quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Charles Dickens / Our mutual friend

 


Um Tâmisa cor de chumbo e barrento ao anoitecer, quando a maré sobe ao longo dos pilares das pontes: neste cenário que as crônicas deste ano atualizaram sob as luzes mais lúgubres, um barco avança rente aos troncos flutuantes, às chatas e aos dejetos. Na proa, um homem com olhar de abutre fixa a corrente como se procurasse algo; nos remos, semiescondida por um capuz e um manto impermeável, encontra-se uma moça de rosto angélico. O que estão buscando? Não se tarda a compreender que o homem é um recolhedor de cadáveres de suicidas ou de vítimas de assassinato jogadas no rio: para esse tipo de pescaria parece que as águas do Tâmisa são cotidianamente generosas. Avistado um cadáver à tona, o homem é ágil ao esvaziar-lhe os bolsos das moedas de ouro e depois ao arrastá-lo com uma corda fina até uma delegacia na margem, onde embolsará uma recompensa. A jovem angélica, filha do barqueiro, procura não olhar o butim macabro; está atordoada, mas continua remando.
Os inícios dos romances de Dickens são muitas vezes memoráveis, mas nenhum supera o primeiro capítulo de Our mutual friend, penúltimo romance que ele escreveu, último que concluiu. Levados pelo barco do pescador de cadáveres, parece que entramos no avesso do mundo.
No segundo capítulo muda tudo, estamos em plena comédia de costumes e de caracteres: um jantar em casa de um novo-rico onde todos fingem ser amigos de velha data quando mal se conhecem. Mas antes que o capítulo se encerre, eis que, evocado pelas conversas dos comensais, o mistério de um homem afogado no momento de herdar uma grande fortuna refaz o circuito da tensão romanesca.
A grande herança é a do falecido rei do lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa ao lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo. Continuamos a mover-nos naquele sinistro mundo das dejeções em que nos introduzira por via fluvial o primeiro capítulo. Todos os outros cenários do romance, mesas prontas cintilando com pratarias, ambições lambuzadas de pomada, emaranhados de interesses e especulações, não passam de leves telas na substância desolada desse cenário de fim de mundo.
Depositário dos tesouros do Lixeiro de Ouro é o seu ex-burro de carga, Boffin, uma das grandes personagens cômicas de Dickens, pelo jeito pomposo com que derruba tudo do alto mesmo não tendo outra experiência a não ser aquela de uma ínfima miséria e de uma ignorância infinita. (Personagem simpática, porém: pelo calor humano e pelas intenções benévolas, ele e sua mulher; depois, na sequência do romance, transforma-se em avarento e egoísta, para revelar-se no final novamente um coração de ouro.) Vendo-se rico de repente, o analfabeto Boffin pode dar livre curso ao amor reprimido pela cultura: adquire os oito volumes do Declínio e queda do Império Romano de Gibbon (um título que mal consegue soletrar, e ao invés de RomanRussian e pensa que se trata do Império Russo). Contrata então um vagabundo com uma perna de madeira, Silas Wegg, como “homem de letras”, para que lhe faça leituras noturnas. Depois de Gibbon, Boffin, que passa a ficar obcecado em não perder suas riquezas, procura nas livrarias as vidas de avarentos famosos e faz com que seu “literato” de confiança leia tudo para ele.
O exuberante Boffin e o asqueroso Silas Wegg formam um dueto extraordinário, ao qual vem se somar mr. Venus, embalsamador profissional e montado de esqueletos humanos mediante ossos esparsos recolhidos ao acaso, a quem Wegg pediu que construísse uma perna de osso para substituir a de madeira. Nesse horizonte de lixo, habitado por personagens clownescas e um tanto espectrais, o mundo de Dickens se transforma a nossos olhos no de Samuel Beckett; no humor negro do último Dickens podemos vislumbrar mais de uma antecipação beckettiana.
