Não foi difícil para Pedro Guarany
encontrar o rastro para o bolicho. Seguiu a direção indicada pelo
mascate e logo reconheceu as marcas no chão, sinal de que havia um
trânsito razoável de gente por aquelas bandas. Bastou seguir o
caminho e de longe avistou o comércio.
A várzea estendia-se a perder de vista.
Alguns quilômetros mais adiante, corria uma sanga de águas calmas e
transparentes e era possível avistar o mato. Foi se aproximando. A
casa destacava-se, pois, naquela região, não era comum um comércio
de beira-estrada feito de material. Normalmente, eram pequenos
ranchos de barro e de palha. Já a venda de Geraldo Muñoz era
composta por um lindo terreiro com árvores fazendo sombra em
abundância. Havia alguns palanques com cavalos atados próximos aos
cochos de água. Uma pipa com tração animal para buscar água na
sanga estava encostada ao umbu centenário, que estendia seus longos
braços na frente da casa. Era um recanto privilegiado, não havia
dúvidas.
Apeou do cavalo e passou a rédea em um
galho do umbu. Encarou o prédio branco, com duas grandes janelas e
uma porta dupla no meio, que convidava todos a entrar. Parou sob a
soleira da porta e reconheceu as características comuns a quase
todas as vendas espalhadas pelo continente.
Algumas mesas de madeira tosca estavam
distribuídas aleatoriamente. Aqui e ali, algum gaúcho tomava um
trago, conversando fiado. Havia prateleiras recheadas de mantimentos,
sementes, bolachas, erva mate, fumos, cachaças temperadas com as
iguarias da região e curtidas há mais de um ano — a preferência
dos clientes era a canha com butiá — e outros vícios. Havia
também alguma coisa de vestuário, tecidos, alpargatas, jaquetas
camperas, ponchos, capas e chapéus. Não podia faltar, ainda,
algo de veterinária, remédios e todo o arreamento, trançados,
enfeites. Todo o estoque ficava pendurado pelas paredes e pelo forro
do bolicho.
Pedro foi adentrando na sala. Viu um
grupo à esquerda, perto da janela, jogando truco a dinheiro. Soltou
um suspiro de inconformidade. Mais ao fundo, escondidos pelas
sombras, havia alguns peões, sabia o que eram pelas feições e
pelas vestimentas, escutando concentrados um senhor negro que cantava
histórias tristes em versos milongueados. Ele devia ser muito velho,
pensou, pois estava com o cabelo cheio de mechas brancas.
Sou índio de pelo duro
Sem rumo e sem sobrenome
E essa mágoa que me aflige
É a mesma de outro tantos
Cansei de pedir aos santos
Que ninguém morra de fome
Que Deus atenda minhas preces
Pois mia fé ninguém consome.
No outro canto, estava o balcão de
madeira forte, ensebado pelo suor e pelo divertimento de muitos. Ele
escondia a porta que dava pras dependências internas do casarão.
Atrás do móvel, via-se um senhor de porte mediano, cabelos brancos
e volumosos um tanto compridos, com um pano velho atirado sobre o
ombro. Tinha uma enorme testa e um olhar firme e decidido. Estava
entretido charqueando uma carne. Assobiava uma coplita e nem
reparou quando Pedro encostou-se no balcão.
— Buenas! — disse Pedro — Pode me
servir uma de canha?
Num repente, o dono da venda reparou no
forasteiro e concluiu que estivera distraído demais.
— Perdão, gaúcho. Estava a pensar na
vida. — disse Geraldo, enquanto limpava as mãos no pano encardido
sobre seu ombro. Em seguida, serviu um trago pro outro. — Servido!
Mas, homem, não chegue tão silencioso, podem pensar que és um
fantasma! — disse rindo e se virando para terminar de salgar a
carne.
Enquanto bebia a cachaça, Pedro
analisava o velho e forçava as vistas para enxergar os gaúchos que
jogavam cartas e os outros que escutavam a cantoria. Preparou e
acendeu um palheiro. Enquanto mascava a palha, calculou o que devia
dizer pro outro.
— Que mal lhe pergunte, usted é
o Geraldo Muñoz? — perguntou Guarany, depois de longos minutos.
O velho largou a carne e ficou a estudar
a cara de Pedro. Nem todos conheciam seu sobrenome, e ele não tinha
por costume esquecer uma feição. Limpou as mãos novamente e
ajeitou a faca na cintura.
— Quem é que quer saber, forasteiro? —
respondeu. — Já vou te avisando que, se é da parte do Coronel
Mariano, ele que pare de mandar capangas por aqui se ele tiver apreço
à vida! — disse, começando a ficar com a face vermelha e com a
respiração ofegante.
— Me perdoe a pergunta, seu... Mas
vosmecê está me confundindo. Venho atrás do Geraldo pela indicação
do turco Farid, que me disse que estavam precisando de um diarista.
