quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Eles

          Não farejam, eles. E ouvem mal, quase nada. Enxergam coisas estranhas e, quando olham no espelho, pensam ver o reflexo de si e não outra criatura. Andam com a cabeça no ar, sem quase nunca encostá-la em nada, a não ser em casos de necessidade ou fraqueza, quando se recostam em ombros ou paredes. Não sabem encostar o queixo no chão e mal percebem a terra que lhes dá suporte. Como poderiam farejar as coisas, enfiados que estão com o nariz no nada? Por isso não sentem a chuva chegando e apoiam-se em nossos barulhos para se preparar para ela, dizendo que nós a antecipamos. Dizem muitas coisas, aliás, semelhantes a essa — antecipar. Não escutam muito bem nossas vozes, só ligeiras diferenças. Não ouvem quando dizemos de uma falta, de uma doença, da luz de uma campina distante. Os mais sensíveis percebem apenas quando queremos atenção, comida, sair ou nos divertir com nossos pares. Tudo porque só conseguem ouvir o que se pronuncia; pensam em sílabas. Ouvem coisas articuladas e, por isso, só entendem o que se pensa, uma invenção que eles acreditam fazer sentido. Dizem, aliás, que nós não pensamos — embora alguns até admitam que sim. Mas o que é isso de pensar? Eles mesmos mal sabem, incapazes que são de discriminar o pensamento da própria linguagem. Pensar é estar doente dos olhos, disse um deles. Outro achava que existia simplesmente por afirmar que pensava. Pensar, a maioria deles diz, é exercer o raciocínio lógico; é a capacidade de julgar; é o processo pelo qual a consciência apreende ou reconhece as coisas e delas forma conceitos. Definições que só reproduzem labirinticamente o próprio pensamento, ou o que eles acham que isso seja. Dizem-se pensantes e, por essa razão, creem-se superiores. Pois pensar, ouvi de um deles, é derivado de pesar e vem da necessidade de conhecer o peso das mercadorias. Ou seja, é só uma urgência econômica, como tudo o que eles fazem. Mas se pensar é pesar, quem pesa mais e melhor? Quem sabe reconhecer os passos de um gato, uma raposa, um rato, até de uma formiga, ou de uma entre muitas pessoas? Quem ouve o peso da água, do ar, da terra que se mexe? Quem mede o peso para o salto, para a queda, para a caça? Em quem eles confiam para arrebanhar as ovelhas, para alcançar o pato, para encontrar o buraco? Quem conhece o peso dos cheiros? E depois ainda dizem que pensam, quando mal se lembram que pensar é ter as patas (que eles chamam de mãos) sobre a terra. E é por isso que sua ideia de pensamento está ligada à cabeça e, o que é pior, ao que vai dentro dela, como se fosse possível pesar com as ideias. Ideias. Acham que é uma coisa sem substância, uma cadeia interna de palavras, e se esquecem de que sonham. Acham bonito que também nós sonhemos. Espantam-se com nossos movimentos noturnos, como mexemos as pernas em curtos espasmos, reviramos os olhos mais rápida ou lentamente. Olha como eles também sonham, dizem. Tudo o que de melhor nós fazemos, para eles, é o que os faz lembrar de si. Se entendemos uma óbvia negociação, por exemplo, que depois de comer vamos ganhar um afago ou um brinde, ficam contentes com nossa inteligência. Se os obedecemos, ficam contentes com nossa lealdade. Espelham-se nela. Imaginam que para ser tão leal como nós é preciso ter a inocência que eles creem que temos. Fomos feitos para servi-los, eles dizem. Não sabem que os servimos porque queremos, ou melhor, não entendem o que é servir.
Pensar é ter o corpo no espaço: as patas alertas, o tronco aceso, o salto em prontidão. É conhecer o chão que nos penetra pela pele e avaliar os insetos que nos habitam. É coçar a cabeça com os pés, é não diferenciar entre mãos e pés, é estar de quatro para que a coluna não precise enfrentar o sobrepeso inútil de uma bacia no ar. E aquilo que eles chamam de inocência, nossa servidão, nosso olhar atônito de entrega e amor, é nosso pensamento em ação, o gesto alegre de aproveitamento do dia, da comida, da carícia.
Mas também há os que dançam. Perdem-se de si mesmos, esquecem suas palavras e tropeçam nos degraus, abraçam-se nos sofás, não esperam de nós coisas inteligentes nem nada que os impressione. Em alguns casos, pulam. Desfeitos de alguma urgência, envolvem-se com o chão e, por pouco que seja, tornam-se horizontais, ainda que de dia. Quando se deitam, esses não se lembram mais do que queriam fazer, a distração de seu peso os faz também esquecer de pensar e nessa hora atiçam-se as mãos e os pés, que então se agitam. E eles nos abraçam, nos beijam, rolam conosco pela terra, jogam bolinhas e suas bocas e olhos, como os corpos, também se estendem na horizontal.
E ainda há aqueles que parecem também ter patas e rabos, de tanto que giram para todos os lados, divertindo-se muito nessa brincadeira. E os que têm orelhas grandes, abanadas, a barba desfeita e longa, os olhos arregalados. Esses também gostam de servir. Rodeiam-nos por todos os lados, fazendo festa e, quando chegamos, saltam exagerados. Parecem-se um pouco conosco, esses. Quanto mais tempo um deles vive com um de nós, mais chance tem de ir ficando assim, parecido. Se bem treinados, podem se esquecer das relações entre causa e consequência, chegam a desarticular alguns sons e até a falar coisas sem sílabas, cujos significados escapam a nós e inclusive a eles mesmos. 
Depois de muito tempo conosco, cantam.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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