sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Da superação de si mesmo

          Chamais “vontade de verdade”, ó mais sábios entre todos, aquilo que vos impele e inflama?
Vontade de tornar pensável tudo o que existe: 70 assim chamo eu à vossa vontade!
Tudo o que existe quereis primeiramente fazer pensável: pois duvidais, com justa desconfiança, de que já seja pensável.
Mas deve se adequar e se dobrar a vós! Assim quer vossa vontade. Liso deve se tornar, e submisso ao espírito, como seu espelho e reflexo.
Esta é toda a vossa vontade, ó mais sábios entre todos, uma vontade de poder; e também quando falais de bem e mal e das valorações.
Quereis ainda criar o mundo ante o qual podeis ajoelhar-vos: é a vossa derradeira esperança e embriaguez.
Sem dúvida, os inscientes, o povo — são como o rio onde um barco prossegue: e nesse barco sentadas, solenes e encobertas, as valorações.
Vossa vontade e vossos valores colocastes no rio do devir; uma antiga virtude de poder me é revelada pelo que o povo acredita ser bem e mal.
Fostes vós, sábios entre todos, que pusestes tais convidados nesse barco e lhes destes pompa e orgulhosos nomes — vós e vossa vontade dominadora!
Agora o rio leva adiante o vosso barco: tem de levá-lo. Pouco importa se a onda que quebra espumeje e se oponha furiosamente à quilha!
Não é o rio o vosso perigo e o fim de vosso bem e mal, ó sábios entre todos; e sim aquela vontade mesma, a vontade de poder — a inexausta, geradora vontade de vida.
Mas, para que compreendais minhas palavras sobre bem e mal, quero dizer-vos também minhas palavras sobre a vida e a maneira 71 de tudo que vive.
Fui atrás do que vive, fui pelos maiores e os menores caminhos, para conhecer sua maneira.
Com espelho de cem faces captei seu olhar, quando tinha a boca fechada: para que seus olhos me falassem. E seus olhos me falaram.
Mas, onde encontrei seres vivos, ouvi também falar de obediência. Tudo que vive obedece.
E esta foi a segunda coisa: recebe ordens aquele que não sabe obedecer a si próprio. Tal é a maneira do que vive.
Mas esta foi a terceira coisa que ouvi: que dar ordens é mais difícil que obedecer. E não apenas porque o que ordena carrega o fardo de todos os que obedecem, e esse fardo pode facilmente esmagá-lo: —
Em toda ordem vi experimento e risco; ao dar ordens, o vivente sempre arrisca a si mesmo.
E também quando dá ordens a si mesmo: também aí tem de pagar por ordenar. Tem de se tornar juiz, vingador e vítima de sua lei.
Mas como acontece isto?, perguntei a mim mesmo. O que persuade o vivente a obedecer, ordenar e, ordenando, também exercer a obediência?
Escutai agora minhas palavras, ó sábios entre todos! Examinai cuidadosamente se não penetrei no coração da vida e até nas raízes de seu coração!
Onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhor.
Que o mais fraco sirva ao mais forte, a isto o persuade sua vontade, que quer ser senhora do que é ainda mais fraco: deste prazer ele não prescinde.
E, tal como o menor se entrega ao maior, para que tenha prazer e poder com o pequeníssimo, assim também o maior de todos se entrega e põe em jogo, pelo poder — a vida mesma.
Eis a entrega do maior de todos: é ousadia, perigo e jogo de dados pela morte.
E, onde há sacrifícios, serviços e olhares amorosos: também aí há vontade de ser senhor. Por caminhos sinuosos o mais fraco se insinua na fortaleza e no coração do mais poderoso — e ali rouba poder.
E este segredo a própria vida me contou. “Vê”, disse, “eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo.
É certo que vós o chamais vontade de procriação ou impulso para a finalidade, 72 para o mais alto, mais distante, mais múltiplo: mas tudo isso é apenas uma coisa e um segredo.
Prefiro declinar a renunciar a essa única coisa; e, em verdade, onde há declínio e queda de folhas, vê, a vida aí se sacrifica — pelo poder!
Que eu tenha de ser luta e devir e finalidade e contradição de finalidades: ah, quem adivinha minha vontade, também adivinhará os caminhos tortos que ela tem de percorrer!
O que quer que eu crie e como quer que o ame — logo terei de lhe ser adversário, e de meu amor: assim quer minha vontade.
E também tu, homem do conhecimento, é apenas uma senda e uma pegada de minha vontade: em verdade, minha vontade de poder caminha também com os pés de tua vontade de verdade!
Não acertou na verdade aquele que lhe atirou a expressão ‘vontade de existência’: tal vontade — não existe!
Pois o que não é não pode querer; mas o que se acha em existência como poderia ainda querer existência?
Apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim — eis o que te ensino — vontade de poder!
Muitas coisas são mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma; mas no próprio estimar fala — a vontade de poder!” —
Assim a vida me ensinou outrora: e com isso, ó sábios entre todos, resolverei ainda o enigma de vossos corações.
Em verdade, eu vos digo: bem e mal que sejam perenes — isso não existe! Por si mesmos têm de superar-se sempre de novo.
Com vossos valores e palavras de bem e mal exerceis violência, ó valoradores; e este é o vosso amor oculto e o brilho, tremor e transbordamento de vossa alma.
Mas uma violência mais forte cresce de vossos valores, e uma nova superação: nela se quebram o ovo e a casca do ovo.
E quem tem de ser um criador no bem e no mal: em verdade, tem de ser primeiramente um destruidor e despedaçar valores.
Assim, o mal supremo é parte do bem supremo: este, porém, é criador. —
Falemos disso, ó sábios entre todos, embora seja desagradável. Silenciar é pior; todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas.
E que se despedace tudo o que, de encontro a nossas verdades, possa — despedaçar-se! Ainda há muitas casas por construir!
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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