terça-feira, 3 de novembro de 2020

O livro da natureza em Galileu

          A metáfora mais famosa na obra de Galileu — e que encerra em si o nó da nova filosofia — é a do livro da natureza escrito em linguagem matemática.
A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode entender se antes não se aprende a compreender a língua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível para os homens entender suas palavras; sem eles é rodar em vão por um labirinto escuro. (Saggiatore, 6)

A imagem do livro do mundo já possuía uma longa história antes de Galileu, dos filósofos da Idade Média a Nicolas de Cues, a Montaigne, e era usada por contemporâneos de Galileu como Francis Bacon e Tommaso Campanella. Nas poesias de Campanella, publicadas um ano antes do Saggiatore, existe um soneto que começa com estas palavras: “O mundo é o livro em que a inteligência eterna escreve os próprios conceitos”.
Já na Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari (1613), ou seja, dez anos antes do Saggiatore, Galileu opunha a leitura direta (livro do mundo) à indireta (livros de Aristóteles). Essa passagem é muito interessante, pois Galileu aí descreve a pintura de Arcimboldo, com juízos críticos que valem para a pintura em geral (e testemunham suas ligações com artistas florentinos como Ludovico Cigoli), e sobretudo com reflexões sobre a análise combinatória que podem ser aproximadas daquelas que serão lidas mais adiante.

Restam somente em contradição alguns severos defensores de cada minúcia peripatética, os quais, daquilo que posso compreender, educados e nutridos desde a primeira infância de seus estudos nesta opinião que o filosofar não seja, nem possa ser outra coisa senão fazer grande prática sobre os textos de Aristóteles, e assim prontamente e em grande número possam acorrer de diferentes lugares e juntar-se para examinar algum problema proposto, não querem mais saber de levantar os olhos daqueles papéis, como se esse grande livro do mundo não fosse escrito pela natureza para ser lido por outros, a não ser por Aristóteles, e que seus olhos tivessem que ver por toda a posteridade. Esses, que se sujeitam a leis tão estritas, me fazem lembrar certas obrigações, às quais às vezes de brincadeira se restringem os caprichosos pintores, em querer representar um rosto humano ou outras figuras com a junção ora de instrumentos agrícolas ora somente de frutas ou de flores desta ou daquela estação, cujas bizarrices, embora propostas como divertimento, são belas e agradáveis, e mostram maior perspicácia nesse artífice do que naquele, conforme ele tenha sabido mais adequadamente escolher e aplicar isso ou aquilo à parte imitada; mas, se alguém, talvez por ter consumido todos os seus estudos em semelhante maneira de pintar, quisesse depois universalmente concluir que qualquer outro modo de pintar seria imperfeito e criticável, certamente Cigoli e outros pintores ilustres ririam dele.

A contribuição mais nova de Galileu à metáfora livro-mundo é a atenção ao seu alfabeto especial, aos “caracteres nos quais está escrito”. Pode-se então precisar que a verdadeira relação metafórica se estabelece, mais do que entre mundo e livro, entre mundo e alfabeto. Conforme esta passagem do Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (segunda jornada), o alfabeto é que é o mundo:

Tenho um pequeno livro muito menor que o de Aristóteles e de Ovídio, no qual estão contidas todas as ciências, e com pouquíssimos outros estudos se pode formar uma ideia bem perfeita: e isso é o alfabeto; e não há dúvida de que aquele que souber combinar e ordenar bem esta e aquela vogal com essas e aquelas outras consoantes obterá respostas muito verdadeiras para todas as dúvidas e daí extrairá os ensinamentos de todas as ciências e de todas as artes, justamente daquela maneira que o pintor partindo de simples cores diferentes, separadamente colocadas sobre a tela, vai, com a mistura de um pouco desta com um pouco daquela e de outra mais, figurando homens, plantas, fábricas, pássaros, peixes e, em suma, imitando todos os objetos visíveis, sem que na tela apareçam nem olhos nem penas nem escamas nem folhas nem seixos: antes é necessário que nenhuma das coisas a serem imitadas ou certas partes delas estejam atualmente entre as cores, querendo que com elas possam ser representadas todas as coisas, e que, se aí estivessem, por exemplo, penas, estas só serviriam para pintar pássaros ou penachos.

