quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O poster

          Uma sala de estar e de jantar de um apartamento de classe média, pequeno mas bem decorado. Uma porta aberta à esquerda mostra a cozinha, onde Maria prepara o jantar. Na sala, João está de frente para um pôster emoldurado do Che Guevara, o único quadro nas paredes. Abaixo do pôster há uma pequena prateleira com livros e CDs. Em cima da mesa de centro da sala há dois grandes livros de arte. Maria e João têm a mesma idade, quase 30 anos. Maria grita da cozinha:
Será que esse seu André gosta de bacalhau com creme? Vai ter que gostar. É o único prato.
Não sei.
Maria aparece na porta da cozinha.
Ele vem com a mulher? Existe uma senhora André?
Não sei.
Eu botei lugares para três na mesa. Se aparecer uma senhora André, é só botar mais um. Melhor botar do que tirar. Você não acha?
Tá bom assim.
Que idade tem esse seu André?
Uns quarenta e poucos. E ele não é “meu” André. É o chefe da minha seção.
E foi ele mesmo que se convidou pra jantar aqui?
Foi. Ele precisa escolher alguém para a vaga do pobre do Valtinho e acho que quer conhecer os candidatos mais de perto.
Ele está se convidando para jantar na casa de todos os candidatos à vaga, antes de escolher?
Acho que sim. Mas eu sou o primeiro.
Ele simpatizou com você.
É. Por isso, Má, este jantar tem que ser perfeito. Nós temos que ser um casal perfeito.
Meu bacalhau eu garanto. O vinho branco está na geladeira. Eu prometo não arrotar ou limpar os dentes com a unha.
Obrigado. O que você acha deste pôster?
O Che? O que que tem o pôster?
Ele fica aí ou a gente esconde?
Esconder por quê?
Porque o André pode não entender. Pode ter uma impressão errada.
Que impressão errada ele pode ter? Que nós somos um casal de revolucionários? João, lembra daquele pôster de tourada que a tia Bela trouxe pra você da Espanha? Tinha o seu nome como um dos toureiros. E ninguém pensou que você tivesse participado mesmo de uma tourada. O pôster do Che é a mesma coisa. Um pôster do Che na parede não significa nada. Um dia pode ter significado, mas...
Aí é que está. Um dia significou.
E você tem vergonha do tempo em que significou?
Não é isso. O importante é o que o André vai pensar. Ele não tem como saber se o pôster não significa mais nada, e é apenas uma peça de decoração, ou ainda significa pra mim o que significou um dia. E neste caso, adeus vaga do Valtinho.
Esse seu André não pode ser tão tapado assim. Ele sabe que a cara do Che aparece até em tambor de escola de samba. Até em camiseta da Narcisa Sei Lá o Quê. Hoje não é símbolo de nada, é moda. A garotada que usa a cara do Che na roupa nem sabe quem ele foi.
É, mas ainda acho arriscado deixar o Che aí. Pra que arriscar?
Se é por isso, é melhor esconder esses livros de cima da mesa de centro também. O seu André pode não gostar.
Por quê?
Os livros são do Picasso e do Francis Bacon.
E daí?
Um comunista e um veado. E se ele examinar os nossos CDs? Muita Mercedes Sosa. Que nós nunca mais ouvimos, mas estão aí. E se der uma espiada nos livros da estante? Lembra do primeiro livro que eu te dei? Quando nós nem estávamos namorando ainda? Ele está na estante, bem à vista. As veias abertas da América Latina, do Galeano. Que você brincou e disse que pensava que o título fosse As véias abertas da América Latina e o livro fosse sobre cirurgia em idosas.
E você não achou a menor graça.
Não tinha graça. Na época, não tinha graça.
Você sempre foi mais séria do que eu. Era você que me carregava para as passeatas.
Talvez você deva me esconder do seu André também.
Ele não é “meu” André, Má. Não entendo essa sua implicância com alguém que nem conhece. Você sabe o que significa ser escolhido para o lugar do Valtinho, que Deus o tenha? Nossa renda pode duplicar. Vamos poder trocar de apartamento. Viajar para a Europa nas férias. O que você tem contra melhorar de vida?
Depende do que a gente sacrifica pra melhorar de vida.
E o que nós estamos sacrificando? Esconder o pôster do Che Guevara é sacrificar alguma coisa?
De certa maneira, é.
Você mesma disse que um pôster do Che Guevara não significa mais nada.
O pôster não significa nada. Esconder o pôster significa.
Maria...
João, quer saber de uma coisa? Faz o que você quiser. Eu vou ver o meu bacalhau.
Maria volta para a cozinha. João a acompanha com o olhar. Depois de alguns minutos, ele grita:
Maria!
Ela aparece na porta da cozinha.
Ahn?
Você vai receber o André com essa roupa?
Maria se examina. Pergunta:
Por quê? Está muito ruim?
Por que você não bota aquele seu preto?
Aquele com o decote?
É.
O que mostra os seios?
É.
Você quer que o seu André veja os meus seios?
Não é isso, Maria. Lá vem você. Quero que você esteja bonita para recebê-lo.
Com os seios à mostra, como uma oferenda.
Não. Com toda a sua beleza em evidência. Ele vem aqui para me conhecer melhor, para ver como é a minha vida fora da firma. Como é o meu mundo. E você é uma parte importante desse mundo.
