Uma sala de estar e de jantar de um
apartamento de classe média, pequeno mas bem decorado. Uma porta
aberta à esquerda mostra a cozinha, onde Maria prepara o jantar. Na
sala, João está de frente para um pôster emoldurado do Che
Guevara, o único quadro nas paredes. Abaixo do pôster há uma
pequena prateleira com livros e CDs. Em cima da mesa de centro da
sala há dois grandes livros de arte. Maria e João têm a mesma
idade, quase 30 anos. Maria grita da cozinha:
— Será que esse seu André gosta de
bacalhau com creme? Vai ter que gostar. É o único prato.
— Não sei.
Maria aparece na porta da cozinha.
— Ele vem com a mulher? Existe uma
senhora André?
— Não sei.
— Eu botei lugares para três na mesa.
Se aparecer uma senhora André, é só botar mais um. Melhor botar do
que tirar. Você não acha?
— Tá bom assim.
— Que idade tem esse seu André?
— Uns quarenta e poucos. E ele não é
“meu” André. É o chefe da minha seção.
— E foi ele mesmo que se convidou pra
jantar aqui?
— Foi. Ele precisa escolher alguém
para a vaga do pobre do Valtinho e acho que quer conhecer os
candidatos mais de perto.
— Ele está se convidando para jantar
na casa de todos os candidatos à vaga, antes de escolher?
— Acho que sim. Mas eu sou o primeiro.
— Ele simpatizou com você.
— É. Por isso, Má, este jantar tem
que ser perfeito. Nós temos que ser um casal perfeito.
— Meu bacalhau eu garanto. O vinho
branco está na geladeira. Eu prometo não arrotar ou limpar os
dentes com a unha.
— Obrigado. O que você acha deste
pôster?
— O Che? O que que tem o pôster?
— Ele fica aí ou a gente esconde?
— Esconder por quê?
— Porque o André pode não entender.
Pode ter uma impressão errada.
— Que impressão errada ele pode ter?
Que nós somos um casal de revolucionários? João, lembra daquele
pôster de tourada que a tia Bela trouxe pra você da Espanha? Tinha
o seu nome como um dos toureiros. E ninguém pensou que você tivesse
participado mesmo de uma tourada. O pôster do Che é a mesma coisa.
Um pôster do Che na parede não significa nada. Um dia pode ter
significado, mas...
— Aí é que está. Um dia significou.
— E você tem vergonha do tempo em que
significou?
— Não é isso. O importante é o que o
André vai pensar. Ele não tem como saber se o pôster não
significa mais nada, e é apenas uma peça de decoração, ou ainda
significa pra mim o que significou um dia. E neste caso, adeus vaga
do Valtinho.
— Esse seu André não pode ser tão
tapado assim. Ele sabe que a cara do Che aparece até em tambor de
escola de samba. Até em camiseta da Narcisa Sei Lá o Quê. Hoje não
é símbolo de nada, é moda. A garotada que usa a cara do Che na
roupa nem sabe quem ele foi.
— É, mas ainda acho arriscado deixar o
Che aí. Pra que arriscar?
— Se é por isso, é melhor esconder
esses livros de cima da mesa de centro também. O seu André pode não
gostar.
— Por quê?
— Os livros são do Picasso e do
Francis Bacon.
— E daí?
— Um comunista e um veado. E se ele
examinar os nossos CDs? Muita Mercedes Sosa. Que nós nunca mais
ouvimos, mas estão aí. E se der uma espiada nos livros da estante?
Lembra do primeiro livro que eu te dei? Quando nós nem estávamos
namorando ainda? Ele está na estante, bem à vista. As veias
abertas da América Latina, do Galeano. Que você brincou e disse
que pensava que o título fosse As véias abertas da América
Latina e o livro fosse sobre cirurgia em idosas.
— E você não achou a menor graça.
— Não tinha graça. Na época, não
tinha graça.
— Você sempre foi mais séria do que
eu. Era você que me carregava para as passeatas.
— Talvez você deva me esconder do seu
André também.
— Ele não é “meu” André, Má.
Não entendo essa sua implicância com alguém que nem conhece. Você
sabe o que significa ser escolhido para o lugar do Valtinho, que Deus
o tenha? Nossa renda pode duplicar. Vamos poder trocar de
apartamento. Viajar para a Europa nas férias. O que você tem contra
melhorar de vida?
— Depende do que a gente sacrifica pra
melhorar de vida.
— E o que nós estamos sacrificando?
Esconder o pôster do Che Guevara é sacrificar alguma coisa?
— De certa maneira, é.
— Você mesma disse que um pôster do
Che Guevara não significa mais nada.
— O pôster não significa nada.
Esconder o pôster significa.
— Maria...
— João, quer saber de uma coisa? Faz o
que você quiser. Eu vou ver o meu bacalhau.
Maria volta para a cozinha. João a
acompanha com o olhar. Depois de alguns minutos, ele grita:
— Maria!
Ela aparece na porta da cozinha.
— Ahn?
— Você vai receber o André com essa
roupa?
Maria se examina. Pergunta:
— Por quê? Está muito ruim?
— Por que você não bota aquele seu
preto?
— Aquele com o decote?
— É.
— O que mostra os seios?
— É.
— Você quer que o seu André veja os
meus seios?
— Não é isso, Maria. Lá vem você.
Quero que você esteja bonita para recebê-lo.
— Com os seios à mostra, como uma
oferenda.
— Não. Com toda a sua beleza em
evidência. Ele vem aqui para me conhecer melhor, para ver como é a
minha vida fora da firma. Como é o meu mundo. E você é uma parte
importante desse mundo.
— Eu e meus seios.
— Você e sua beleza.
