Esse dia ― foi em hora de almoço ―:
ele Miguilim ia morrer! ― de repente estava engasgado com ossinho
de galinha na goela, foi tudo tão:... malamém... morte... ― nem
deu tempo para ideia nenhuma, era só um errado total, morrer e tudo,
aí! ―; e mais de repente ele já estava em pé em cima do banco,
como se levantou, não pediu ajuda a Pai e Mãe, só num relance
ainda tinha rodado o prato na mesa.― porsimpatia em que alguma vez
tinha ouvido falar ― e, em pé, no banco, sem saber de seus olhos
para ver ― só o acima! ― se benzia, bramado: ― Em nome do
Padre, do Filho e do Espírito Santo!... ― (ele mesmo estava
escutando a voz, aquela voz ― ele se despedindo de si ― aquela
voz, demais: todo choro na voz, a força; e uma coragem de fim,
varando tudo, feito relâmpagos...) Des-de-repente ― ele parecia
que tinha alto voado, tinha voado por uma altura enorme? ― era o
pai batendo em suas costas, a mãe dando água para beber, e ele se
abraçava com eles todos, chorando livre, do ossinho na goela estava
todo salvo. ― “Que fé!” ― Vovó Izidra colava nele o peixe
daqueles olhos bravos dela, que a gente não gostava de encarar ―
“Que fé, que este menino tem!...” ― Vovó Izidra se ajoelhava.
Depois desse dia, Miguilim não queria comer nunca mais asa de
galinha, pedia que não facilitassem de nenhum dos irmãozinhos
comer, não deixassem. Mas até o Dito comia, calado, escondido.
Tomezinho e Chica comiam de propósito, só para contestar Miguilim,
pegavam os ossinhos na mão, a ele mostravam: ― “Miguilim
bobo!... Miguilim doido...” ― debicavam.
Vovó Izidra quizilava com Mãitina:
― Traste de negra pagã, encostada na
cozinha, mascando fumo e rogando para os demônios dela, africanos!
Vem ajoelhar gente, Mãitina!
Mãitina não se importava, com nenhuns,
vinha, ajoelhava igual aos outros, rezava. Não se entendia bem a
reza que ela produzia, tudo resmungo; mesmo para falar, direito,
direito não se compreendia. A Rosa dizendo que Mãitina rezava
porqueado: “Véva Maria zela de graça, pega ne Zesu põe no saco
de mombassa...” Mãitina era preta de um preto estúrdio,
encalcado, trasmanchada de mais grosso preto, um preto de boi. Quando
estava pinguda de muita cachaça, soflagrava umas palavas que a gente
não tinha licença de ouvir, a Rosa dizia que eram nomes de menino
não saber, coisas pra mais tarde. E daí Mãitina caía no chão,
deixava a saia descomposta de qualquer jeito, as pernas pretas
aparecendo. Ou à vez gritava: ― “Cena, Corinta!...” ―
batendo palmas-de-mão. Isso a mãe explicava: uma vez, fazia muitos,
muitos anos, noutro lugar onde moraram, ela tinha ido ao teatro, no
teatro tinha uma moça que aparecia por dançar, Mãitina na vida
dela toda nunca tinha visto nada tão reluzente de bonito, como
aquela moça dançando, que se chamava Corina, por isso aprovava como
o povo no teatro, quando estava chumbada.
― “Que é que é teatro, Mãe?” ―
Miguilim perguntara.
― “Teatro é assim como no
circo-de-cavalinhos, quase...” Mas Miguilim não sabia o que o
circo era.
― Dito, você vai imaginar como é que
é o circo?
― É uma moça galopando em pé em riba
do cavalo, e homens revestidos, com farinha branca na cara... tio
Terêz disse. É numa casa grande de pano.
― Dito, e Pai? E tio Terêz? Chuva está
chovendo tanto...
