria religiosa e sobre um substancial
conservadorismo. (Ver Gianfranco Torcellan que, em 1961, trouxe à
luz na “Universale” Einaudi as Riflessioni di um filosofo
americano, um dos mais significativos “opúsculos morais” de
Ortes.) E que isso nos ensine a confiar nas ideias recebidas e nos
clichês: como a imagem de um Setecentos em que se defrontavam uma
religiosidade toda pathos e uma racionalidade fria e descrente; a
realidade é sempre mais facetada e os mesmos elementos se encontram
combinados e sistematizados segundo diferentes possibilidades. Por
trás da visão mais mecânica e matemática da natureza humana pode
bem se instalar o pessimismo católico sobre as coisas terrenas: as
formas exatas e cristalinas emergem do pó e ao pó hão de voltar.
Veneza era então mais que nunca o palco
ideal para personagens excêntricas, um caleidoscópio de caracteres
goldonianos: esse padre misantropo e obcecado com a aritmomania, que
um desenho da época retrata com uma peruca bem-composta, o queixo
agudo e um sorrisinho meio birrento, podemos muito bem imaginá-lo
entrando em cena com o ar de quem está habituado a se ver no meio de
gente que não quer entender o que para ele é tão simples, e nem
assim renuncia a dar sua opinião e a lamentar os erros alheios, até
que o vemos perder-se ao longe, na pracinha, meneando a cabeça.
Não por acaso Ortes pertence a um século
teatral e à cidade teatral por excelência. A frase com que ele
costuma encerrar os próprios textos: “Quem pode me dizer se não
estou fingindo?” nos insinua a dúvida de que suas demonstrações
matemáticas não passem de paradoxos satíricos e o lógico
inexorável que figura como autor seja apenas a máscara caricatural
que oculta uma outra ciência, uma outra verdade. Seria só uma
fórmula ditada por uma prudência compreensível, para prevenir
condenações advindas da autoridade eclesiástica? Não por acaso
Ortes admirava acima de qualquer outro Galileu, o qual punha no
centro de seu Dialogo uma personagem, seu porta-voz Salviati,
que declarava estar somente recitando o papel de Copérnico, mesmo
sendo agnóstico, e de participar do debate apenas como de um jogo de
máscaras… Um sistema desse tipo pode demonstrar-se uma preocupação
mais ou menos eficaz (não o foi para Galileu, mas para Ortes, pelo
que sabemos, funcionou), mas é de qualquer modo testemunho do prazer
que o autor experimenta pelo jogo literário. “Quem pode me dizer
se não estou fingindo?”: na pergunta o jogo de luzes e sombras do
teatro se instala no cerne do discurso, deste e quem sabe de todos os
discursos humanos; quem decide se aquilo que está sendo dito é
sustentado como verdade ou como ficção? Não o autor, dado que ele
se sujeita (“quem pode me dizer”) à decisão de seu público;
mas nem o público, dado que a pergunta é dirigida a um hipotético
“quem”, que poderia também não existir. Talvez cada filósofo
traga em si um ator que recita seu próprio papel, sem que o primeiro
nele possa intervir; talvez cada filosofia, cada doutrina contenha um
enredo de comédia que não se sabe bem onde começa e termina.
(Cerca de meio século depois, Fourier
apresentará ao mundo uma figura igualmente contraditória e ainda
completamente setecentista: também ele aritmomaníaco, também ele
raciocinador radical mas inimigo dos philosophes, também ele
hedonista e sensualista, e eudemonista na doutrina, também ele
austero, solitário e carrancudo na vida, também ele apaixonado por
espetáculos, também ele que se obriga a se colocar continuamente a
pergunta: “Quem pode me dizer se não estou fingindo?”…)
“Todo homem por natureza é levado ao
prazer dos sentidos”, assim ressoa o início de Calcolo sopra il
valore delle opinioni umane; e prossegue: “por isso, todos os
objetos externos se tornam ao mesmo tempo objeto particular do desejo
de cada homem”. Para apropriar-se de tais objetos de desejo, o
homem é levado a usar a força e entra em conflito com a força
alheia; daí a necessidade do cálculo das forças que se neutralizam
reciprocamente. A natureza não é para Ortes uma imagem materna como
para Rousseau, e o contrato social que daí nasce é como um
paralelogramo de forças num manual de física. Se os homens na busca
do prazer não se destroem mutuamente, isso se deve à opinião,
fundamento de todos os aspectos daquilo que hoje chamamos de cultura
em sentido lato. A opinião é o “motivo pelo qual a força
congregada de todos atua mais ou menos a favor de cada um”. Não é
a virtude, que é o dom celeste e como tal permite sacrificar-se pelo
bem alheio; aqui estamos na terra, e vale somente a opinião,
enquanto seu fim “é o interesse próprio”. A respeito de como
exemplos sublimes de heroísmo e amor pátrio da história romana se
explicam como cálculo pelo interesse próprio, Ortes dá
demonstrações que poderiam ser avalizadas pelo behaviorismo de B.
