Um Tâmisa cor de chumbo e barrento ao
anoitecer, quando a maré sobe ao longo dos pilares das pontes: neste
cenário que as crônicas deste ano atualizaram sob as luzes mais
lúgubres, um barco avança rente aos troncos flutuantes, às chatas
e aos dejetos. Na proa, um homem com olhar de abutre fixa a corrente
como se procurasse algo; nos remos, semiescondida por um capuz e um
manto impermeável, encontra-se uma moça de rosto angélico. O que
estão buscando? Não se tarda a compreender que o homem é um
recolhedor de cadáveres de suicidas ou de vítimas de assassinato
jogadas no rio: para esse tipo de pescaria parece que as águas do
Tâmisa são cotidianamente generosas. Avistado um cadáver à tona,
o homem é ágil ao esvaziar-lhe os bolsos das moedas de ouro e
depois ao arrastá-lo com uma corda fina até uma delegacia na
margem, onde embolsará uma recompensa. A jovem angélica, filha do
barqueiro, procura não olhar o butim macabro; está atordoada, mas
continua remando.
Os inícios dos romances de Dickens são
muitas vezes memoráveis, mas nenhum supera o primeiro capítulo de
Our mutual friend, penúltimo romance que ele escreveu, último
que concluiu. Levados pelo barco do pescador de cadáveres, parece
que entramos no avesso do mundo.
No segundo capítulo muda tudo, estamos
em plena comédia de costumes e de caracteres: um jantar em casa de
um novo-rico onde todos fingem ser amigos de velha data quando mal se
conhecem. Mas antes que o capítulo se encerre, eis que, evocado
pelas conversas dos comensais, o mistério de um homem afogado no
momento de herdar uma grande fortuna refaz o circuito da tensão
romanesca.
A grande herança é a do falecido rei do
lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa
ao lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo. Continuamos
a mover-nos naquele sinistro mundo das dejeções em que nos
introduzira por via fluvial o primeiro capítulo. Todos os outros
cenários do romance, mesas prontas cintilando com pratarias,
ambições lambuzadas de pomada, emaranhados de interesses e
especulações, não passam de leves telas na substância desolada
desse cenário de fim de mundo.
Depositário dos tesouros do Lixeiro de
Ouro é o seu ex-burro de carga, Boffin, uma das grandes personagens
cômicas de Dickens, pelo jeito pomposo com que derruba tudo do alto
mesmo não tendo outra experiência a não ser aquela de uma ínfima
miséria e de uma ignorância infinita. (Personagem simpática,
porém: pelo calor humano e pelas intenções benévolas, ele e sua
mulher; depois, na sequência do romance, transforma-se em avarento e
egoísta, para revelar-se no final novamente um coração de ouro.)
Vendo-se rico de repente, o analfabeto Boffin pode dar livre curso ao
amor reprimido pela cultura: adquire os oito volumes do Declínio
e queda do Império Romano de Gibbon (um título que mal consegue
soletrar, e ao invés de Roman lê Russian e pensa que
se trata do Império Russo). Contrata então um vagabundo com uma
perna de madeira, Silas Wegg, como “homem de letras”, para que
lhe faça leituras noturnas. Depois de Gibbon, Boffin, que passa a
ficar obcecado em não perder suas riquezas, procura nas livrarias as
vidas de avarentos famosos e faz com que seu “literato” de
confiança leia tudo para ele.
O exuberante Boffin e o asqueroso Silas
Wegg formam um dueto extraordinário, ao qual vem se somar mr. Venus,
embalsamador profissional e montado de esqueletos humanos mediante
ossos esparsos recolhidos ao acaso, a quem Wegg pediu que construísse
uma perna de osso para substituir a de madeira. Nesse horizonte de
lixo, habitado por personagens clownescas e um tanto espectrais, o
mundo de Dickens se transforma a nossos olhos no de Samuel Beckett;
no humor negro do último Dickens podemos vislumbrar mais de uma
antecipação beckettiana.