— E se o seu André se entusiasmar com
os meus seios? Se quiser testá-los, para ver se são verdadeiros,
quando você não estiver olhando? Se cochichar no meu ouvido que
quer se encontrar comigo a sós para conversarmos sobre o seu futuro
na firma?
João fica em silêncio.
Maria:
— É o que você quer?
— Claro que não, Má. Mas acho que
você deve estar disposta a fazer um sacrifício pelo nosso futuro.
Sabe quantos candidatos têm para a vaga do pobre do Valtinho? No
mínimo cinco. Isto é uma guerra, minha querida. Precisamos usar
todas as armas que temos.
— E você está convocando os meus
peitos para a guerra.
— Não, Maria. Eu...
Ouve-se o som do interfone. João vai
atender.
— Oi... Epa, pode subir. Quarto andar à
direita de quem sai do elevador. Tou abrindo a porta... Abriu?
Grande.
João desliga o interfone e começa uma
correria. Tira o pôster da parede e o entrega a Maria.
— Rápido. Leva pro nosso quarto. E o
livro do Galeano. E não esquece a Mercedes Sosa.
— Calma. Eu só tenho duas mãos.
— E troca de vestido.
— Não vai dar tempo.
— Vai, vai. Eu recebo ele enquanto você
troca de vestido.
Maria sai da sala, carregando o pôster,
o livro e os CDs. Deixa cair alguns CDs e volta para pegá-los do
chão.
O som da campainha. João abre a porta.
André é um homem de baixa estatura, cabelo grisalho, sem gravata
mas elegantemente vestido com um blazer azul-marinho.
JOÃO: Aí está ele!
ANDRÉ: Mr. John. How are you?
— Bem, bem. Vá entrando. Senta naquela
ali, que é a mais confortável.
— Que apartamento simpático.
André senta numa poltrona e
imediatamente pega um dos livros de arte esquecidos sobre a mesa de
centro.
— Epa. Francis Bacon. Esse é o cara.
Vi uma exposição completíssima dele em Madri, não faz muito. Esse
é craque. Ele e o Lucian Freud...
— Eu também gosto muito dos dois.
— Você mora sozinho aqui, João?
— Não, não. Eu...
Maria entra na sala. Ela trocou de
vestido, mas pôs um fechado até o pescoço. André ergue-se da
poltrona, visivelmente surpreso.
João apresenta:
— Essa é minha esposa, Maria.
— Maria! Que prazer. Eu não sabia que
o João era casado.
— Ele às vezes também esquece.
Os três riem, João sem vontade.
— Bom — diz Maria, dirigindo-se para
a cozinha —, vou tratar do nosso jantar. Espero que o senhor goste
de bacalhau.
— Adoro. E, por favor, não me chame de
“senhor”.
Maria entra na cozinha. João começa a
perguntar:
— Vamos logo prum vinhozinho, ou você
prefere um uísque antes, ou um...
André o interrompe, com uma mão na sua
coxa:
— Eu pensei que fosse comer um jantar
feito por você. Me disseram que você é um bom cozinheiro.
— Não. Brincadeira do pessoal. Só sei
fazer o trivial. Maria é que é a cozinheira.
André continua com a mão na coxa de
João.
— Você é casado mas não usa
aliança...
— Andei fraturando esta mão e os dedos
incharam. Tive que cortar a aliança. Isto já faz tempo, mas ainda
não mandei consertar. A aliança.
— A falta de aliança pode dar um sinal
errado...
— Pois é...
André sorri.
— A falta de uma aliança pode destruir
um sonho...
Silêncio. Quando Maria surge na porta da
cozinha com a garrafa de vinho e um abridor, André tira a mão da
coxa de João. Maria diz:
— Preciso de um homem para abrir o
vinho.
— É comigo — diz André.
Ele tem dificuldade em abrir o vinho e
fere um dedo. Depois de colocar o vinho aberto sobre a mesa, diz:
— Preciso lavar as mãos.
Maria (examinando o ferimento no dedo):
— Não será melhor fazer um curativo?
— Nada. É só um arranhão. Não vou
morrer. Só preciso lavar as mãos.
João indica o caminho do banheiro, para
a direita da sala.
— Segunda porta à esquerda.
Quando André sai da sala João vira-se
para Maria e cochicha:
— “Ele às vezes também esquece”.
Precisava dizer aquilo? Quando foi que eu esqueci?
— Foi uma piada, João. E ele gostou.
— E esse vestido ridículo?
— Meus peitos, afinal, não seriam
necessários. Ele está obviamente a fim de você.
— Bobagem.
— Você é que deve se perguntar que
sacrifício está disposto a fazer para ganhar esta guerra, João.
— Má, eu acho que nós estamos
agradando. Ele conhece o Lucian Freud. Duvido que algum dos outros
candidatos à vaga do pobre do Valtinho saiba quem é o Lucian Freud.
Agora é só você não estragar tudo.
— Não vou mais abrir a boca.
— Não. Tem que abrir. Ser simpática.
Pense em tudo que está em jogo. Pense no nosso futuro. Na nossa vida
daqui pra frente se eu for o escolhido. No nosso...
João para porque André voltou para a
sala.
— Errei de porta — desculpa-se André.
— Entrei no quarto de vocês. Vi que tem um pôster do Che Guevara
em cima da cama. Igual a um que eu tenho em casa.
— É — diz João. — Nós estamos
tentando decidir onde colocá-lo.
— Ali — diz André, indicando o lugar
na parede onde o pôster estava.
— Vamos pra mesa, senhores? — propõe
Maria.
À mesa, João sente o joelho de André
encostar no seu. Não afasta a perna.
Luís Fernando Veríssimo, in Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário