quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Fim de ano

          Mal educado eu sou, mas ingrato não é verdade. O que me falta é organização, por dentro e por fora, para transformar em atos materiais a minha ressonância afetiva. Sou um fracasso nesse capítulo das obrigações (já não digo as sociais, as de amizade), e nem me cuido mais de consertar-me, isto é, a não ser no ano que vem. O ano que vem, sim, vou arrumar minha mesa, minha gaveta, minha vida, vou responder às cartas todas, telegrafar, telefonar, presentear, mandar flores, agradecer, comparecer, abraçar, sorrir, perguntar, desfazer equívocos. Este ano ainda não foi possível, perdoai-me.
Só me resta portanto o golpe bastante desonesto de registrar nesta página um agradecimento geral a todos os meus amigos e pessoas gentis. Obrigado para todos que me mandaram cartões de boas-festas, alguns de tão longe, e há tanto tempo sem encontros pessoais, que me encheram de confusão. Agradeço aos que enviaram presentes a quem não os merece, agradeço aos que me convidaram para as festas, estendendo o agradecimento a todos que foram amáveis comigo, prestando-me obséquios, aturando-me, chamando-me para cerimônias, enviando-me livros, dando-me de comer e de beber em suas casas. Agradeço aos leitores que me escreveram cartas, cordiais ou de crítica, e aos que delicadamente se silenciaram sobre meus descaminhos de forma e pensamento. A todos os meus amigos e companheiros desejo um ano novo pelo menos sem grandes problemas. A meus inimigos, se os tiver, desejo uma boa indigestão, coisa ainda melhor que a mesa vazia.
Quanto a Papai Noel, dane-se. Não gosto dele. Trata-se de um velho antipático, gorducho, falando português com um intolerável sotaque anglo-saxônio, bebedor de licores fortes, mentiroso, muito ligado aos grupos financeiros mais tentaculares, protetor de comerciantes espertos, demagogo e vulgar.
Há muito que um enfarte do miocárdio poderia levar o velho para o país das neves eternas. Mas Papai Noel vem resistindo a tudo, intrigando, sorrindo, falando no rádio e na televisão, prometendo a todos e dando muito somente a quem não precisa. Papai Noel é um chato, além de tudo barulhento, nariz vermelho, usando nos trópicos um absurdo jibão e capuz.
Refletido nos olhos das crianças, é verdade consegue ludibriar-nos o sentimento, induzindonos a uma inútil ternura. E só. Se a criança pisca os olhos ou vira o rosto, Papai Noel transforma-se de novo em homem prático, mais que prático, interesseiro e fingido como o primeiro sujeito que imaginou ganhar dez por cento sem fazer muita força. Trata-se de fato do arqui-public-relations, um cara que envelheceu na arte marota de canalizar o dinheiro de quem tem pouco para o bolso de quem tem muito. Não é à toa que as iniciais de seu nome (PN) significam publicidade e negócios.
Enfim, não estou de muito bom humor: foi um crooked year, mais um.
Mas diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, ilimitadas, incessantemente sobre os filhos, almas verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: “Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arterioesclerose.”
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-me é uma das espertezas das mães. Mas a esperteza de minha mãe foi ainda maior. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arterioesclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nestes últimos dias. E o que minha mãe pretende me dizer é claro como água: “Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.”
Mas é do coração que morri.

Paulo Mendes Campos, in Portal da Crônica Brasileira

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