Mas já vou me retirando — respondeu Pedro. Colocou novamente o
chapéu, dando um tapa na aba, atirou um cobre sobre a mesa e já foi
se virando para ir embora.
— Calma, homem! — disse o outro,
devolvendo-lhe a moeda. — Quem pede perdão sou eu. Esta fica por
conta da casa. Mas vosmecê sabe como é ser velho neste lugar! Se eu
não engrosso, me cruzam por riba! Geraldo Muñoz, ao seu
dispor! — fez um gesto cerimonioso e ofereceu a mão para o
cumprimento.
— Pedro Guarany, seu criado — apertou
firmemente a mão do homem.
— Sabes, meu filho, gaúcho pobre e
sozinho depois que fica velho tem que andar se cuidando. Ainda esses
dias, estiveram por aqui dois sujeitos mal-encarados, capangada do
Coronel Mariano Guerra, dono de quase todos os campos aqui da volta,
menos deste cantinho aqui, que é meu por direito de herança! —
disse orgulhoso.
O velho, então, contou que o Coronel
Mariano já havia feito muitas propostas para comprar os poucos
campos que ele possuía, mas o homem já estava ali há bastante
tempo e não pretendia mudar naquelas alturas de sua vida. Mas o
Mariano não era homem de aceitar que lhe contrariassem.
Há cerca de um mês, quando acordara,
ainda madrugada, Geraldo foi reacender as brasas do fogo na lareira e
escutou, ao longe, um tropel de cascos de cavalo. Abriu a porta do
bolicho e nada. O silêncio voltou a reinar. Pisou em algo
escorregadio. Deixou cair o mate e teve um troço: o galo do seu
terreiro jazia morto no chão. Corpo pra um lado e cabeça pro outro.
— Logo o Carijó! Campeão das rinhas!
— contava, gesticulando e fazendo cara de tristeza. Ficou um pouco
em silêncio como em respeito ao falecido galo, mas, ao mesmo tempo,
criando um bom suspense para o seu causo.
— Mas vosmecê não vai acreditar —
continuou ele. — Em seguida, por volta da hora do almoço, dois
forasteiros vestidos de negro, fedendo que nem zorrilho ensebado,
sentaram numa mesa e pediram um trago. Eram tipos da pior espécie,
logo vi. Mas trabalho é trabalho, não é mesmo? — perguntava.
Pedro concordou e ficou surpreso ao notar
que realmente estava interessado na história. Reparou que o barulho
no salão ia diminuindo aos poucos.
Geraldo apontava com o dedo indicador,
grosso e meio deformado, o local em que se passara a cena.
— Quando voltei para servir os dois —
continuou Geraldo — um dos homens me provocou dizendo: “Vossa
mercê pode me servir de almoço um ensopado de galo? Sem a cabeça,
se não for pedir demais”.
— O debochado dissera aquilo rindo! O
outro, que estava com ele, ria ainda mais alto! Eu fiquei abismado —
contou Geraldo — Mas não pensei duas vezes! Nem dei tempo pro
animal se preparar! Quebrei a garrafa de cachaça na cabeça dele. E
corri os dois a cabo de mango!
Geraldo Muñoz terminou de dizer esta
frase, demonstrando como fizera com os capangas, e quase acertou um
safanão na cabeça do Pedro, que desviava dos golpes do velho, já
começando a achar graça da história e, mais ainda, do jeito que o
outro contava.
Muito embora o bolicheiro fosse um senhor
já idoso e um pouco acima do peso, Pedro Guarany não duvidou da
história narrada. Agora, Geraldo exibia os dentes amarelos num
grande sorriso desbeiçado, enfeitado pelo fino bigode grisalho.
Contava o causo como uma grande bravata de guerra:
— Estes braços aqui que vosmecê vê
já seguraram muita espada, meu filho. Posso estar meio velho, mas
capaz que vou me afrouxar pra qualquer um! — completou aos risos. —
E aquele desgraçado do Mariano só me tira da minha casa se for
dentro dum caixão! Mas vamos ao que de fato interessa —
prosseguiu. — Estou mesmo precisando de alguma ajuda para fazer uma
quantia considerável de lenha. Já não tenho mais idade pra passar
o dia cortando astillas. Depois, se for do teu interesse,
tenho outros pequenos serviços. O que te parece, homem de Deus?
— Se for do seu agrado, por mim estamos
acertados.
Apertaram as mãos. Tomaram um trago de
canha pra comemorar. Em seguida, Geraldo pediu que Pedro o ajudasse a
levar a gamela com as carnes já salgadas e as pendurasse no varal.
Ele ficaria por ali atendendo os clientes e revisando suas
cadernetas.
R. Tavares, in Andarilhos
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