segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Silêncio

          Ouvi Pelléas et Mélisande. Não entendo nada de música. Apenas me ocorreu comparar as palavras dos velhos libretos de ópera (“Pago com meu sangue — o amor que depositei em ti”), palavras gordas, sangrentas, pesadas, com as palavras de Pelléas et Mélisande (“J’ai froid — ta chevelure”), palavras esquivas, aquáticas. Do cansaço, do desgosto por palavras grandes e sangrentas, nasceram estas palavras aquáticas, frias, esquivas.
Perguntei-me se não foi ela (Pelléas et Mélisande) o princípio do silêncio.
Porque entre os vícios mais estranhos e mais graves de nossa época deve-se mencionar o silêncio. Aqueles entre nós que, hoje, experimentaram escrever um romance conhecem o mal-estar e a infelicidade que se instalam quando chega o momento de fazer as personagens falarem entre si. Por páginas e páginas nossas personagens trocam umas poucas observações insignificantes, mas carregadas de uma desolada tristeza: “Está com frio?”, “Não, não estou com frio”. “Quer um pouco de chá?”, “Não, obrigado.” “Está cansado?”, “Não sei. Sim, talvez esteja um pouco cansado.” Nossas personagens falam assim. Falam assim para enganar o silêncio. Falam assim porque não sabem mais como falar. Pouco a pouco vão emergindo as coisas mais importantes, as confissões mais terríveis: “Você o matou?”, “Sim, matei”. Arrancadas dolorosamente ao silêncio, emergem as poucas e estéreis palavras de nossa época, como sinais de náufragos, fogos acesos entre colinas longínquas, frágeis e desesperados chamados que o espaço engole.
Então, quando queremos que nossas personagens falem entre si, aí medimos o profundo silêncio que se adensou pouco a pouco dentro de nós. Começamos a nos calar desde jovens, à mesa, diante dos nossos pais, que ainda nos falavam com aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas. Ficávamos calados. Ficávamos calados em protesto e por desdém. Ficávamos calados para que nossos pais entendessem que suas palavras gordas não nos serviam mais. Tínhamos outras guardadas no estoque. Ficávamos calados e cheios de confiança em nossas novas palavras. Gastaríamos essas novas palavras mais tarde, com gente que as entenderia. Éramos ricos do nosso silêncio. Agora ele nos causa vergonha e desespero, e conhecemos toda sua miséria. Nunca mais nos libertamos dele. Aquelas grandes palavras velhas, que serviam aos nossos pais, são moeda fora de circulação e ninguém as aceita. Quanto às novas palavras, percebemos que não têm valor: com elas não se compra nada. Não servem para estabelecer relações, são aquáticas, frias, infecundas. Não nos servem para escrever livros, nem para manter ligada a nós uma pessoa querida, nem para salvar um amigo.
Entre os vícios de nossa época, sabe-se que há o sentimento de culpa: dele se fala e se escreve muito. Todos sofremos disso. Sentimo-nos dia a dia mais envolvidos em um negócio sujo. Já se falou também do sentimento de pânico: e também dele todos nós sofremos. O sentimento de pânico nasce do sentimento de culpa. E quem se sente assustado e culpado se cala.
Do sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, cada um tenta se curar a seu modo. Alguns se lançam em viagens. Na ânsia de conhecer países novos e gente diversa há a esperança de deixar para trás os próprios fantasmas turvos; há a secreta esperança de descobrir em algum ponto da Terra a pessoa que poderá falar conosco. Alguns se embebedam para esquecer os próprios fantasmas turvos e para poder falar. E depois há todas as coisas feitas só para não ter de falar: uns passam as noites dormindo numa sala de projeção, com a mulher ao lado, e assim não precisam conversar; uns aprendem a jogar bridge; uns fazem amor, o que também pode ser feito sem que se diga uma palavra. Frequentemente se diz que essas coisas se fazem para passar o tempo: na verdade, as fazemos para enganar o silêncio.
Existem duas espécies de silêncio: o silêncio com nós mesmos e o silêncio com os outros. Ambas as formas nos fazem igualmente sofrer. O silêncio com nós mesmos é dominado por uma violenta antipatia que nos toma pelo nosso próprio ser, pelo desprezo à nossa própria alma, tão vil que não merece que se lhe diga nada. É claro que é preciso romper esse silêncio nosso se quisermos tentar romper o silêncio com os outros. É claro que não temos nenhum direito de odiar nossa própria pessoa, nenhum direito de calar nossos pensamentos à nossa alma.
