Mal educado eu sou, mas ingrato não é
verdade. O que me falta é organização, por dentro e por fora, para
transformar em atos materiais a minha ressonância afetiva. Sou um
fracasso nesse capítulo das obrigações (já não digo as sociais,
as de amizade), e nem me cuido mais de consertar-me, isto é, a não
ser no ano que vem. O ano que vem, sim, vou arrumar minha mesa, minha
gaveta, minha vida, vou responder às cartas todas, telegrafar,
telefonar, presentear, mandar flores, agradecer, comparecer, abraçar,
sorrir, perguntar, desfazer equívocos. Este ano ainda não foi
possível, perdoai-me.
Só me resta portanto o golpe bastante
desonesto de registrar nesta página um agradecimento geral a todos
os meus amigos e pessoas gentis. Obrigado para todos que me mandaram
cartões de boas-festas, alguns de tão longe, e há tanto tempo sem
encontros pessoais, que me encheram de confusão. Agradeço aos que
enviaram presentes a quem não os merece, agradeço aos que me
convidaram para as festas, estendendo o agradecimento a todos que
foram amáveis comigo, prestando-me obséquios, aturando-me,
chamando-me para cerimônias, enviando-me livros, dando-me de comer e
de beber em suas casas. Agradeço aos leitores que me escreveram
cartas, cordiais ou de crítica, e aos que delicadamente se
silenciaram sobre meus descaminhos de forma e pensamento. A todos os
meus amigos e companheiros desejo um ano novo pelo menos sem grandes
problemas. A meus inimigos, se os tiver, desejo uma boa indigestão,
coisa ainda melhor que a mesa vazia.
Quanto a Papai Noel, dane-se. Não gosto
dele. Trata-se de um velho antipático, gorducho, falando português
com um intolerável sotaque anglo-saxônio, bebedor de licores
fortes, mentiroso, muito ligado aos grupos financeiros mais
tentaculares, protetor de comerciantes espertos, demagogo e vulgar.
Há muito que um enfarte do miocárdio
poderia levar o velho para o país das neves eternas. Mas Papai Noel
vem resistindo a tudo, intrigando, sorrindo, falando no rádio e na
televisão, prometendo a todos e dando muito somente a quem não
precisa. Papai Noel é um chato, além de tudo barulhento, nariz
vermelho, usando nos trópicos um absurdo jibão e capuz.
Refletido nos olhos das crianças, é
verdade consegue ludibriar-nos o sentimento, induzindonos a uma
inútil ternura. E só. Se a criança pisca os olhos ou vira o rosto,
Papai Noel transforma-se de novo em homem prático, mais que prático,
interesseiro e fingido como o primeiro sujeito que imaginou ganhar
dez por cento sem fazer muita força. Trata-se de fato do
arqui-public-relations, um cara que envelheceu na arte marota de
canalizar o dinheiro de quem tem pouco para o bolso de quem tem
muito. Não é à toa que as iniciais de seu nome (PN) significam
publicidade e negócios.
Enfim, não estou de muito bom humor: foi
um crooked year,
mais um.
Mas diz um provérbio judaico que Deus,
não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães
são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da
vigilância, como se inclinam, ilimitadas, incessantemente sobre os
filhos, almas verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer
pensar com o seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu
coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações
e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua
casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada,
quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: “Meu
filho, você anda comendo muito, cuidado com a arterioesclerose.”
Acordei em pânico e cheio de lúcida
gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-me é uma das espertezas
das mães. Mas a esperteza de minha mãe foi ainda maior. Não ando
comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à
arterioesclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do
estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho.
Na realidade, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis,
exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi,
coisas. Sim, tinha exagerado nestes últimos dias. E o que minha mãe
pretende me dizer é claro como água: “Meu filho, você anda
bebendo muito, cuidado com a cirrose.”
Mas é do coração que morri.
Paulo Mendes Campos, in Portal da Crônica Brasileira
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