quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma carta de Paris

Quinze anos depois, numa noite chuvosa de junho, em 1871, a corda da campainha da casa amarela foi puxada violentamente três vezes. As donas da casa abriram a porta para uma mulher robusta, morena, mortalmente pálida, com um pacote no braço, que as fitou com olhos arregalados, deu um passo adiante e tombou sem sentidos sobre o limiar da porta. Quando as senhoras assustadas trouxeram-na de novo à consciência, ela se sentou, lançou-lhes mais um relance com seus olhos fundos, o tempo todo sem dizer palavra, tateou as roupas úmidas e apareceu com uma carta, que lhes estendeu.

A carta era de fato endereçada a elas, mas escrita em francês. As irmãs encostaram a cabeça uma na outra e a leram. Dizia o seguinte:

Senhoras!

Lembram-se de mim? Ah, quando penso nas senhoras meu coração se enche de lírios do vale! Será a lembrança da devoção de um francês capaz de comover seus corações a ponto de salvar a vida de uma francesa?

A portadora desta carta, Madame Babette Hersant, como minha linda imperatriz em pessoa, teve de fugir de Paris. A guerra civil assola nossas ruas. Mãos de franceses têm derramado sangue francês. Os nobres communards, em defesa dos Direitos do Homem, foram esmagados e aniquilados. O marido e o filho de Madame Hersant, ambos eminentes cabeleireiros femininos, foram fuzilados. Ela mesma foi presa como uma pétroleuse e escapou por pouco das mãos sanguinárias do general Galliffet. Perdeu todas suas as posses e não ousa permanecer na França.

Um sobrinho dela é cozinheiro a bordo do Anna Colbioernsson, com destino a Cristiânia (que é, segundo creio, a capital da Noruega), e conseguiu uma oportunidade de embarcar sua tia. É agora seu último e triste recurso!

Sabendo que fui outrora um visitante de seu magnífico país, vem até mim, perguntando se tenho conhecimento de alguma boa gente na Noruega, e me suplica que, se tal for o caso, lhe forneça uma carta para essas pessoas. Estas duas palavras, “boa gente”, imediatamente trouxeram-me diante dos olhos sua imagem, sagrada para meu coração. Eu a confio às senhoras. Como fará para chegar de Cristiânia a Berlevaag, não tenho ideia, tendo esquecido o mapa da Noruega. Mas é uma francesa e descobrirão que, mesmo em sua miséria, ainda encontra desembaraço, grandeza e estoicismo. Invejo-a em seu desespero: ela se verá diante de seus rostos. Quando a receberem misericordiosamente, enviem um pensamento misericordioso para mim na França. Por quinze anos, senhorita Philippa, lamentei que sua voz não houvesse enchido a Grand Opéra de Paris. Quando, esta noite, penso na senhora, sem dúvida cercada por uma família feliz e amorosa, e em mim, velho, solitário, esquecido pelos que outrora me aplaudiram e adoraram, sinto que deve ter escolhido a melhor parte da vida. O que é a fama? O que é a glória? O túmulo nos aguarda a todos! E ainda assim, minha Zerlina perdida, e ainda assim, soprano das regiões geladas!, à medida que escrevo, sinto que o túmulo não é o fim. No Paraíso, ouvirei sua voz novamente. Lá a senhora cantará, sem medos ou escrúpulos, como Deus quis que cantasse. Lá será a grande artista que Deus planejou. Ah, como encantará os anjos.

Babette sabe cozinhar.

Dignem-se receber, minhas senhoras, a humilde homenagem do amigo de outrora,

ACHILLE PAPIN


No pé da página, a título de P.S., iam desenhados com capricho os dois primeiros compassos do dueto entre Don Giovanni e Zerlina, assim: 


As duas irmãs, até o momento, contavam apenas com uma pequena empregada de quinze anos para ajudá-las na casa e sentiam que não podiam se dar ao luxo de contratar uma governanta mais velha e experiente. Mas Babette afirmou que serviria a boa gente de Monsieur Papin de graça e que não aceitaria trabalhar para mais ninguém. Se a mandassem embora, provavelmente morreria. Babette permaneceu na casa das filhas do deão por doze anos, até a época desta história.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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