segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Concluímos coisas

            Dentre as conversas que fazem parte da nossa rotina — e é tanta sorte ter encontrado um parceiro com quem quero dividir impressões sobre o corte de uma toalha, o barulho da geladeira, o bigode de um ator e os destinos do país —, uma das que mais aguardo é a que estabelecemos diariamente antes de dormir.
Como se sabe, é considerável a quantidade de hábitos que se desenvolve nesse momento do dia, quando a idade vai aumentando. Trancam-se portas, tiram-se as chaves, verifica-se o gás, a ração da gata e da cachorra e procede-se à higiene pré-sono. Comigo são cremes, lavar os pés e é, claro, a boca. Passo o fio dental, escovo os dentes seguindo uma disciplina rigorosa, para então me dedicar ao misterioso enxaguador bucal. Não sei para que serve, talvez ninguém saiba ao certo, mas, ao menos para mim, ele adquiriu o status de indispensável. E o mesmo para ele que, se não usa o fio dental, gasta muito mais tempo escovando os dentes e bochechando com o enxaguador.
E é justamente nesses instantes que nos comunicamos tão bem.
Ele escova os dentes e passeia pelo quarto, assistindo a um resto de programa de televisão, corrigindo a posição de um travesseiro. E gesticula para mim, porque não pode falar. Eu não entendo direito e respondo. Ele continua. Eu assinto, discordo, duvido. Concluímos coisas. Ele volta para o banheiro e logo reaparece, bochechando com discrição. A fala, então, se torna impossível. Os restos de palavras, antes perceptíveis, agora viram apenas sons inarticulados. Mas não sei por quê, nossa comunicação funciona ainda melhor. 
O que é mais produtivo, sem dúvida, é quando coincide de nós dois estarmos bochechando. Já decidimos muitas coisas assim. A pena é que eu bochecho só durante uns dez segundos, enquanto ele chega a ficar um minuto ou mais. Se eu adquirir o hábito saudável de manter o enxaguador por mais tempo na boca, será ótimo. Vamos poder tratar de muitas outras coisas importantes, daquelas que esquecemos, ou não temos coragem de mencionar, por exemplo, na hora do almoço.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou 

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