Toda esta história com Avishai Abudi
deveria, na minha opinião, ativar um sinal de alarme em todos nós.
Afinal de contas, ele é um homem honesto, comum, não anda por aí
chutando latas de lixo nem provocando brigas em bares. Na realidade,
nunca faz nada para atrair atenção para si. Então um dia, do nada,
dois bandidos batem à sua porta. Arrastam-no pela escada, colocam-no
na parte de trás de uma van e o levam para a casa dos pais.
– Quem são vocês? – Avishai grita
assustado. – O que é que vocês querem?
– Isto não é exatamente o que você
deveria estar perguntando – diz o motorista, e o brutamontes a seu
lado concorda com a cabeça. – O que deveria dizer é: quem sou eu
e o que eu quero? – E então os dois começam a rir, como se
Avishai tivesse acabado de contar a melhor piada do mundo.
– Sou Avishai Abudi – diz Avishai em
um tom que tenta soar ameaçador –, e quero falar com os seus
superiores. Estão me ouvindo? – Os dois homens estacionam a van
diante do prédio onde moram os pais de Avishai e se voltam para ele.
Avishai tem certeza de que vão bater nele, e que não merece tudo
isso. De verdade, não merece. – Vocês estão se metendo em
encrenca – ele lhes diz, protegendo o rosto, quando o arrancam do
veículo.
Mas a verdade é que eles nem batem nele.
Avishai não pode ver o que estão fazendo, mas ele sente. E o que
sente é que eles o estão despindo, mas não de um modo sexual. É
tudo muito correto. Depois que terminam de tornar a vesti-lo,
colocam-lhe nas costas uma sacola pesada e dizem, “Yala,
agora corra para casa, para papai e mamãe. E não se atrase.” E
Avishai corre, tão rápido quanto consegue. Sobe as escadas de três
em três degraus, até chegar à porta marrom de madeira do
apartamento dos pais. Ele bate, sem fôlego, e quando a mãe abre,
ele entra rápido, fecha a porta atrás de si e dá duas voltas na
chave.
– O que aconteceu com você? –
pergunta a mãe. – Por que está suando assim?
– Subi correndo – disse Avishai
ofegante. – Há pessoas. Nas escadas. Não abra.
– Não estou entendendo nada – diz a
mãe –, mas não tem importância. Largue a sacola e vá lavar o
rosto e as mãos. A comida já está pronta. – Avishai larga a
sacola, vai ao banheiro e lava o rosto. No espelho acima da pia vê
que está usando o uniforme da escola. Quando abre a sacola na sala,
descobre cadernos e livros encapados com papel florido. Um livro de
matemática, uma caixa de lápis de cor e um pequeno compasso de
metal com uma borracha na ponta. – Deixe de lado as lições – a
mãe o repreende. – Venha comer primeiro, rápido antes que todas
as vitaminas desapareçam da salada – a mãe o pressiona. Avishai
senta-se à mesa e come em silêncio. A comida é saborosa. Há
tantos anos que ele come de “quentinha”, ou em restaurantes
baratos, que não conseguia lembrar que a comida pode ter tal gosto.
– Papai lhe deixou dinheiro para o curso da tarde – a mãe aponta
para um envelope branco fechado deixado sobre a mesinha do hall, ao
lado do telefone. – Mas repito, Avi, se você mudar de ideia, como
fez com os aeromodelos, que se arrependeu depois da primeira aula, é
melhor nos dizer isso logo. Antes de pagarmos.
Avishai pensa: É apenas um sonho. E
depois diz: “Sim, mamãe” porque, mesmo que seja apenas um sonho,
não é razão para não ser educado. E pensa “É só eu querer e
posso acordar a qualquer momento”. Não que ele saiba o que é
preciso para acordar no meio de um sonho. Você pode se beliscar, mas
em geral se faz isto na situação oposta. Beliscar-se é algo que
você faz para provar que está acordado. Talvez ele pudesse prender
a respiração, ou dizer para si mesmo: “Acorde, acorde!” Ou até
mesmo se recusar a aceitar o que o rodeia, colocar em dúvida. Tudo
se dissipará de repente. O que quer que seja, não há pressa. Ele
pode primeiro acabar de comer. Sim, depois do almoço é um momento
excelente para despertar. Mesmo depois da refeição, pensando bem,
isto não é realmente urgente. Ele pode ir primeiro para o curso –
está curioso para saber que curso é – e então, se ainda estiver
claro, jogar um pouco de futebol no campo da escola. E só quando o
pai chegar em casa, só então, acordar. Ou até continuar por mais
um dia ou dois, até a véspera de alguma prova particularmente
difícil.
– O que você anda sonhando todo o
tempo? – A mãe acaricia a cabeça dele que está ficando calva. –
Há tantos pensamentos correndo por trás de seus olhos redondos que
só de olhar para eles eu fico cansada.
– Eu estava pensando na sobremesa –
Avishai mente. – Se tem gelatina ou pudim.
– O que você gostaria que tivesse? –
a mãe pergunta.
– Pudim – Avishai diz, brincalhão.
– Então já tem pronto – diz a mãe
alegremente e abre a geladeira. – Mas se mudar de ideia, posso
fazer gelatina. Só leva alguns minutos.
Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta
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