O meio mais difundido para liberar-se do silêncio é fazer psicanálise. Falar incessantemente de si a uma pessoa que escuta, que é paga para escutar; pôr a nu as raízes do próprio silêncio: sim, isso talvez possa dar um alívio momentâneo. Mas o silêncio é universal e profundo. O silêncio, o reencontramos assim que saímos pela porta do consultório onde aquela pessoa, paga para escutar, escutava. Imediatamente caímos nele de novo. Então aquele alívio de uma hora nos parece superficial e banal. O silêncio está sobre a Terra: que um só de nós se cure dele por uma hora não serve à causa comum.
Quando nos submetemos à psicanálise, nos dizem que devemos parar de odiar tão fortemente a nós mesmos. Porém, para nos liberarmos desse ódio, para nos liberarmos do sentimento de culpa, do sentimento de pânico, do silêncio, nos é sugerido viver segundo a natureza, nos abandonarmos ao nosso instinto, seguir nosso puro prazer: fazer da vida uma pura escolha. Mas fazer da vida uma pura escolha não é viver segundo a natureza, é viver contra a natureza, porque não é dado ao homem escolher sempre; o homem não escolheu a hora de seu nascimento, nem o próprio rosto, nem os próprios pais, nem a própria infância: o homem não escolhe, no mais das vezes, a hora de sua morte. O homem então só pode aceitar o próprio rosto, assim como só pode aceitar o próprio destino: e a única escolha que lhe é permitida é aquela entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre a verdade e a mentira. As coisas que os analistas a quem nos submetemos nos dizem não servem porque não levam em conta nossa responsabilidade moral, a única coisa que nos é consentida na vida: aqueles de nós que fazem análise sabem muito bem como aquela efêmera atmosfera de liberdade, que se gozava vivendo segundo nosso puro prazer, era uma atmosfera rarefeita, antinatural, decididamente irrespirável.
Frequentemente esse vício do silêncio que envenena nossa época é expresso com um lugar-comum: “Perdeu-se o gosto da conversação”. É a expressão fútil, mundana, de algo verdadeiro e trágico. Ao dizermos “o gosto da conversação” nós não dizemos nada que nos ajude a viver: mas a possibilidade de uma relação livre e normal entre os homens, isto sim, nos falta, e nos falta a ponto de alguns de nós terem se matado pela consciência desta privação. O silêncio ceifa suas vítimas todo dia. O silêncio é uma doença mortal.
Jamais como hoje a sorte dos homens esteve tão estreitamente conectada, umas às outras, de modo que o desastre de um é o desastre de todos. Então se verifica este fato estranho: que os homens se encontram estreitamente ligados uns ao destino dos outros, de modo que a queda de um arrasta milhares de outros seres, e ao mesmo tempo todos estão sufocados pelo silêncio, incapazes de trocar uma palavra em liberdade. Por isso — porque o desastre de um é o desastre de todos — os meios que nos são oferecidos para nos curarmos do silêncio se revelam insubsistentes. Sugerem-nos que lancemos mão do egoísmo para nos defender do desespero. Mas o egoísmo nunca resolveu nenhum desespero. Estamos habituados até demais a chamar de doenças os vícios de nossa alma e a suportá-los, a nos deixar governar por eles, ou a mitigá-los com xaropes doces, tratá-los como se fossem doenças. O silêncio deve ser contemplado e julgado no âmbito da moral. Não nos é dado escolher ser feliz ou infeliz. Mas é preciso escolher não ser diabolicamente infeliz. O silêncio pode atingir uma forma de infelicidade fechada, monstruosa, diabólica: murchar os dias da juventude, tornar o pão amargo. Pode levar, como já se disse, à morte.
O silêncio deve ser contemplado e julgado no âmbito da moral. Porque o silêncio, assim como a acídia e a luxúria, é um pecado. O fato de que seja um pecado comum a todos os semelhantes de nossa época, de que seja o fruto amargo de nossa época malsã, não nos exime da obrigação de reconhecer sua natureza e de chamá-lo por seu verdadeiro nome.

Natalia Ginzburg, in As pequenas virtudes

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