― “Vigia esses meninos, cochichando,
cruz!, aí em vez de rezar...” ― Vovó Izidra ralhava. E
reprovava Mãitina, discutindo que Mãitina estava grolando feias
palavras despautadas, mandava Mãitina voltar para a cozinha, lugar
de feiticeiro era debaixo dos olhos do fogo, em remexendo no
borralho! Mãitina ia lá, para esperar de cócoras, tudo o que os
outros mandavam ela obedecia, quando não estava com raiva. Se
estivesse com raiva, ninguém não tinha coragem de mandar. Vovó
Izidra tirava o terço, todos tinham de acompanhar. E ela ensinava
alto que o demônio estava despassando nossa casa, rodeando, os
homens já sabiam o sangue um do outro, a gente carecia de rezar sem
esbarrar. Mãe ponteava, com muita cordura, que Vovó Izidra devia de
não exaltar coisas assim, perto dos meninos. ― “Os meninos
necessitam de saber, valença de rezar junto. Inocência deles é que
pode livrar a gente de brabos castigos, o pecado já firmou aqui no
meio, braseado, você mesma é quem sabe, minha filha!...” Mãe
abaixava a cabeça, ela era tão bonita, nada não respondia. Parecia
que Vovó Izidra tinha ódio de Mãe? Vovó Izidra não era mãe
dela, mas só irmã da mãe dela. Mãe de Mãe tinha sido Vó
Benvinda. Vó Benvinda, antes de morrer, toda a vida ela rezava, dia
e noite, caprichava muito com Deus, só queria era rezar e comer, e
ralhava mole com os meninos. Um vaqueiro contou ao Dito, de segredo,
Vó Benvinda quando moça tinha sido mulher-âtoa. Mulher-atôa é
que os homens vão em casa dela e ela quando morrer vai para o
inferno. O que Vovó Izidra estava falando ― … “Só pôr sua
casa porta a fora”... ― A nossa casa? E que demônio diligenciava
de entrar em mulher virava cadela de satanaz... Vovó Izidra não
tinha de gostar de Mãe? Então, por que era que judiava, judiava?
Miguilim gostava pudesse abraçar e beijar a Mãezinha, muito, demais
muito, aquela hora mesma. Ah, mas Vovó Izidra é velha, Mãe era
moça, Vovó Izidra tinha de morrer mais primeiro. Ali no oratório,
embrulhados e recosidos num saquinho de pano, eles guardavam os
umbiguinhos secos de todos os meninos, os dos irmãozinhos, das
irmãs, o de Miguilim também ― rato nenhum não pudesse roer, caso
roendo menino então crescia para ser só ladrão. Agora, ele ia
gostar sempre de Mãe, tenção de ser menino comportado, obediente,
conforme o de Deus, essas orações todas. Bom era ser filho do
Bispo, e o mundo solto para passarinhos... Os joelhos de Miguilim
descansavam e cansavam, doía era o corpo, um poucadinho só, quase
não doía. Mas Tomezinho brincava de estralar as juntas dos dedos;
depois, de puxar o nariz para diante. A Chica rezava alto, era a voz
mais bonita de todas. Drelina parecia uma santa. Todos diziam que ela
parecia uma santa. E os cachorros lá fora, desertados com tanta
chuva? De certo iam para a coberta do carro. ― “Sem os cachorros,
como é que a gente ia poder viver aqui?" ― o pai sempre
falava. Eles tomavam conta das criações. Se não, vinham de noite
as raposas, gambá, a irarinha muito raivosa, até onça de se
tremer, até lobos, lobo guará dos Gerais, que vinham, de manhã
deixavam fios de pêlo e catinga deles que cachorros reconheciam nos
esteios da cerca, nas porteiras, uns deles até mijavam sangue. E o
teiú, brabeado, espancando com o rabo ― rabo como tesoura
tonsando. Lobo uivava feio, mais horroroso mais triste do que chorro.
E jibóia! Jibóia vinha mesmo de dia, pegava galinha no galinheiro.
Os cachorros tinham medo dela? Jibóia, cobra, mais medonha de se
pensar, uma sojigou o cachorrinho Floresto, mordeu uma orelha dele
por se firmar, queria se enrolar nele todo, mor de sufocar sem partir
os ossos, já tinha conseguido de se enlaçar duas dessas voltas; Pai
acudiu, tiro não podia ter cautela de dar, lapeava só com o facão,
disse que ela endurecia o corpo de propósito, para resistir no gume
do facão, o facão bambeava. Contavam que no Terentém, em antigos
anos, uma jibóia velha entrou numa casa, já estava engolindo por
metade um meninozinho pequeno, na rede, no meio daquela baba…
Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim
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