Naturalmente em Dickens — embora hoje
sejam os aspectos negros que ganham mais relevo em nossa literatura —
a escuridão está sempre em contraste com a luz, irradiada em geral
por figuras de donzelas tão mais virtuosas e de bom coração quanto
mais mergulhadas num inferno de trevas. A parte mais difícil de
digerir é justamente essa da virtude, para nós, leitores modernos
de Dickens. Certamente ele como pessoa tinha com a virtude relações
não mais íntimas que as nossas, mas a mentalidade vitoriana
encontrou em seus romances não só uma aplicação fiel mas até
mesmo as imagens fundamentais da própria mitologia. E seria
impossível, uma vez estabelecido que para nós o verdadeiro Dickens
é somente aquele das personificações da maldade e das caricaturas
grotescas, pôr entre parênteses as vítimas angélicas e as
presenças consoladoras: sem estas não haveria tampouco aquelas;
temos de considerar umas e outras como elementos estruturais
relacionados entre si, paredes e traves do mesmo edifício sólido.
Também no front dos “bons”, Dickens
pode inventar figuras inesperadas, nada convencionais, como nesse
romance o heterogêneo trio formado por uma mocinha anã, sarcástica
e sabida, por um anjo de rosto e de coração como Lizzie, e por um
judeu barbudo e com gabão. A pequena e sábia Jenny Wren, costureira
de bonecas, que só pode andar com muletas e traduz tudo de negativo
de sua vida numa transfiguração fantástica que jamais é
edulcorada, pelo contrário enfrenta de peito aberto as durezas da
existência, momento por momento, é uma das personagens dickensianas
mais ricas de encanto e humor. E o judeu Riah, empregado de um
especulador sórdido, Lammle, que o aterroriza e insulta, servindo-se
dele também como testa de ferro para fazer agiotagem, continuando a
se fingir de pessoa respeitável e desinteressada, trata de
contrabalançar o mal de que se torna instrumento prodigalizando
secretamente seus dons de gênio benéfico. Daí nasce um apólogo
perfeito sobre o antissemitismo, sobre o mecanismo pelo qual a
sociedade hipócrita sente a necessidade de criar uma imagem do judeu
para atribuir a ele os próprios vícios. Esse Riah é de uma
suavidade tão desarmada que poderia ser considerado um medroso, se
não acontecesse que no abismo do desprezo encontrasse um modo de
criar um espaço de liberdade e de revanche, junto com as outras duas
menosprezadas, e sobretudo com o atuante conselho da costureira de
bonecas (angélica também ela, mas capaz de infligir ao odioso
Lammle um suplício diabólico).
Esse espaço do bem é representado
materialmente por um terraço sobre o telhado tétrico escritório da
caixa de penhores, em meio à esqualidez da City, onde Riah põe à
disposição das duas moças retalhos de pano para as roupas das
bonecas, pequenas pérolas, livros, flores e fruta, enquanto “ao
redor uma selva de velhas cumeeiras entrelaçavam seus rolos de
fumaça e giravam bandeirinhas, com todo o jeito de velhas
solteironas vaidosas que fazem poses empertigadas e olham em volta
demonstrando uma grande surpresa”.
Em Nosso amigo comum existe lugar
para o romance metropolitano e para a comédia de costumes, mas
também para personagens de consciências complexas e trágicas, como
Bradley Headstone, ex-proletário que uma vez tendo se tornado
professor se deixa dominar por uma ânsia de ascensão social e de
prestígio que se transforma numa espécie de possessão diabólica.
Vamos acompanhá-lo em seu enamoramento por Lizzie, em seu ciúme que
se torna obsessão fanática, no projeto minucioso e depois na
execução de um delito, e em seguida no permanecer parado, repetindo
suas etapas mesmo quando dá aulas a seus alunos. “De vez em
quando, diante do quadro, antes de começar a escrever, detinha-se
com o pedaço de giz na mão e relembrava o local da agressão, e se
um pouco mais para cima ou um pouco mais para baixo a água não
teria sido mais profunda e a inclinação mais íngreme. Ficava
tentado a fazer um desenho no quadro para ver mais nítido.”
O nosso amigo comum foi escrito em
1864-5, Crime e castigo, em 1865-6. Dostoiévski era um
admirador de Dickens, mas não poderia ter lido esse romance. Escreve
Pietro Citati em seu belo ensaio dickensiano (incluído no volume Il
migliore dei mondi impossibili, Rizzoli):
A estranha providência que governa a
literatura quis que, justamente nos anos em que Dostoiévski compunha
Crime e castigo,
Dickens tenha tentado inconscientemente competir com o próprio
discípulo distante, escrevendo as páginas do crime de Bradley
Headstone… Se Dostoiévski tivesse lido tal página, como teria
achado sublime aquele último trecho, o desenho no quadro!
