quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Conto vitorioso

          Este conto é o melhor conto do livro. Mais do que isso. Esse conto é o melhor conto do mundo. E isto, não fomos nós que decidimos. Isto foi decidido unanimemente por dezenas de especialistas independentes que o compararam – usando padrões laboratoriais rígidos – a uma amostragem representativa da literatura mundial. Este conto é uma inovação israelense exclusiva, única. E aposto que vocês estão se perguntando, como foi que justamente nós (o pequeno e minúsculo Israel) o escrevemos e não os norte-americanos? Então saibam que também os norte-americanos fazem a mesma pergunta. E não são poucos os figurões do mundo editorial norte-americano que estão para perder o emprego por não terem tido uma resposta pronta a tempo.
Exatamente como o nosso exército é o melhor do mundo, este conto também. Trata-se, inclusive, de uma inovação protegida por patente registrada. E onde é que esta patente está registrada? É isso. Está registrada no próprio conto. Neste conto não há tretas, mumunhas ou partes melosas. É todo constituído de um único bloco, uma amálgama de profundas introspecções e alumínio. Não enferruja, não perturba, mas pode perambular. É muito atual, mas também supratemporal. E a história julgará. Aliás, na opinião de muitos e bons, já julgou e nosso conto triunfou.
O que é tão especial neste conto?” As pessoas perguntam por ignorância ou dissimulação [depende de quem]. “O que é que ele tem que não se encontre em Tchekov ou em Kafka ou sei lá quem?” A resposta a esta pergunta é longa e complicada. Mais longa do que o próprio conto, mas menos complexa. Porque não há algo mais intrincado que este conto. Apesar disto, vamos tentar responder com um exemplo. No final deste conto, em contraste com os contos de Tchekov ou de Kafka, um afortunado vencedor – selecionado ao acaso entre os que o leram corretamente – ganhará um carro Mazda Lantis cor cinza metálico. E dentre os que lerem de forma incorreta será sorteado outro carro, mais barato, mas não menos cinza metálico, para que ele ou ela não se sinta mal. Porque este conto não está aqui para mostrar arrogância. Ele está aqui para que vocês se sintam bem. Como está escrito no guardanapo de papel da lanchonete perto da casa de vocês? SE GOSTARAM, CONTEM PARA OS AMIGOS. SE NÃO GOSTARAM, FALEM CONOSCO. Ou neste caso, contem ao conto. Porque este conto não é só narrador, ele é também ouvinte. O ouvido dele, como se diz, está atento aos sentimento do público. E quando o público se encher dele e quiser lhe dar uma conclusão, este conto não arrastará os pés ou se segurará nas bordas do altar, ele simplesmente terá um fim.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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