Miguilim e Dito dormiam no mesmo catre,
perto da caminha de Tomezinho. Drelina e Chica dormiam no quarto de
Pai e Mãe.
― "Dito, eu fiz promessa, para Pai
e Tio Terêz voltarem quando passar a chuva, e não brigarem, nunca
mais..." ― "Pai volta. Tio Terêz volta não." ―
"Como é que você sabe, Dito?" ― "Sei não. Eu sei.
Miguilim, você gosta de Tio Terêz, mas eu não gosto. É pecado?"
― "É, mas eu não sei. Eu também não gosto de Vovó Izidra.
Dela, faz tempo que eu não gosto. Você acha que a gente devia de
fazer promessa aos santos, para ficar gostando dos parentes?" ―
"Quando a gente crescer, a gente gosta de todos." ― "Mas,
Dito, quando eu crescer, vai ter algum menino pequeno assim como eu,
que não vai gostar de mim, e eu não vou poder saber?" ― "Eu
gosto de Mãitina! Ela vai para o inferno?" ― "Vai, Dito.
Ela é feiticeira pagã... Dito, se de repente um dia todos ficassem
com raiva de nós ― Pai, Mãe, Vovó Izidra ― eles podiam mandar
a gente embora, no escuro, debaixo da chuva, a gente pequenos, sem
saber onde ir?" ― "Dorme, Miguilim. Se você ficar
imaginando assim, você sonha de pesadelo..." ― "Dito,
vamos ficar nós dois, sempre um junto com o outro, mesmo quando a
gente crescer, toda a vida?" ― "Pois vamos." ―
"Dito, amanhã eu te ensino a armar urupuca, eu já sei..."
Dito começava a dormir de repente, era a
mesma coisa que Tomezinho. Miguilim não gostava de pôr os olhos no
escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher
assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora
da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O
travesseirinho cheirava bom, cheio de macela-do-campo. Amanhã, ia
aparar água de chuva, tinha outro gosto. Repartia com o Dito. O
barulho da chuva agora era até bonito, livre do moame do vento. Tio
Terêz não tinha se despedido dele. Onde estava agora o Tio Terêz?
Um dia, tempos, Tio Terêz o levara à beira da mata, ia tirar
taquaras. A gente fazia um feixe e carregava. ― "Miguilim,
este feixinho está muito pesado para você?" ― "Tio
Terêz, está não. Se a gente puder ir devagarinho como precisa, e
ninguém não gritar com a gente para ir depressa demais, então eu
acho que nunca que é pesado..." — "Miguilim, você é
meu amigo." — "Amigo grande, feito gente grande, Tio
Terêz?" — "É sim, Miguilim. Nós somos amigos. Você
tem mais juízo do que eu..." Agora parecia que naquela ocasião
era o Tio Terêz que estava se despedindo dele. Tio Terêz não
parecia com Caim, jeito nenhum. Tio Terêz parecia com Abel... A
chuva de certo vinha de toda parte, de em desde por lá, de todos os
lugares que tinha. Os lugares eram o Pau-Roxo, a fazenda grande dos
Barboz, Paracatu, o lugar que não sabia para onde tinham levado a
Cuca Pinguinho-de-Ouro, o Quartel-Geral-do-Abaeté, terra da mãe
dele, o Buritis-do-Urucuia, terra do pai, e outros lugares mais que
tinha: o Sucuriju, as fazendas e veredas por onde tinham passado... E
aí Miguilim se encolhia, sufocado debaixo de seu coração; uma
pessoa, uma alma, estava ali à beira da cama, sem mexer rumor,
aparecida de repente, para ele se debruçava. Miguilim se estarrecia
de olhos fechados, guardado de respirar, um tempo que nem não tinha
fim. Era Vovó Izidra. Quando via que pensava que ele estava bem
dormindo, ela beijava a testa dele, dizia bem baixinho: ― "Meu
filhinho, meu filho, Deus te abençoou..."
Chovera pela noite afora, o vento
arrancou telhas da casa. Ainda chovia, nem se podia pôr para secar o
colchão de Tomezinho, que tinha urinado na cama. Na hora do angú
dos cachorros, Pai tinha voltado. Ele almoçava com a gente, não
estava zangado, não dizia. Só que, quando Pai, Mãe, Vovó Izidra
estavam desaliviados assim como hoje, não conversavam assuntos de
gente grande, uns com os outros, mas cada um por sua vez falava era
com os meninos, alegando algum malfeito deles. Pai dizia que Miguilim
já estava no ponto de aprender a ler, de ajudar em qualquer serviço
fosse. Mas que ali no Mutúm não tinha quem ensinasse pautas, boa
sorte tinha competido era para o Liovaldo, se criando em casa do tio
Osmundo Cessim, um irmão de Mãe, na Vila-Risonha-de-São-Romão.
Miguilim dobrecia, assumido com aquelas conversas, logo que podia ia
se esconder na tulha, onde as goteiras sempre pingavam. Ao quando
dava qualquer estiada, saía um solzinho arrependido, então vinham
aparecendo abelhas e marimbondos, de muitas qualidades e cores,
pousavam quietinhos, chupando no caixão de açúcar, muito tempo, o
açúcar mel-mela, pareciam que estavam morridos.
Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim
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