O sol fervia e torrava até mesmo a pele
acostumada de Pedro Guarany. Ele fez um movimento certeiro com o
machado e aprontou outro toco de lenha. Passou o antebraço na testa
para livrar-se do suor que escorria como cascata. Penacho bebia água
e pastava no raso da sanga, cujas águas desfilavam calmamente em sua
correnteza leve e arrastada. Pedro passara as duas últimas semanas
cortando lenha desde o amanhecer até o cair da noite. Ao escurecer,
colocava toda a madeira em uma pequena carroça de duas rodas e
levava até a lenheira.
Cortou a última tora de lenha e percebeu
que um arbusto sacudia próximo à beira da água. Sorriu satisfeito
e correu até ali. Buscou a linha que estava amarrada no galho e,
sentido que fisgara um peixe, deu um leve tirão em seu caniço
improvisado e recolheu uma grande traíra.
— Mas olha, Penacho! Que hoje dei
sorte! — falava, enquanto o cavalo observava de longe com as
orelhas apontadas em sua direção.
Depois do serviço, deixou o peixe na
cozinha. Sabia que traíra assada era um dos pratos favoritos do seu
Geraldo. Mesmo com pouco tempo de trabalho por ali, nutria certo
carinho pelo bolicheiro. Aquele senhor, já idoso e sozinho, poderia
ser ele mesmo no futuro e, quando pensava nisso, uma confusão de
sentimentos e saudades de outros tempos invadiam sua cabeça.
Pedro seguiu para o galpão onde estavam
suas coisas, preparou seu mate e deixou a cuia descansando um pouco
para que a erva inchasse com a água morna, velho costume que
aprendera com seu pai. Olhou para o gasto violão que estava
recostado ao lado de seu catre. Desde que ganhara o instrumento, não
conseguira tirar uma música sequer. Tentava pensar em alguma melodia
bonita, mas suas mãos não obedeciam, e ele terminava por ficar
irritado e desistia logo. Outro dia, chegara a imaginar a cena que
seria se o turco mascate o enxergasse numa de suas tentativas.
— Mas nem pra isso tu serve, andarilho
burro! — diria o amigo aos risos, para provocar sua indignação.
Quando Pedro não desistia de tocar por
conta própria, Geraldo ou os clientes do bolicho faziam com que ele
desistisse. Na verdade, ninguém aguentava aquele barulho desconexo
que saía do seu violão.
Pedro pegou seu mate e passou a mão no
instrumento mais uma vez. Lá dentro, Geraldo soltou um suspiro de
inconformidade ao enxergar, pela janela, que o outro estava se
acomodando embaixo do umbu para mais uma apresentação artística.
O bolicheiro estava satisfeito com o
movimento dos últimos dias. A lenha estava quase toda pronta para
ser entregue ao seu Bonifácio Hernandes, que ofereceria uma grande
festa de casamento para sua única filha, Maria Rita. O noivo era o
Tibiriçá, dos Lopes da região do Paredão, um agrupamento de
famílias que vivia em um local apartado e não se misturava muito
com as gentes da região. Mas o Tibiriçá era diferente: homenzarrão
de quase dois metros de altura, de voz forte e empostada, um
trabalhador incansável, mas um festeiro como poucos. Era um
bailarino requisitado nos bailes de fundo de campo e gostava muito de
tocar uma cordeona encostada junto ao peito cabeludo. Geraldo
lembrava do Tibiriçá e, por causa disso, tinha um pouco de pena da
menina.
— Coitada da Ritinha, filha do seu
Bonifá! — disse certa vez.
— Mas coitada por quê, homem? —
perguntou Pedro.
— Pedrinho, meu filho, tu já viste o
Tibiriçá? — e olhou com olhos de quem insinua algo: — Isso
mesmo! Olha o tamanho daquele gaúcho! Vai arrebentar com a coitada
da guria! Tão pequeninha. A la maula! Riram juntos.
Pedro vira a jovem Maria Rita apenas uma
vez quando ela veio à venda, junto de seu pai, fazer as encomendas
para a festança. O Bonifácio pediu que reservassem bebidas, que
ficavam guardadas em uma espécie de gaiola de ferro, pendurada
dentro do poço de água para se conservarem fresquinhas. Compraram,
ainda, alguns tecidos, enfeites, e o homem contara que a mãe da
noiva já estava preparando os doces do casamento: bem casados,
pessegadas, figadas, ambrosias e tudo mais que a filha tinha direito.
— Vai ser uma festa daquelas! —
contava orgulhoso, passando as mãos sobre o bigode farto que lhe
escondia a boca.
Por tudo isso, Geraldo estava satisfeito
— festa na região é lucro nos negócios. Os convidados dos noivos
estavam indo ao seu estabelecimento para comprar prendas para os
contraentes, comprar tecidos para algumas reformas nos vestidos das
senhoras, ou apenas para bebericar um trago e contar as novas.
Geraldo foi arrancado de seus pensamentos
com a chegada repentina de um cliente:
— Boas noites — escutou-se o
cumprimento de voz grave e seca.
Geraldo olhou para o gaúcho que
adentrava a venda e respondeu à saudação com um leve aceno da
cabeça. Notou que o homem se aproximava com passos lentos e firmes,
aparentando cansaço. Vestia pilchas gastas e sujas de pó. Reparou
nos detalhes do florão de ouro em sua rastra, na faca de prata
atravessada na cintura e na arma presa à faixa. As vestimentas
pobres de tropeiro pareciam não condizer com aqueles adornos finos.
Pensou que devia ser outro capanga que viera lhe atazanar.
O homem aproximou-se do balcão,
arrastando esporas nos tabuões de madeira do assoalho. Encarou o
dono do estabelecimento e ficou à espera do atendimento.
— Pois não, moço? — disse Geraldo,
enquanto tentava desvendar nas sombras do chapéu o olhar daquele
homem de rosto severo e nariz protuberante e desafiador.
—Tem algo pra comer? Venho mais faminto
que terneiro mamão.
— Tenho espinhaço de ovelha e pirão.
Está servido?
— Está bom.
O homem examinava o bolicho. Pegou sua
faca de prata e se pôs a picar fumo calmamente na palma da mão.
Ajeitou o conteúdo na palha, rasgou metodicamente uma tira com o fim
de atar seu cigarro. Riscou o fósforo e aspirou a fumaça do
palheiro. Soprava tranquilamente, como se assim espantasse da cabeça
os pensamentos.
Pouco depois, Geraldo veio da cozinha
equilibrando um prato de barro com a comida, uma garrafa de canha e
um copo de vidro embaçado.
— Está servido de canha? — ofereceu.
— Não tem vinho? Estava precisando de
algo pra dar uma adoçada na vida, se o senhor me entende.
— Pois não! — respondeu Geraldo e já
foi buscar a bebida na sua despensa. Voltou trazendo um garrafão e
serviu-lhe um copo. O forasteiro puxou uma das cadeiras livres e
convidou o bolicheiro a sentar com ele.
— Sente, no más.
Contrariado, Geraldo atendeu ao pedido. O
homem falou:
— Tresontonte me encontrei com
um paisano que me disse que vosmecê estava precisando de um
diarista. Me chamo João Contreras, mas me conhecem por Fôia. Vim
pelo serviço — e deixou que as palavras fizessem seu efeito no
silêncio que se seguiu.
— Mas que lástima, seu Fôia. Acredito
que tenha perdido a viagem! Já faz um lote de dias que estou com um
peão contratado — respondeu e foi logo levantando, queria encerrar
a conversa.
— Espere um pouco — disse o outro,
pegando do seu braço — Venho tresnoitado de estrada e tropa.
Vosmecê permite que eu faça pouso aqui pelo rancho esta noite? —
disse isso, enquanto coçava o canto do olho direito, escondido pelas
sombras de seu chapéu.
— Fique, homem. Jante e tome teu trago.
Depois, procure pelo Pedro, que está lá fora no umbu, e entrega teu
cavalo. Ele te mostra o galpão. Com permiso... — Geraldo
fez um leve aceno com a cabeça e foi cuidar de seus afazeres,
satisfeito de ter cumprido seu dever, pois é costume das gentes dar
pouso para os viajantes.
R. Tavares, in Andarilhos
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