Naturalmente em Dickens — embora hoje sejam os aspectos negros que ganham mais relevo em nossa literatura — a escuridão está sempre em contraste com a luz, irradiada em geral por figuras de donzelas tão mais virtuosas e de bom coração quanto mais mergulhadas num inferno de trevas. A parte mais difícil de digerir é justamente essa da virtude, para nós, leitores modernos de Dickens. Certamente ele como pessoa tinha com a virtude relações não mais íntimas que as nossas, mas a mentalidade vitoriana encontrou em seus romances não só uma aplicação fiel mas até mesmo as imagens fundamentais da própria mitologia. E seria impossível, uma vez estabelecido que para nós o verdadeiro Dickens é somente aquele das personificações da maldade e das caricaturas grotescas, pôr entre parênteses as vítimas angélicas e as presenças consoladoras: sem estas não haveria tampouco aquelas; temos de considerar umas e outras como elementos estruturais relacionados entre si, paredes e traves do mesmo edifício sólido.
Também no front dos “bons”, Dickens pode inventar figuras inesperadas, nada convencionais, como nesse romance o heterogêneo trio formado por uma mocinha anã, sarcástica e sabida, por um anjo de rosto e de coração como Lizzie, e por um judeu barbudo e com gabão. A pequena e sábia Jenny Wren, costureira de bonecas, que só pode andar com muletas e traduz tudo de negativo de sua vida numa transfiguração fantástica que jamais é edulcorada, pelo contrário enfrenta de peito aberto as durezas da existência, momento por momento, é uma das personagens dickensianas mais ricas de encanto e humor. E o judeu Riah, empregado de um especulador sórdido, Lammle, que o aterroriza e insulta, servindo-se dele também como testa de ferro para fazer agiotagem, continuando a se fingir de pessoa respeitável e desinteressada, trata de contrabalançar o mal de que se torna instrumento prodigalizando secretamente seus dons de gênio benéfico. Daí nasce um apólogo perfeito sobre o antissemitismo, sobre o mecanismo pelo qual a sociedade hipócrita sente a necessidade de criar uma imagem do judeu para atribuir a ele os próprios vícios. Esse Riah é de uma suavidade tão desarmada que poderia ser considerado um medroso, se não acontecesse que no abismo do desprezo encontrasse um modo de criar um espaço de liberdade e de revanche, junto com as outras duas menosprezadas, e sobretudo com o atuante conselho da costureira de bonecas (angélica também ela, mas capaz de infligir ao odioso Lammle um suplício diabólico).
Esse espaço do bem é representado materialmente por um terraço sobre o telhado tétrico escritório da caixa de penhores, em meio à esqualidez da City, onde Riah põe à disposição das duas moças retalhos de pano para as roupas das bonecas, pequenas pérolas, livros, flores e fruta, enquanto “ao redor uma selva de velhas cumeeiras entrelaçavam seus rolos de fumaça e giravam bandeirinhas, com todo o jeito de velhas solteironas vaidosas que fazem poses empertigadas e olham em volta demonstrando uma grande surpresa”.
Em Nosso amigo comum existe lugar para o romance metropolitano e para a comédia de costumes, mas também para personagens de consciências complexas e trágicas, como Bradley Headstone, ex-proletário que uma vez tendo se tornado professor se deixa dominar por uma ânsia de ascensão social e de prestígio que se transforma numa espécie de possessão diabólica. Vamos acompanhá-lo em seu enamoramento por Lizzie, em seu ciúme que se torna obsessão fanática, no projeto minucioso e depois na execução de um delito, e em seguida no permanecer parado, repetindo suas etapas mesmo quando dá aulas a seus alunos. “De vez em quando, diante do quadro, antes de começar a escrever, detinha-se com o pedaço de giz na mão e relembrava o local da agressão, e se um pouco mais para cima ou um pouco mais para baixo a água não teria sido mais profunda e a inclinação mais íngreme. Ficava tentado a fazer um desenho no quadro para ver mais nítido.”
O nosso amigo comum foi escrito em 1864-5, Crime e castigo, em 1865-6. Dostoiévski era um admirador de Dickens, mas não poderia ter lido esse romance. Escreve Pietro Citati em seu belo ensaio dickensiano (incluído no volume Il migliore dei mondi impossibili, Rizzoli):

