Parece criança, Nando. Esquece essa
arma, vamos conversar. Antes do pessoal chegar. O pessoal já vem. Eu
aviso para a sua mãe que tudo acabou bem.
Esse tiro na perna não foi nada. Não
adianta ser teimoso, cara. Lembra? Quando a gente montava em cavalo
de vassoura. Voava do telhado. Entrava dentro do quadrado da escada.
Ali, a gente guiava o nosso carro. Dentro da escada, entre os degraus
da escada, lembra?
Por favor, deixa essa arma largada, vamos
conversar. Me ajuda a lembrar: o dia que a gente foi roubar a dona da
padaria. Era muita chata a dona da padaria, por isso a gente foi lá.
Era noitinha. Você sabia como entrar na
padaria porque o seu tio trabalhava de confeiteiro, lembra? Os bolos
que ele fazia e que a gente comia? Até que desconfiaram que ele tava
fazendo bolo para bandido. Esconder 38 na rosquinha de coco. Seu tio
quase foi preso, coitado. Que molecagem, Lembra? Que assalto!
A gente conseguiu entrar pela garagem, me
parece. A gente chupou picolé, comeu bolachas Maria. A gente tomou
guaraná e mascou chiclete. A gente nem queria sair mais de lá. A
gente pegou moeda. Tudo porque a gente não gostava da dona da
padaria. Ela sempre dizia que a gente roubava alguma coisa: um
pirulito. Bala na maior cara dura.
A gente não tinha ainda essa cara dura
que ela dizia, não tinha. Por isso que você teve a ideia da gente
virar ladrão de verdade. E ir à padaria, no outro dia, só para
olhar o desespero da broaca. Lembra? Serviço de gente grande, ela
nem desconfiaria. A gente entrou de máscara. Feita de jornal. E a
gente levou um apito junto. Para que era mesmo o apito, Nando?
Fala, Nando. Escuta: a gente é amigo
desde muito tempo e não pode ficar aqui, brigando. Você é teimoso
demais, Nando. Sempre foi. Lembra?
Quando pulava na lama só para fugir da
escola. O seu negócio era jogar bola. Eu nunca fui bom de bola.
Gostava era de te ver jogando e driblando. Eu torcia por você,
Nando, sempre torci. Todo mundo tinha medo de você em campo. Não
sei. As coisas se complicaram depois que seu pai morreu. Depois que
incendiaram o barracão. Bateram na sua mãe. Corri lá para ver se
você escapou do fogo.
Ali, sim, você ganhou uma cara dura, de
demônio. Saindo do fogo e chorando. Chorando muito. Alguma coisa
fumaçando no peito, sei lá. Eu entendo.
Eu só não entendo a gente perdendo
tempo com essa intriga. Daqui a pouco o pessoal chega, Nando. Porra,
há quanto tempo! Não era bem assim que eu queria te encontrar. Os
dois aqui, deitados, como naquele dia. Logo depois do roubo da
padaria. A gente ficou em cima da laje, de barriga cheia, imaginando
como seria a vida em outros planetas. Lembra? Se existiam favelas em
outros planetas. Se era legal morar na Lua.
Porra, Nando, não complica. Parece
criança. Já falei para você esquecer, não adianta se arrastar na
g rama. Já perdemos muito sangue, Nando. Para que apontar essa arma
para a minha cabeça, amigo? Não aponta.
Marcelino Freire, in Contos Negreiros
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