terça-feira, 20 de outubro de 2020

O louva-a-deus

           Imagine chegar no Céu e só encontrar louva-a-deus. Pisar em louva-a-deus, respirar louva-a-deus, tentar enxergar o Velho e só ver uma nuvem de louva-a-deus. Solícitos, ocupados, donos das melhores posições, brigando em torno do Todo-Poderoso pela oportunidade de lhe ajeitar um fio de cabelo. Suas preces foram atendidas! A auréola do Senhor é uma coroa de sicofantas.
Como é o plural de louva-a-deus? Ninguém jamais viu mais de um louva-a-deus na terra de cada vez. O homem comum vê um louva-a-deus de sete em sete anos, em média. Sempre de mãos postas, os olhos virados para o Céu, e um absoluto desprezo pela proximidade do seu pé. O louva-a-deus desafia que alguém o esmague e arrisque a danação eterna.
Na África, até os reis, que arredam montanhas para passar em linha reta, desviam-se do seu caminho para não pisar num louva-a-deus. O imperador Selassié certa vez pisou num louva-a-deus no quintal e no mesmo instante todo um lado do Himalaia desmoronou, soterrando dezessete civilizações antigas. A Sra. Pavita Pinchas, da Colômbia, aprisionou um louva-a-deus gigante e há vinte e oito anos o mantém sob uma redoma de vidro, alimentado com um picado de moscas e orquídeas. O desgosto infligido a este louva-a-deus tem sido o responsável por todas as catástrofes do continente desde o grande terremoto do Chile, em 1946. Os índios macapauas do Peru resolveram um dia que pó de louva-a-deus era afrodisíaco, mataram e esfarelaram um monte, e alguém tem visto algum macapaua ultimamente?
O louva-a-deus é o inseto mais antigo que existe. Não tem corpo, é uma haste verde com uma cabeça na ponta. Examinado sob um microscópio por um estudante aventuroso — que minutos depois bebeu um copo de ácido, por engano, em vez de água — o louva-a-deus revelou algumas particularidades interessantes. É o único bicho que tem mãos, minúsculos dedinhos entrelaçados com um fio de ínfimas contas — um rosário de átomos — e entrelaçados entre si. Seus olhos são suplicantes, rodeados por olheiras de um tom verde-púrpura, como as de velhas beatas. Um único nervo capilar atravessa a haste do louva-a-deus, da cabeça ao rabo, e, ao ser acossada pelo macho na hora do acoplamento, a fêmea sofre um espasmo nervoso e decepa a cabeça do seu par com as mandíbulas, sem interromper a sua prece. Só com a morte do macho há a impregnação. O parto de um louva-a-deus é agoniante, dura doze dias, durante os quais a louva-a-deus mãe, de olhos baixos, emite um silvo ininterrupto de dor que os instrumentos da NASA registraram na Lua e certamente passa ao ouvido de Deus, que os perdoa. O louva-a-deus é como Deus pretendia a espécie, uma haste de louvor à sua Glória. Uma planta com senso bastante para sentir dor e devoção e nada mais. O louva-a-deus é o universo descarnado, seco, duro e frio e reverente com que sonhava o Espírito, até que algum demônio inventou o sangue e tudo desandou. O louva-a-deus só não desistiu e ascendeu ao Céu para sempre, e ainda atura na Terra as ignomínias da reprodução e de uma dieta de capim e vespas, porque a sua função é a de representar, entre os homens, com a sua postura e o seu exemplo, a reprovação de Deus.
O louva-a-deus roga por nós.

Luís Fernando Veríssimo, in A grande mulher nua

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