terça-feira, 13 de outubro de 2020

As sete princesas de Nezami

      Pertencer a uma civilização poligâmica ao invés de monogâmica certamente muda muitas coisas. Pelo menos na estrutura narrativa (único terreno em que me sinto à vontade para opinar) abrem-se muitas possibilidades que o Ocidente ignora.
Por exemplo, um motivo muito difundido nas fábulas ocidentais, o herói que vê um retrato de uma bela mulher e se apaixona instantaneamente, vamos reencontrá-lo também no Oriente, porém multiplicado. Num poema persa do século XII, o rei Bahram vê sete retratos de sete princesas e se enamora de todas elas de uma vez só. Cada uma é filha de um soberano de um dos sete continentes; Bahram pede em casamento uma por uma e as desposa. Depois manda erguer sete pavilhões, em cores diferentes e “construídos segundo a índole dos sete planetas”. A cada uma das princesas dos sete continentes corresponderá um pavilhão, uma cor, um planeta e um dia da semana; o rei fará uma visita semanal a cada uma das mulheres e delas ouvirá um conto. As roupas do rei serão da cor do planeta daquele dia e as histórias narradas pelas esposas serão igualmente combinadas segundo a cor e as virtudes do respectivo planeta.
Esses sete relatos são fábulas cheias de maravilhas do tipo Mil e uma noites, mas cada uma tem uma finalidade ética (embora nem sempre reconhecível sob o manto simbólico) pela qual o ciclo semanal do rei-marido é um reconhecimento das virtudes morais como correspondência humana das propriedades do cosmos. (Poligamia carnal e espiritual do único macho-rei sobre as muitas esposas-servas; na tradição, o papel de cada sexo é irreversível e nesse ponto não se pode esperar nenhuma surpresa.) Por sua vez, as sete narrativas compreendem aventuras amorosas que se apresentam de forma multiplicada em relação aos modelos ocidentais.
Por exemplo, o esquema típico da fábula de iniciação pretende que o herói supere várias provas para merecer a mão da donzela amada e um trono real. No Ocidente, esse esquema exige que as núpcias sejam reservadas para o final, ou então, se ocorrerem no decurso do relato, precedem novas vicissitudes, perseguições e encantamentos, em que a esposa (ou o marido) primeiro é perdida e depois reencontrada. Ao contrário, aqui lemos uma fábula em que o herói, a cada prova que supera, ganha uma nova mulher mais bem situada na escala social que a precedente; e essas esposas sucessivas não se excluem reciprocamente, mas se somam como os tesouros de experiência e sabedoria acumulados durante a vida.
Estou falando de um clássico da literatura persa medieval, hoje acessível num pequeno volume da BUR, publicado com zelo elogiável: Nezami, Le sette principesse [As princesas], introdução e tradução de Alessandro Bausani, notas de A. Bausani e Giovanna Calasso, Rizzoli. Acercar-nos das obras-primas da literatura oriental para nós, profanos, permanece na maioria dos casos uma experiência aproximativa, porque já é muito se, através das traduções e das adaptações, chega até nós um perfume distante, e resulta sempre uma tarefa árdua situar uma obra num contexto que não conhecemos; este poema em particular é certamente um texto bastante complexo no que concerne ao corte estilístico e implicações espirituais. Mas a tradução de Bausani (que parece aderir minuciosamente ao denso tecido das metáforas e não recua nem mesmo diante dos jogos de palavras, indicando entre parênteses os vocábulos persas), as notas copiosas, a introdução (e também o essencial conjunto de ilustrações) nos dão, penso eu, algo mais que a ilusão de entender o que seja esse livro e de saborear seus encantos poéticos, ao menos naquilo que uma tradução em prosa pode transmitir.
Assim, temos a sorte rara de agregar à nossa estante de obras-primas da literatura universal um livro altamente fruitivo e substancioso. Digo sorte rara porque tal ocasião é um privilégio para nós, italianos, dentre todos os leitores ocidentais, se é verdade o que diz a bibliografia do volume: que a única tradução inglesa completa, de 1924, é inadequada, a alemã, uma adaptação livre parcial, e que não existe nenhuma francesa. (Contudo, na bibliografia não se diz, mas é justo que se lembre, essa mesma tradução de Bausani já fora publicada anos antes pelas edições Leonardo da Vinci de Bari, embora oferecendo um conjunto de notas menos rico.)
Nezami (1141-1204), que nasceu e morreu em Ganjé (no Azerbaijão, que veio a integrar a URSS; tendo vivido, portanto, num território em que se enraízam as estirpes iraniana, curda e turca), um muçulmano sunita (naquela época, os xiitas ainda não tinham assumido a liderança no Irã), conta nas Sete princesas (Haft peikar, literalmente “as sete efígies”, que se pode datar por volta de 1200, um dos cinco poemas escritos por ele) a história de um soberano do século V, Bahram V, da dinastia sassânida. Assim, Nezami rememora em chave de mística islâmica o passado da Pérsia zoroastriana; o seu poema celebra tanto a vontade divina à qual o homem deve entregar-se inteiramente quanto as várias potencialidades do mundo terrestre, com ressonâncias pagãs e gnósticas (e também cristãs; igualmente é louvado o grande taumaturgo Isu, ou seja, Jesus).