Quando fala do alfabeto, Galileu pretende, portanto, um sistema combinatório em condições de dar conta de toda a multiplicidade do universo. Também aqui vemos Galileu introduzir a comparação com a pintura: a combinação das letras do alfabeto é o equivalente da combinação das cores na tela. Notar-se-á que se trata de uma combinação num nível diferente daquela da pintura de Arcimboldo na citação precedente: uma combinação de objetos já dotados de significado (quadro de Arcimboldo, collage ou assemblage de penas, centenas de citações aristotélicas) não pode representar a totalidade do real; para chegar até aí é preciso recorrer a uma combinação de elementos mínimos, como as cores simples ou as letras do alfabeto.
Numa outra passagem do Diálogo (no final da primeira jornada) que faz o elogio das grandes invenções do espírito humano, o lugar mais elevado toca ao alfabeto. Aqui de novo se fala de combinação e também de rapidez de comunicação: outro tema, o da rapidez, importantíssimo em Galileu.

Mas sobre todas as invenções estupendas, que eminência de mente foi aquela de quem imaginou encontrar modo de comunicar seus próprios pensamentos mais recônditos a qualquer outra pessoa, mesmo que distante por enorme intervalo de lugar e de tempo? falar com aqueles que estão na Índia, falar com aqueles que ainda não nasceram e só nascerão dentro de mil ou 10 mil anos? e com que facilidade? Com as várias junções de vinte pequenos caracteres num pedaço de papel. Seja este o segredo de todas as admiráveis invenções humanas.

Se relermos a passagem do Saggiatore que citei no início à luz do que acaba de ser transcrito, entenderemos melhor como para Galileu a matemática e sobretudo a geometria têm uma função de alfabeto. Este ponto é explicitado numa carta de janeiro de 1641 (um ano antes da morte) a Fortunio Liceti.

Mas eu considero de fato que o livro da filosofia é aquele que está perpetuamente aberto diante de nossos olhos; mas, porque se encontra escrito em caracteres diferentes daqueles do nosso alfabeto, não pode ser lido por todos: e são os caracteres de tal livro triângulos, quadrados, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas, perfeitamente adequadas para tal leitura.

Pode-se observar que, em sua enumeração das figuras, Galileu, mesmo tendo lido Kepler, não fala de elipses. Porque em sua análise combinatória deve partir das formas mais simples? Ou porque sua batalha contra o modelo ptolomaico ainda se joga no interior de uma ideia clássica de proporção e perfeição da qual o círculo e a esfera permanecem como as imagens soberanas?
O problema do alfabeto do livro da natureza está ligado ao da “nobreza” das formas, como se vê nesta passagem da dedicatória do Dialogo sopra i due massimi sistemi ao grão-duque da Toscana:

Quem olha mais alto se diferencia mais altamente; e voltar-se para o grande livro da natureza, que é o próprio objeto da filosofia, é o modo para erguer os olhos: livro no qual, embora tudo aquilo que se lê, como obra do Artífice onipotente, seja por isso extremamente proporcionado, aquele mesmo assim é mais expedito e mais digno, onde maior, em nossa opinião, parece a obra e o artifício. A constituição do universo dentre os naturais apreensíveis, no meu entender, pode ser colocada em primeiro lugar: pois se aquela, como contentora universal, em grandeza supera tudo o mais, como regra e manutenção de tudo deve também ser superior em nobreza. Porém, se a ninguém jamais tocou em excesso diferenciar-se pelo intelecto dos outros homens, Ptolomeu e Copérnico foram aqueles que tão elevadamente leram, se fixaram e filosofaram sobre a constituição do mundo.

Um quesito que Galileu se coloca várias vezes para ironizar o velho modo de pensamento é o seguinte: as formas geométricas regulares devem ser consideradas mais nobres, mais perfeitas que as formas naturais empíricas, acidentadas etc. É sobretudo a propósito das irregularidades da Lua que a questão é discutida: existe uma carta de Galileu para Gallanzone Gallanzoni inteiramente dedicada ao tema; mas bastará citar a passagem do Saggiatore, 38:

E eu, quanto a mim, não tendo nunca lido as crônicas e as nobrezas particulares das figuras, não sei quais delas são mais ou menos nobres, mais ou menos perfeitas; mas creio que todas sejam antigas e nobres de algum modo ou, melhor dizendo, que quanto a elas próprias não são nem nobres nem perfeitas, nem ignóbeis e imperfeitas, senão enquanto para erguer paredes creio que as quadradas sejam mais perfeitas que as esféricas, mas para fazer rolar ou conduzir carroças sejam mais indicadas as redondas que as triangulares. Mas, voltando a Sarsi, ele diz que eu lhe ofereço inúmeros argumentos para provar a aspereza da superfície côncava do céu, porque eu próprio quero que a Lua e os outros planetas (corpos também eles ainda celestes e bastante mais que o próprio céu nobres e perfeitos) sejam de superfície montanhosa, áspera e irregular; e, se isso é, por que não se deve dizer que tal desigualdade se encontra ainda na figura celeste? Aqui pode o próprio Sarsi dar como resposta aquilo que ele responderia a alguém que lhe quisesse provar que o mar deveria estar cheio de espinhas e de escamas, pois assim são as baleias, os atuns e os outros peixes que o habitam.

Enquanto partidário da geometria, Galileu deveria apoiar a causa da superioridade das formas geométricas, mas enquanto observador da natureza ele recusa a ideia de uma perfeição abstrata e opõe a imagem da Lua “montanhosa, áspera e desigual” à pureza dos céus da cosmologia aristotélico-ptolomaica.
Por que uma esfera (ou uma pirâmide) deveria ser mais perfeita que uma forma natural, por exemplo, a de um cavalo ou de um gafanhoto? A questão é recorrente em todo o Dialogo sopra i due massimi sistemi. Nesta passagem da segunda jornada voltamos a encontrar a comparação com o trabalho do artista, aqui o escultor: “Contudo, gostaria de saber se a mesma dificuldade se encontra ao representar um sólido de qualquer outra figura, isto é, para explicar melhor, se maior dificuldade se encontra em querer reduzir um pedaço de mármore à figura de uma esfera perfeita do que a uma perfeita pirâmide ou a um perfeito cavalo ou então a um perfeito gafanhoto”.
Uma das páginas mais belas e importantes do Dialogo (primeira jornada) é o elogio da Terra como objeto de alterações, mutações, gerações. Galileu evoca com espanto a imagem de uma Terra de jaspe, de uma Terra de cristal, de uma Terra incorruptível, como petrificada pela Medusa.

Não posso sem grande admiração, e direi grande repugnância para meu intelecto, ouvir atribuições de grande nobreza e perfeição aos corpos celestes e integrantes do universo por serem impassíveis, imutáveis, inalteráveis etc., e ao contrário considerar grande imperfeição ser alterável, capaz de gerar, mutável etc.: julgo a Terra nobilíssima e admirável pelas tantas e tão diversas alterações, mutações, gerações etc. que nela incessantemente ocorrem; e quando, sem estar sujeita a nenhuma mutação, ela fosse toda uma vasta solidão de areia ou massa de jaspe ou que, no tempo do dilúvio, congelando-se as águas que a cobriam se transformasse num globo imenso de cristal, onde não nascesse nem se alterasse ou mudasse coisa nenhuma, eu a consideraria um corpanzil inútil no mundo, cheio de ócio e, para usar poucas palavras, supérfluo e como se não estivesse na natureza e não faria diferença entre estar viva ou morta; e o mesmo digo sobre a Lua, Júpiter e todos os outros globos do mundo. […] Esses que tanto exaltam a incorruptibilidade, a inalterabilidade etc. creio que se reduzem a dizer tais coisas pelo grande desejo de viver muito e pelo terror que têm da morte; e não consideram que, quando os homens fossem imortais, não lhes tocaria vir ao mundo. Estes mereceriam encontrar-se numa cabeça de Medusa, que os transformasse em estátua de jaspe ou de diamante, para tornar-se mais perfeitos do que são.

Se associarmos o discurso sobre o alfabeto do livro da natureza a este elogio das pequenas alterações, mutações etc. vemos que a verdadeira oposição se situa entre imobilidade e mobilidade, e é contra uma imagem de inalterabilidade da natureza que Galileu toma partido, evocando a carranca de Medusa. (A mesma imagem e argumento já se achavam presentes no primeiro livro astronômico de Galileu, Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari.) O alfabeto geométrico ou matemático da natureza será aquele que, baseando-se em sua capacidade de ser decomposto em elementos mínimos e de representar todas as formas do movimento e da mudança, cancela a oposição entre céus imutáveis e elementos terrestres.
A dimensão filosófica dessa operação está bem ilustrada por esta fala do Dialogo entre o ptolomaico Simplicio e Salviati, porta-voz do autor, em que retorna o tema da “nobreza”:

SIMP.: Este modo de filosofar tende à subversão de toda a filosofia natural e a desordenar e arruinar o céu, a Terra e todo o universo. Mas acredito que os fundamentos dos peripatéticos sejam tais que não há perigo de que com a ruína eles possam construir novas ciências.
SALV.: Não se preocupe com o céu nem com a Terra, nem tema sua subversão, como tampouco da filosofia; porque, quanto ao céu, é vão que temam aquilo que vocês mesmos consideram inalterável e impassível; quanto à Terra, tratamos de nobilitá-la e aperfeiçoá-la, enquanto procuramos fazê-la semelhante aos corpos celestes e de certo modo colocá-la quase no céu, de onde os seus filósofos a expulsaram.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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