A estranha providência que governa a literatura quis que, justamente nos anos em que Dostoiévski compunha Crime e castigo, Dickens tenha tentado inconscientemente competir com o próprio discípulo distante, escrevendo as páginas do crime de Bradley Headstone… Se Dostoiévski tivesse lido tal página, como teria achado sublime aquele último trecho, o desenho no quadro!

O título Il migliore dei mondi impossibili Citati retirou do escritor de nosso século que mais amou Dickens, G. K. Chesterton. Sobre Dickens, Chesterton escreveu um livro e depois as introduções a muitos romances, para a edição da “Everyman’s Library”. Naquela para Our mutual friend, ele começa implicando com o título. “O nosso amigo comum” faz sentido, tanto em inglês quanto em italiano; mas “o nosso amigo mútuo”, “o nosso amigo recíproco” o que significaria? Poder-se-ia objetar a Chesterton que a expressão surge pela primeira vez no romance sendo dita por Boffin, cujo discurso é sempre despropositado; e que, embora a ligação do título com o conteúdo do romance não seja das mais evidentes, também o tema da amizade verdadeira ou falsa, alardeada ou oculta, distorcida ou sujeita a provas, ali circula por toda parte. Mas Chesterton, após ter denunciado a impropriedade linguística do título, declara que justamente por isso o título lhe agrada. Dickens não havia feito estudos regulares e jamais fora um literato rebuscado; é por isso que Chesterton o ama, ou seja, o ama quando se mostra assim como é, não quando pretende ser algo diferente; e a predileção de Chesterton por Our mutual friend recai em um Dickens que volta às origens, depois de ter feito vários esforços para sofisticar-se e demonstrar gostos aristocráticos.
Embora Chesterton tenha sido o melhor defensor da grandeza literária de Dickens na crítica do século XX, parece-me que seu ensaio sobre Our mutual friend revela um fundo de condescendência paternalista do literato refinado em relação ao romancista popular.
Para nós, O nosso amigo comum é uma obra-prima em absoluto, tanto de invenção quanto de escritura. Como exemplos de escritura lembrarei não só as metáforas fulminantes que definem uma personagem ou uma situação (“‘Quanta honra’, disse a mãe oferecendo para ser beijada uma bochecha sensível e afetuosa como a parte convexa de uma colher”), mas também os ângulos descritivos dignos de entrar numa antologia da paisagem urbana:

Uma noite cinza, seca e poeirenta na City de Londres tem um aspecto pouco promissor. As lojas e os escritórios fechados parecem mortos e o terror nacional pelas cores dá um ar de luto. As torres e os campanários das inúmeras igrejas assediadas pelas casas, escuros e enfumaçados como o céu que parece cair-lhes por cima, não diminuem a desolação geral; um relógio de sol na parede de uma igreja, com sua sombra negra ora inútil, parece um dedo que faliu e suspendeu os pagamentos para sempre. Melancólicos restos de guardiães e porteiros varrem melancólicos dejetos de papelão nos córregos onde outros melancólicos sobejos vêm curvados fuçar, procurar e remexer, esperando descobrir algo para vender.

Retirei esta última citação da tradução dos “Struzzi” Einaudi, mas a primeira que fiz acima, a das cumeeiras, foi extraída da tradução de Filippo Donini para os “Grandi Libri” Garzanti, que me parece captar melhor o espírito em algumas passagens mais sutis, embora apresente alguns aspectos antiquados como a italianização dos nomes de batismo. Nessa frase se tratava de transmitir o distanciamento entre as humildes alegrias do terraço e as chaminés da City, vistas como nobres damas (dowager) altivas; cada detalhe descritivo em Dickens tem sempre uma função, entra na dinâmica da narrativa.
Outro motivo pelo qual este romance é considerado uma obra-prima é a representação de um quadro social muito complexo de classes em conflito; neste ponto concordam a introdução ágil e inteligente de Piergiorgio Bellocchio para a edição Garzanti e aquela, toda concentrada neste aspecto, de Arnold Kettle para a edição Einaudi. Kettle polemiza com George Orwell que, numa famosa análise “classista” dos romances dickensianos, demonstrou como, para Dickens, o objetivo não eram os males da sociedade, mas da natureza humana.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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