sexta-feira, 6 de novembro de 2020

João Contreras, o Fôia

         O sol fervia e torrava até mesmo a pele acostumada de Pedro Guarany. Ele fez um movimento certeiro com o machado e aprontou outro toco de lenha. Passou o antebraço na testa para livrar-se do suor que escorria como cascata. Penacho bebia água e pastava no raso da sanga, cujas águas desfilavam calmamente em sua correnteza leve e arrastada. Pedro passara as duas últimas semanas cortando lenha desde o amanhecer até o cair da noite. Ao escurecer, colocava toda a madeira em uma pequena carroça de duas rodas e levava até a lenheira.
Cortou a última tora de lenha e percebeu que um arbusto sacudia próximo à beira da água. Sorriu satisfeito e correu até ali. Buscou a linha que estava amarrada no galho e, sentido que fisgara um peixe, deu um leve tirão em seu caniço improvisado e recolheu uma grande traíra.
Mas olha, Penacho! Que hoje dei sorte! — falava, enquanto o cavalo observava de longe com as orelhas apontadas em sua direção.
Depois do serviço, deixou o peixe na cozinha. Sabia que traíra assada era um dos pratos favoritos do seu Geraldo. Mesmo com pouco tempo de trabalho por ali, nutria certo carinho pelo bolicheiro. Aquele senhor, já idoso e sozinho, poderia ser ele mesmo no futuro e, quando pensava nisso, uma confusão de sentimentos e saudades de outros tempos invadiam sua cabeça.
Pedro seguiu para o galpão onde estavam suas coisas, preparou seu mate e deixou a cuia descansando um pouco para que a erva inchasse com a água morna, velho costume que aprendera com seu pai. Olhou para o gasto violão que estava recostado ao lado de seu catre. Desde que ganhara o instrumento, não conseguira tirar uma música sequer. Tentava pensar em alguma melodia bonita, mas suas mãos não obedeciam, e ele terminava por ficar irritado e desistia logo. Outro dia, chegara a imaginar a cena que seria se o turco mascate o enxergasse numa de suas tentativas.
Mas nem pra isso tu serve, andarilho burro! — diria o amigo aos risos, para provocar sua indignação.
Quando Pedro não desistia de tocar por conta própria, Geraldo ou os clientes do bolicho faziam com que ele desistisse. Na verdade, ninguém aguentava aquele barulho desconexo que saía do seu violão.
Pedro pegou seu mate e passou a mão no instrumento mais uma vez. Lá dentro, Geraldo soltou um suspiro de inconformidade ao enxergar, pela janela, que o outro estava se acomodando embaixo do umbu para mais uma apresentação artística.
O bolicheiro estava satisfeito com o movimento dos últimos dias. A lenha estava quase toda pronta para ser entregue ao seu Bonifácio Hernandes, que ofereceria uma grande festa de casamento para sua única filha, Maria Rita. O noivo era o Tibiriçá, dos Lopes da região do Paredão, um agrupamento de famílias que vivia em um local apartado e não se misturava muito com as gentes da região. Mas o Tibiriçá era diferente: homenzarrão de quase dois metros de altura, de voz forte e empostada, um trabalhador incansável, mas um festeiro como poucos. Era um bailarino requisitado nos bailes de fundo de campo e gostava muito de tocar uma cordeona encostada junto ao peito cabeludo. Geraldo lembrava do Tibiriçá e, por causa disso, tinha um pouco de pena da menina.
Coitada da Ritinha, filha do seu Bonifá! — disse certa vez.
Mas coitada por quê, homem? — perguntou Pedro.
Pedrinho, meu filho, tu já viste o Tibiriçá? — e olhou com olhos de quem insinua algo: — Isso mesmo! Olha o tamanho daquele gaúcho! Vai arrebentar com a coitada da guria! Tão pequeninha. A la maula! Riram juntos.
Pedro vira a jovem Maria Rita apenas uma vez quando ela veio à venda, junto de seu pai, fazer as encomendas para a festança. O Bonifácio pediu que reservassem bebidas, que ficavam guardadas em uma espécie de gaiola de ferro, pendurada dentro do poço de água para se conservarem fresquinhas. Compraram, ainda, alguns tecidos, enfeites, e o homem contara que a mãe da noiva já estava preparando os doces do casamento: bem casados, pessegadas, figadas, ambrosias e tudo mais que a filha tinha direito.
Vai ser uma festa daquelas! — contava orgulhoso, passando as mãos sobre o bigode farto que lhe escondia a boca.
Por tudo isso, Geraldo estava satisfeito — festa na região é lucro nos negócios. Os convidados dos noivos estavam indo ao seu estabelecimento para comprar prendas para os contraentes, comprar tecidos para algumas reformas nos vestidos das senhoras, ou apenas para bebericar um trago e contar as novas.
Geraldo foi arrancado de seus pensamentos com a chegada repentina de um cliente:
Boas noites — escutou-se o cumprimento de voz grave e seca.
Geraldo olhou para o gaúcho que adentrava a venda e respondeu à saudação com um leve aceno da cabeça. Notou que o homem se aproximava com passos lentos e firmes, aparentando cansaço. Vestia pilchas gastas e sujas de pó. Reparou nos detalhes do florão de ouro em sua rastra, na faca de prata atravessada na cintura e na arma presa à faixa. As vestimentas pobres de tropeiro pareciam não condizer com aqueles adornos finos. Pensou que devia ser outro capanga que viera lhe atazanar.
O homem aproximou-se do balcão, arrastando esporas nos tabuões de madeira do assoalho. Encarou o dono do estabelecimento e ficou à espera do atendimento.
Pois não, moço? — disse Geraldo, enquanto tentava desvendar nas sombras do chapéu o olhar daquele homem de rosto severo e nariz protuberante e desafiador.
Tem algo pra comer? Venho mais faminto que terneiro mamão.
Tenho espinhaço de ovelha e pirão. Está servido?
Está bom.
O homem examinava o bolicho. Pegou sua faca de prata e se pôs a picar fumo calmamente na palma da mão. Ajeitou o conteúdo na palha, rasgou metodicamente uma tira com o fim de atar seu cigarro. Riscou o fósforo e aspirou a fumaça do palheiro. Soprava tranquilamente, como se assim espantasse da cabeça os pensamentos.
Pouco depois, Geraldo veio da cozinha equilibrando um prato de barro com a comida, uma garrafa de canha e um copo de vidro embaçado.
Está servido de canha? — ofereceu.
Não tem vinho? Estava precisando de algo pra dar uma adoçada na vida, se o senhor me entende.
Pois não! — respondeu Geraldo e já foi buscar a bebida na sua despensa. Voltou trazendo um garrafão e serviu-lhe um copo. O forasteiro puxou uma das cadeiras livres e convidou o bolicheiro a sentar com ele.
Sente, no más.
Contrariado, Geraldo atendeu ao pedido. O homem falou:
Tresontonte me encontrei com um paisano que me disse que vosmecê estava precisando de um diarista. Me chamo João Contreras, mas me conhecem por Fôia. Vim pelo serviço — e deixou que as palavras fizessem seu efeito no silêncio que se seguiu.
Mas que lástima, seu Fôia. Acredito que tenha perdido a viagem! Já faz um lote de dias que estou com um peão contratado — respondeu e foi logo levantando, queria encerrar a conversa.
Espere um pouco — disse o outro, pegando do seu braço — Venho tresnoitado de estrada e tropa. Vosmecê permite que eu faça pouso aqui pelo rancho esta noite? — disse isso, enquanto coçava o canto do olho direito, escondido pelas sombras de seu chapéu.
Fique, homem. Jante e tome teu trago. Depois, procure pelo Pedro, que está lá fora no umbu, e entrega teu cavalo. Ele te mostra o galpão. Com permiso... — Geraldo fez um leve aceno com a cabeça e foi cuidar de seus afazeres, satisfeito de ter cumprido seu dever, pois é costume das gentes dar pouso para os viajantes.

R. Tavares, in Andarilhos

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