Ouvi Pelléas et Mélisande. Não
entendo nada de música. Apenas me ocorreu comparar as palavras dos
velhos libretos de ópera (“Pago com meu sangue — o amor que
depositei em ti”), palavras gordas, sangrentas, pesadas, com as
palavras de Pelléas et Mélisande (“J’ai froid — ta
chevelure”), palavras esquivas, aquáticas. Do cansaço, do
desgosto por palavras grandes e sangrentas, nasceram estas palavras
aquáticas, frias, esquivas.
Perguntei-me se não foi ela (Pelléas
et Mélisande) o princípio do silêncio.
Porque entre os vícios mais estranhos e
mais graves de nossa época deve-se mencionar o silêncio. Aqueles
entre nós que, hoje, experimentaram escrever um romance conhecem o
mal-estar e a infelicidade que se instalam quando chega o momento de
fazer as personagens falarem entre si. Por páginas e páginas nossas
personagens trocam umas poucas observações insignificantes, mas
carregadas de uma desolada tristeza: “Está com frio?”, “Não,
não estou com frio”. “Quer um pouco de chá?”, “Não,
obrigado.” “Está cansado?”, “Não sei. Sim, talvez esteja um
pouco cansado.” Nossas personagens falam assim. Falam assim para
enganar o silêncio. Falam assim porque não sabem mais como falar.
Pouco a pouco vão emergindo as coisas mais importantes, as
confissões mais terríveis: “Você o matou?”, “Sim, matei”.
Arrancadas dolorosamente ao silêncio, emergem as poucas e estéreis
palavras de nossa época, como sinais de náufragos, fogos acesos
entre colinas longínquas, frágeis e desesperados chamados que o
espaço engole.
Então, quando queremos que nossas
personagens falem entre si, aí medimos o profundo silêncio que se
adensou pouco a pouco dentro de nós. Começamos a nos calar desde
jovens, à mesa, diante dos nossos pais, que ainda nos falavam com
aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas. Ficávamos calados.
Ficávamos calados em protesto e por desdém. Ficávamos calados para
que nossos pais entendessem que suas palavras gordas não nos serviam
mais. Tínhamos outras guardadas no estoque. Ficávamos calados e
cheios de confiança em nossas novas palavras. Gastaríamos essas
novas palavras mais tarde, com gente que as entenderia. Éramos ricos
do nosso silêncio. Agora ele nos causa vergonha e desespero, e
conhecemos toda sua miséria. Nunca mais nos libertamos dele. Aquelas
grandes palavras velhas, que serviam aos nossos pais, são moeda fora
de circulação e ninguém as aceita. Quanto às novas palavras,
percebemos que não têm valor: com elas não se compra nada. Não
servem para estabelecer relações, são aquáticas, frias,
infecundas. Não nos servem para escrever livros, nem para manter
ligada a nós uma pessoa querida, nem para salvar um amigo.
Entre os vícios de nossa época, sabe-se
que há o sentimento de culpa: dele se fala e se escreve muito. Todos
sofremos disso. Sentimo-nos dia a dia mais envolvidos em um negócio
sujo. Já se falou também do sentimento de pânico: e também dele
todos nós sofremos. O sentimento de pânico nasce do sentimento de
culpa. E quem se sente assustado e culpado se cala.
Do sentimento de culpa, do sentimento de
pânico, do silêncio, cada um tenta se curar a seu modo. Alguns se
lançam em viagens. Na ânsia de conhecer países novos e gente
diversa há a esperança de deixar para trás os próprios fantasmas
turvos; há a secreta esperança de descobrir em algum ponto da Terra
a pessoa que poderá falar conosco. Alguns se embebedam para esquecer
os próprios fantasmas turvos e para poder falar. E depois há todas
as coisas feitas só para não ter de falar: uns passam
as noites dormindo numa sala de projeção, com a mulher ao lado, e
assim não precisam conversar; uns aprendem a jogar bridge; uns fazem
amor, o que também pode ser feito sem que se diga uma palavra.
Frequentemente se diz que essas coisas se fazem
para passar o tempo: na verdade, as fazemos para enganar o
silêncio.
Existem duas espécies de silêncio: o
silêncio com nós mesmos e o silêncio com os outros. Ambas as
formas nos fazem igualmente sofrer. O silêncio com nós mesmos é
dominado por uma violenta antipatia que nos toma pelo nosso próprio
ser, pelo desprezo à nossa própria alma, tão vil que não merece
que se lhe diga nada. É claro que é preciso romper esse silêncio
nosso se quisermos tentar romper o silêncio com os outros. É claro
que não temos nenhum direito de odiar nossa própria pessoa, nenhum
direito de calar nossos pensamentos à nossa alma.