F. Skinner ou pela sociobiologia de E. O. Wilson.
As “opiniões” são aquelas formas de
pensamento que permitem aceitar que determinadas categorias de
pessoas disponham, cada uma a seu modo, de determinadas riquezas ou
privilégios. Ortes cita sobretudo quatro: da nobreza, do comércio,
das armas, das letras; ele trata de definir a fórmula do “valor”
de cada uma dessas opiniões, e por “valor” entende nem mais nem
menos que a renda.
Em suma, a “opinião” equivaleria
àquilo que em tempos mais próximos nos habituamos a chamar de
“ideologia”, e nesse caso particular a “ideologia de classe”;
mas Ortes, muito mais brutalmente que qualquer outro materialista
histórico, não perde tempo em observar as especificidades
superestruturais e se apressa em traduzir tudo em termos econômicos,
ou melhor, em cifras de lucros e custos.
A conclusão, que numa sociedade mais
numerosa se desfrutam mais prazeres e se sofrem menos temores (em
suma, seríamos mais livres) do que seria possível fora de qualquer
sociedade ou numa sociedade mais restrita, é um axioma que poderia
ser desenvolvido num tratado de sociologia, para ser confirmado,
determinado com exatidão, corrigido segundo nossa experiência
atual; bem como uma tipologia inteira e casuística de conformismos e
rebeldias, julgados conforme sua relativa sociabilidade ou
associabilidade, poder-se-ia extrair da frase final do ensaio, em que
são contrapostos aquele que é “suscetível” de maior número de
opiniões e o “suscetível de menor número”: um “sempre mais
tímido, mais cortês e mais simulado”, o outro “mais sincero,
mais livre e mais selvagem”.
Construtor de sistemas e de mecanismos,
Ortes não podia ter uma inclinação especial pela história, ou
melhor, podemos dizer que pouco entendia do que fosse a história.
Ele que demonstrara como a sociedade se baseia somente na opinião
considera a verdade histórica só como testemunho ocular e num nível
imediatamente inferior ao que se escuta de viva voz das testemunhas
dos fatos. Mas, nas conclusões do Calcolo sopra la verità
dell’istoria, Ortes revela um desejo de conhecimento cósmico
direcionado para o detalhe infinitesimal e irrepetível: ele que
sempre tende a exaurir o humano numa álgebra de elementos abstratos,
que condena toda pretensão de conhecimento geral que não seja
baseada numa inalcançável soma de todas as experiências
particulares.
Claro, o seu método o conduzia às
generalizações, reforçado pelo talento para as sínteses
conceituais. Como nas caracterizações que ele traça do italiano,
do francês, do inglês e do alemão, tratando do teatro das quatro
nações: o francês baseado na mudança, o inglês na “fixação”,
o italiano na “primeira impressão” e o alemão na “última”.
“Primeira impressão” quer dizer, penso eu, imediatismo, e
“última impressão”, reflexão; o termo mais difícil a ser
decodificado é fixação , mas, pensando que sem dúvida era
Shakespeare que ele tinha em mente para o teatro inglês, creio que
falasse de levar as paixões e as ações às últimas consequências,
e também de um excesso nas caracterizações e nos efeitos. A partir
daí Ortes postula uma afinidade entre italianos e ingleses, pois
suas qualidades têm como pressuposto a “fantasia”, e entre
franceses e alemães, porque para eles conta mais a “razão”.
Esse discurso abre o texto mais vivaz e
mais rico de Giammaria Ortes, as Riflessioni sul teatro per
musica, onde a “exatidão geométrica” de seu método é
aplicada às simetrias e às inversões das situações do melodrama.
Aqui, o hedonismo programático de Ortes aponta para um bem menos
incerto que tantos outros: o “divertimento” que a civilização
veneziana sabia colocar no centro da vida social. E aqui se vê
quanto a experiência empírica, mais que a razão matematizante, é
o fundamento das reflexões do autor. “Todo divertimento consiste
num movimento diferente que se recebe no órgão do sentido. O prazer
nasce daquela diversidade de movimento, como o tédio da sua
continuação. Assim, alguém que deseje dar um prazer que ultrapasse
as três horas esteja certo de provocar tédio.”
Talvez a distração da música e do
espetáculo, as emoções e as esperanças do jogador sejam os únicos
prazeres não ilusórios. Quanto ao resto, um fundo de relativismo
melancólico transparece sob todas as certezas. O Calcolo de’
piaceri e de’ dolori della vita umana se encerra com estas
palavras: “Se essas doutrinas acreditam redundar em vergonha da
espécie humana, eu próprio me considero dessa espécie sem me
lamentar; e se concluo que todas as dores e os prazeres desta vida
não passam de ilusões, posso acrescentar que todos os raciocínios
humanos não passam de loucuras. E quando digo todos, não excetuo os
meus cálculos”.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário