domingo, 1 de novembro de 2020

Festa de guerra

           Até que o dia deu, que é que foi do meu tempo, que horas que se passaram? Aí eu podia medir, pelas estrelas que vão em movimento, descendo no rumo de seu poente, elas viravam. Mas, digo ao senhor, eu não olhei para o céu. Não queria. Não podia. Assim espichado, no escabro, um sofre o fresco da noite, o chão esfriava. Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de dôr-de-dente já me indispondo. Aquilo que cochilei ― dormir, eu em firme rejeitava. O Hermógenes, um homem existente encostado no senhor, calado curto, o pensamento dele assanha ― feito um berreiro. Aquelas mortes, que eram para daí a pouco, já estavam na cabeça do Hermógenes. Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só obedecendo? Pois, não era? Ao que, o meu primeiro fogo tocaieiro. Danado desuso disso é o antes ― tanto antes, rôr. O senhor acha que é natural? Osgas, que a gente tem de enxotar da ideia: eu parava ali para matar os outros ― e não era pecado? Não era, não era, eu resumi: ― Osgas... Cochilei, tenho; por descuido de querer. Dormi, mesmo? Eu não era o chefe. Joca Ramiro queria aquilo? E o Hermógenes, mandante perto, em sua capatazia. Dito por uns: no céu, coisa como uma careta preta? E erro. Não, nada, ôi. Nada. Eu ia matar gente humana. Dali a pouco, o madrugar clareava, eu tinha de ver o dia vindo. Como era o Hermógenes? Como vou dizer ao senhor...? Bem, em bró de fantasia: ele grosso misturado ― dum cavalo e duma jiboia... Ou um cachorro grande. Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo, povo reunido na beira do Jequitaí, por ganhar seu dinheirinho fiel, feito tropa de soldo. Quantos não iam morrer por minha mão? Andante que perpassou um vento, entre ele o crico de grilos e tantos bichinhos divagados. Assaz, a noite, com sombras vermelhas. O exemplar da morte, dessa, é que é num átimo, tão ligeira, tão direitinha. As coisas que eu nem queria pensar, mas pensava mais, elas vinham.Vezo de falar do Geraldo Pedro, que disse! ― Aquele? Hoje ele não existe mais, virou sombração... Matei... E o Catôcho, contando doutro! ― ... Lá tem uns órfãos meus, lá... Tive de matar o pai deles... Por que era que falavam essas perversidades... Por que é que falavam... Por que era que eu tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo! se eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve tiro, bem certo, e corria, ladeira abaixo, às voltas, caçava de me sumir nesse vai-te-mundo. Ah, nada! então, aí mesmo era que o fogo feio começava, por todas as partes, de todo jeito morresse muita gente, primeiro de todos morria eu. Mesmo estava sem remédio. O Hermógenes mandava em mim. Quê que quer, ele era mais forte! Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer era que nós dois saíssemos sobrados com vida, desses todos combates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a jagunçada, íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver em grande persistência. Agora, aqueles outros, os contrários, não estavam também com poder de me matar? A asneira. E eu ia, numa madrugadinha, a cavalo, por uma estrada de areia branca, no Burití-do-A, beira de vereda, emparelhado com um capiauzinho bondoso, companheiro qualquer, a gente ria, conversava de tantas miúdas coisas, sem maldade, se pitava, eu ia levando meio saco de milho na garupa, ia para um moinho, para uma fazenda, para berganhar o milho por fubá... ― sonhos que pensava. A fé! aqueles zebebelos também não tinham varado o Norte para destruir gente? E pois?!
O que tivesse de ser, somente sendo. Não era nem o Hermógenes, era um estado de lei, nem dele não era, eu cumpria, todos cumpriam. Vou para os Gerais!Vou para os Gerais! ― eu dizia, me dizia. Numa minha perna, então torci o de dar cãibra. Depois, tirei a dureza dos dedos. A ver, Diadorim, a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros de chão de flôr. Por quê que eu ia ter pena dos outros? Algum tinha pena de mim...? Cabeça de homem é fraca, repensava. O que se carecia justo de fazer era acabar logo com a guerra, acabar com aqueles zebebelos. Pensar em Diadorim, era o que me dava cordura de paz. Ah, digo ao senhor: dessa noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim. Matar, matar, quê que me importava? Dessa noite esquecer não posso. Garoou, para a aurora.
Como clareia: é aos golpes, no céu, a escuridão puxada aos movimentos. A gente estava de costas para as barras do dia. Me lembro do que me lembro: o Hermógenes cruzou, adiante, chato no chão, relando barriga em macio. Aquele homem era danado de tigre, estava cochichando na cabeça do Garanço, depois com o Montesclarense ― mostrava a eles os lugares em que deviam-de. Arre, voltou para perto de mim, agora veio da outra banda. Disse: ― Tento, Riobaldo... Eu vi quando o Garanço rojou, indo, indo, pegou postura na proteção dum cupim grande; obra de cinco metros para a minha frente, pouquinho para esta banda da esquerda. No não longe, rumo a rumo, divulguei o Montesclarense. Eu ainda mudei distância de uns passos: aproveitei tapação duma árvore de boa grossura ― um araçá-de-pomba, fechado. De sovigia, o Hermógenes não me largava. Doêsse na gente, mesmo aquele principiozinho de madrugada. Apertava a necessidade. Por que não se avançava de uma vez, para tudo, vir às brabas? Ah, não se podia. Só logo no primeiro entremear com os bebelos, nós quatro havíamos de restar mortos, cosidos nas parnaíbas. E, dos companheiros, outros, não se sabia. Sendo somente que o acampamento dos bebelos devia de estar a uma hora dessas cercado exato, em boa distância, à roda toda. Tudo era paciência. Vinha um ventozinho, folheando. Tantos homens amoitados, que só espiavam! na obrigação ― refleti. Até achei bonito, agora. Aí passarinhos que já vão voando, com o menorzinho ralo de luz eles se contentam, para seu só isso de caçar o de comer.Triste, triste, um tirirí cantou. Alegre, para mim, a peitica. Olhei adiante, curto, lá era que eles estavam! por entre umas árvores pequenas, dava réstia de claridade, e um formato de homem, contravisto. Ele ia acender fogo. E apareceram vultos de outros, levantantes. Com pouco, alguns podiam vir descendo, buscar mais água no corguinho, se carecessem. Asneiras que pensei! será que eles gastaram muita água? Será que um esmorece, por medo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito. Do Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei. ― Riobaldo, Tatarana! E o é... ― ele me governou, de repente. Aceitei. Desamarrei mão, de vez pronta! eu já tinha resumido pontaria! eu tive consolo duma coisa, que era que aquele homem alto não podia ser Zé Bebelo... Não tremi, e escutei meu tiro, e o do Hermógenes; e o homem alto caíu certo morto, rolou na má poeira. Me deu uma raiva, deles, todos. E em toda a parte, a sobre, o tiroteio tinha começado.
Estrondou. Falavam os rifles e outros! manlixa, granadeira e comblém. Festa de guerra.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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