O meio mais difundido para liberar-se do
silêncio é fazer psicanálise. Falar incessantemente de si a uma
pessoa que escuta, que é paga para escutar; pôr a nu as raízes do
próprio silêncio: sim, isso talvez possa dar um alívio momentâneo.
Mas o silêncio é universal e profundo. O silêncio, o reencontramos
assim que saímos pela porta do consultório onde aquela pessoa, paga
para escutar, escutava. Imediatamente caímos nele de novo. Então
aquele alívio de uma hora nos parece superficial e banal. O silêncio
está sobre a Terra: que um só de nós se cure dele por uma hora não
serve à causa comum.
Quando nos submetemos à psicanálise,
nos dizem que devemos parar de odiar tão fortemente a nós mesmos.
Porém, para nos liberarmos desse ódio, para nos liberarmos do
sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, nos é
sugerido viver segundo a natureza, nos abandonarmos ao nosso
instinto, seguir nosso puro prazer: fazer da vida uma pura escolha.
Mas fazer da vida uma pura escolha não é viver segundo a natureza,
é viver contra a natureza, porque não é dado ao homem escolher
sempre; o homem não escolheu a hora de seu nascimento, nem o próprio
rosto, nem os próprios pais, nem a própria infância: o homem não
escolhe, no mais das vezes, a hora de sua morte. O homem então só
pode aceitar o próprio rosto, assim como só pode aceitar o próprio
destino: e a única escolha que lhe é permitida é aquela entre o
bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre a verdade e a mentira.
As coisas que os analistas a quem nos submetemos nos dizem não
servem porque não levam em conta nossa responsabilidade moral, a
única coisa que nos é consentida na vida: aqueles de nós que fazem
análise sabem muito bem como aquela efêmera atmosfera de liberdade,
que se gozava vivendo segundo nosso puro prazer, era uma atmosfera
rarefeita, antinatural, decididamente irrespirável.
Frequentemente esse vício do silêncio
que envenena nossa época é expresso com um lugar-comum: “Perdeu-se
o gosto da conversação”. É a expressão fútil, mundana, de algo
verdadeiro e trágico. Ao dizermos “o gosto da conversação” nós
não dizemos nada que nos ajude a viver: mas a possibilidade de uma
relação livre e normal entre os homens, isto sim, nos falta, e nos
falta a ponto de alguns de nós terem se matado pela consciência
desta privação. O silêncio ceifa suas vítimas todo dia. O
silêncio é uma doença mortal.
Jamais como hoje a sorte dos homens
esteve tão estreitamente conectada, umas às outras, de modo que o
desastre de um é o desastre de todos. Então se verifica este fato
estranho: que os homens se encontram estreitamente ligados uns ao
destino dos outros, de modo que a queda de um arrasta milhares de
outros seres, e ao mesmo tempo todos estão sufocados pelo silêncio,
incapazes de trocar uma palavra em liberdade. Por isso — porque o
desastre de um é o desastre de todos — os meios que nos são
oferecidos para nos curarmos do silêncio se revelam insubsistentes.
Sugerem-nos que lancemos mão do egoísmo para nos defender do
desespero. Mas o egoísmo nunca resolveu nenhum desespero. Estamos
habituados até demais a chamar de doenças os vícios de
nossa alma e a suportá-los, a nos deixar governar por eles, ou a
mitigá-los com xaropes doces, tratá-los como se fossem doenças. O
silêncio deve ser contemplado e julgado no âmbito da moral. Não
nos é dado escolher ser feliz ou infeliz. Mas é preciso
escolher não ser diabolicamente infeliz. O silêncio pode
atingir uma forma de infelicidade fechada, monstruosa, diabólica:
murchar os dias da juventude, tornar o pão amargo. Pode levar, como
já se disse, à morte.
O silêncio deve ser contemplado e
julgado no âmbito da moral. Porque o silêncio, assim como a acídia
e a luxúria, é um pecado. O fato de que seja um pecado comum a
todos os semelhantes de nossa época, de que seja o fruto amargo de
nossa época malsã, não nos exime da obrigação de reconhecer sua
natureza e de chamá-lo por seu verdadeiro nome.
Natalia Ginzburg, in As pequenas virtudes
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