quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Eis senão quando

          Certo dia, pus-me a folhear o meu Guillaume Apollinaire, salteadamente, displicentemente, para matar saudades, mais de mim mesmo do que do poeta... Eis senão quando, descobri de novo aqueles belos versos:

Notre Histoire est noble et tragique
Comme le masque d’un tyran.”

Inspirando-me, então, por assonância, escrevi:

Minha vida é trágica e ridícula
Como uma fita mexicana.”
E, como viesse à baila o cinema mexicano, continuei o poema em espanhol, do que só se salvaram estes versos:

Llenas estan mis praderas
De tristes lunas y vacas.”

Digo que só se salvaram porque meu amigo José Lewgoy, o Anjo, gostou muito e muito e repetia e repetia:
Imagine-se um friso com luas e vacas com luas e vacas, com luas e vacas!”
Estava ele visivelmente embriagado, embora não beba. Aliás isto de fazer poesia mural seria entrar nos domínios do sapo Diego de Rivera... Objetei-lhe sobre a vaca estava em Jules Renard; depois de dar os nomes, características e costumes dos diversos bichos de sua chácara, diz ele: “Chama-se vaca, simplesmente. E é o nome que lhe assenta melhor.”
Em todo caso, aqui vai a minha contribuição para a vaca:

Tão lenta e serena e bela e majestosa vai passando a vaca
Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria
A vaca natural e simples como a primeira canção
A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.
O voo decorativo dos quero-queros,
Ou, quando muito,
A longa, misteriosa vibração dos alambrados...
Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos
E outros troques mecânicos!”

Aliás, o que é que há contra a vaca? Como uma prova da sinceridade e falta de malícia dos poetas modernos, que se negam a reconhecer qualquer distinção convencional entre coisas “poéticas” e “não poéticas”, eis aqui um poeminha que, por volta de 1930, nenhum jornal, nenhuma revista de Porto Alegre quis publicar e que agora insiro de contrabando no meio desta prosa:

Ora, Maria, o meu mundo é de
temperaturas,
tensões
fulgurações.
Eu nada tenho a ver com os sentimentos humanos!
Por que que tu não és uma vaca, Maria?
Por quê?
Ficaria tudo muito mais simples e verdadeiro...”

Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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