Eu e meus seios.
Você e sua beleza.
E se o seu André se entusiasmar com os meus seios? Se quiser testá-los, para ver se são verdadeiros, quando você não estiver olhando? Se cochichar no meu ouvido que quer se encontrar comigo a sós para conversarmos sobre o seu futuro na firma?
João fica em silêncio.
Maria:
É o que você quer?
Claro que não, Má. Mas acho que você deve estar disposta a fazer um sacrifício pelo nosso futuro. Sabe quantos candidatos têm para a vaga do pobre do Valtinho? No mínimo cinco. Isto é uma guerra, minha querida. Precisamos usar todas as armas que temos.
E você está convocando os meus peitos para a guerra.
Não, Maria. Eu...
Ouve-se o som do interfone. João vai atender.
Oi... Epa, pode subir. Quarto andar à direita de quem sai do elevador. Tou abrindo a porta... Abriu? Grande.
João desliga o interfone e começa uma correria. Tira o pôster da parede e o entrega a Maria.
Rápido. Leva pro nosso quarto. E o livro do Galeano. E não esquece a Mercedes Sosa.
Calma. Eu só tenho duas mãos.
E troca de vestido.
Não vai dar tempo.
Vai, vai. Eu recebo ele enquanto você troca de vestido.
Maria sai da sala, carregando o pôster, o livro e os CDs. Deixa cair alguns CDs e volta para pegá-los do chão.
O som da campainha. João abre a porta. André é um homem de baixa estatura, cabelo grisalho, sem gravata mas elegantemente vestido com um blazer azul-marinho.
JOÃO: Aí está ele!
ANDRÉ: Mr. John. How are you?
Bem, bem. Vá entrando. Senta naquela ali, que é a mais confortável.
Que apartamento simpático.
André senta numa poltrona e imediatamente pega um dos livros de arte esquecidos sobre a mesa de centro.
Epa. Francis Bacon. Esse é o cara. Vi uma exposição completíssima dele em Madri, não faz muito. Esse é craque. Ele e o Lucian Freud...
Eu também gosto muito dos dois.
Você mora sozinho aqui, João?
Não, não. Eu...
Maria entra na sala. Ela trocou de vestido, mas pôs um fechado até o pescoço. André ergue-se da poltrona, visivelmente surpreso.
João apresenta:
Essa é minha esposa, Maria.
Maria! Que prazer. Eu não sabia que o João era casado.
Ele às vezes também esquece.
Os três riem, João sem vontade.
Bom — diz Maria, dirigindo-se para a cozinha —, vou tratar do nosso jantar. Espero que o senhor goste de bacalhau.
Adoro. E, por favor, não me chame de “senhor”.
Maria entra na cozinha. João começa a perguntar:
Vamos logo prum vinhozinho, ou você prefere um uísque antes, ou um...
André o interrompe, com uma mão na sua coxa:
Eu pensei que fosse comer um jantar feito por você. Me disseram que você é um bom cozinheiro.
Não. Brincadeira do pessoal. Só sei fazer o trivial. Maria é que é a cozinheira.
André continua com a mão na coxa de João.
Você é casado mas não usa aliança...
Andei fraturando esta mão e os dedos incharam. Tive que cortar a aliança. Isto já faz tempo, mas ainda não mandei consertar. A aliança.
A falta de aliança pode dar um sinal errado...
Pois é...
André sorri.
A falta de uma aliança pode destruir um sonho...
Silêncio. Quando Maria surge na porta da cozinha com a garrafa de vinho e um abridor, André tira a mão da coxa de João. Maria diz:
Preciso de um homem para abrir o vinho.
É comigo — diz André.
Ele tem dificuldade em abrir o vinho e fere um dedo. Depois de colocar o vinho aberto sobre a mesa, diz:
Preciso lavar as mãos.
Maria (examinando o ferimento no dedo):
Não será melhor fazer um curativo?
Nada. É só um arranhão. Não vou morrer. Só preciso lavar as mãos.
João indica o caminho do banheiro, para a direita da sala.
Segunda porta à esquerda.
Quando André sai da sala João vira-se para Maria e cochicha:
— “Ele às vezes também esquece”. Precisava dizer aquilo? Quando foi que eu esqueci?
Foi uma piada, João. E ele gostou.
E esse vestido ridículo?
Meus peitos, afinal, não seriam necessários. Ele está obviamente a fim de você.
Bobagem.
Você é que deve se perguntar que sacrifício está disposto a fazer para ganhar esta guerra, João.
Má, eu acho que nós estamos agradando. Ele conhece o Lucian Freud. Duvido que algum dos outros candidatos à vaga do pobre do Valtinho saiba quem é o Lucian Freud. Agora é só você não estragar tudo.
Não vou mais abrir a boca.
Não. Tem que abrir. Ser simpática. Pense em tudo que está em jogo. Pense no nosso futuro. Na nossa vida daqui pra frente se eu for o escolhido. No nosso...
João para porque André voltou para a sala.
Errei de porta — desculpa-se André. — Entrei no quarto de vocês. Vi que tem um pôster do Che Guevara em cima da cama. Igual a um que eu tenho em casa.
É — diz João. — Nós estamos tentando decidir onde colocá-lo.
Ali — diz André, indicando o lugar na parede onde o pôster estava.
Vamos pra mesa, senhores? — propõe Maria.
À mesa, João sente o joelho de André encostar no seu. Não afasta a perna.

Luís Fernando Veríssimo, in Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos 

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