O título Il migliore dei mondi
impossibili Citati retirou do escritor de nosso século que mais
amou Dickens, G. K. Chesterton. Sobre Dickens, Chesterton escreveu um
livro e depois as introduções a muitos romances, para a edição da
“Everyman’s Library”. Naquela para Our mutual friend,
ele começa implicando com o título. “O nosso amigo comum” faz
sentido, tanto em inglês quanto em italiano; mas “o nosso amigo
mútuo”, “o nosso amigo recíproco” o que significaria?
Poder-se-ia objetar a Chesterton que a expressão surge pela primeira
vez no romance sendo dita por Boffin, cujo discurso é sempre
despropositado; e que, embora a ligação do título com o conteúdo
do romance não seja das mais evidentes, também o tema da amizade
verdadeira ou falsa, alardeada ou oculta, distorcida ou sujeita a
provas, ali circula por toda parte. Mas Chesterton, após ter
denunciado a impropriedade linguística do título, declara que
justamente por isso o título lhe agrada. Dickens não havia feito
estudos regulares e jamais fora um literato rebuscado; é por isso
que Chesterton o ama, ou seja, o ama quando se mostra assim como é,
não quando pretende ser algo diferente; e a predileção de
Chesterton por Our mutual friend recai em um Dickens que volta
às origens, depois de ter feito vários esforços para sofisticar-se
e demonstrar gostos aristocráticos.
Embora Chesterton tenha sido o melhor
defensor da grandeza literária de Dickens na crítica do século XX,
parece-me que seu ensaio sobre Our mutual friend revela um fundo de
condescendência paternalista do literato refinado em relação ao
romancista popular.
Para nós, O nosso amigo comum é
uma obra-prima em absoluto, tanto de invenção quanto de escritura.
Como exemplos de escritura lembrarei não só as metáforas
fulminantes que definem uma personagem ou uma situação (“‘Quanta
honra’, disse a mãe oferecendo para ser beijada uma bochecha
sensível e afetuosa como a parte convexa de uma colher”), mas
também os ângulos descritivos dignos de entrar numa antologia da
paisagem urbana:
Uma noite cinza, seca e poeirenta na
City de Londres tem um aspecto pouco promissor. As lojas e os
escritórios fechados parecem mortos e o terror nacional pelas cores
dá um ar de luto. As torres e os campanários das inúmeras igrejas
assediadas pelas casas, escuros e enfumaçados como o céu que parece
cair-lhes por cima, não diminuem a desolação geral; um relógio de
sol na parede de uma igreja, com sua sombra negra ora inútil, parece
um dedo que faliu e suspendeu os pagamentos para sempre. Melancólicos
restos de guardiães e porteiros varrem melancólicos dejetos de
papelão nos córregos onde outros melancólicos sobejos vêm
curvados fuçar, procurar e remexer, esperando descobrir algo para
vender.
Retirei esta última citação da
tradução dos “Struzzi” Einaudi, mas a primeira que fiz acima, a
das cumeeiras, foi extraída da tradução de Filippo Donini para os
“Grandi Libri” Garzanti, que me parece captar melhor o espírito
em algumas passagens mais sutis, embora apresente alguns aspectos
antiquados como a italianização dos nomes de batismo. Nessa frase
se tratava de transmitir o distanciamento entre as humildes alegrias
do terraço e as chaminés da City, vistas como nobres damas
(dowager) altivas; cada detalhe descritivo em Dickens tem
sempre uma função, entra na dinâmica da narrativa.
Outro motivo pelo qual este romance é
considerado uma obra-prima é a representação de um quadro social
muito complexo de classes em conflito; neste ponto concordam a
introdução ágil e inteligente de Piergiorgio Bellocchio para a
edição Garzanti e aquela, toda concentrada neste aspecto, de Arnold
Kettle para a edição Einaudi. Kettle polemiza com George Orwell
que, numa famosa análise “classista” dos romances dickensianos,
demonstrou como, para Dickens, o objetivo não eram os males da
sociedade, mas da natureza humana.
Italo Calvino, in Por que ler os clássicos
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