Antes e depois das sete fábulas narradas nos sete pavilhões, o poema ilustra a vida do príncipe, a educação, as caçadas (ao leão, ao onagro, ao dragão), suas guerras contra os chineses do Grande Khan, a construção do castelo, as festas e bebedeiras, os amores que incluíam as servas. Assim, o poema é antes de mais nada um retrato do soberano ideal, em que se fundem, como diz Bausani, a antiga tradição iraniana do “rei sagrado” e a islâmica do sultão piedoso, submetido à lei divina.
Um soberano ideal — pensamos nós — deveria ter um reino próspero e súditos felizes.
Longe disso! Trata-se é de preconceito de nossa mentalidade terra a terra. Que um rei seja um prodígio de todas as perfeições não exclui que seu reino seja oprimido pelas injustiças mais cruéis, sob garras de ministros pérfidos e ávidos. Mas, dado que o rei desfruta das graças do céu, chegará o momento em que a triste realidade de seu reino se revelará perante seus olhos. Então ele punirá o vizir infame e dará satisfações a quem venha lhe contar as injustiças sofridas: eis assim as “histórias dos ofendidos”, também elas em número de sete, mas sem dúvida menos atraentes que as anteriores.
Restabelecida a justiça no reino, Bahram pode reorganizar o exército e derrotar o Grande Khan da China. Cumprido assim o seu destino, só lhe resta desaparecer: de fato, some literalmente numa caverna, onde entrara a cavalo perseguindo o onagro que estava caçando. Em suma, o rei é, diz Bausani, “o Homem por excelência”: aquilo que conta é a harmonia cósmica que nele se encarna, harmonia que em certa medida também se refletirá sobre o reino e os súditos mas que reside sobretudo em sua pessoa. (Ainda hoje, de resto, há regimes que pretendem ser louváveis em si e por si, independentemente do fato de que as pessoas vivam muitíssimo mal.)
Em resumo, As sete princesas funde em si mesmo dois tipos de conto “maravilhoso” oriental: o épico-celebrativo do Livro dos reis de Firdusi (o poeta persa do século X ao qual se filia Nezami) e o novelístico que, das antigas coletâneas indianas, conduzirá às Mil e uma noites. Certamente o nosso prazer de leitores é mais gratificado por este segundo filão (sugerimos portanto começar pelas sete fábulas e depois remontar à moldura), mas inclusive a moldura é rica em encantos fantásticos e refinamentos eróticos (muito apreciadas, por exemplo, as carícias com os pés: “O pé do rei nas cadeiras daquela ladra de corações se insinuava entre a seda e o brocado”), assim como nas fábulas o sentimento cósmico-religioso toca extremidades muito elevadas (como na história da viagem realizada por um homem que se submete à vontade de Deus e um homem que deseja explicar racionalmente todos os fenômenos: a caracterização psicológica dos dois é tão persuasiva que é impossível não torcer pelo primeiro, o qual não perde de vista a complexidade do todo, ao passo que o segundo é um espertalhão malévolo e mesquinho; a moral que podemos daí extrair é que, mais do que a posição filosófica, o que conta é o modo de vida em harmonia com a própria verdade).
De qualquer modo, separar as várias tradições que convergem nas Sete princesas é impossível porque a vertiginosa linguagem figurada de Nezami termina por absorvê-las em seu molho e estende sobre cada página uma lâmina dourada esmaltada de metáforas que se encastram umas nas outras como pedras preciosas de um colar deslumbrante. Razão pela qual a unidade estilística do livro parece uniforme e se estende também pelas partes introdutórias sapienciais e místicas. (Dentre estas últimas, relembrarei a visão de Maomé que sobe ao céu montado num cavalo-arcanjo, até o ponto em que as três dimensões desaparecem e “o profeta vislumbrou Deus sem espaço, ouviu palavras sem lábios e sem som”.)
Os acabamentos dessa tapeçaria verbal são tão luxuriantes que os nossos paralelos com as literaturas ocidentais, para além das analogias, das temáticas medievais e, atravessando a plenitude fantástica do Renascimento de Ariosto e de Shakespeare, desembocam naturalmente no barroco mais carregado; contudo, até o Adone de Marino e o Pentamerone de Basile parecem de uma sobriedade lacônica, comparados com a proliferação de metáforas que recobre densamente a narrativa de Nezami, desenvolvendo um broto de relato em cada imagem.
Esse universo metafórico tem características e constantes muito peculiares. O onagro, burro selvagem do altiplano iraniano — que, visto nas enciclopédias e, se bem me lembro, nos zoológicos, tem todo o jeito de um modesto burrinho —, nos versos de Nezami se reveste da dignidade dos mais nobres animais heráldicos, e podemos dizer que aparece em cada página. Nas caçadas do príncipe Bahram, os onagros constituem a presa mais ambicionada e difícil, frequentemente citados ao lado dos leões como adversários contra os quais o caçador mede sua força e destreza. E nas metáforas o onagro é imagem de força, inclusive de força sexual viril, mas igualmente de presa amorosa (o burro presa do leão) e de beleza feminina e em geral de juventude. E, como possui também uma carne deliciosa, eis que “donzelas com olhos de onagro assavam no forno coxas de onagro”.
Outro elemento de metáfora polivalente é o cipreste: evocado para indicar robustez viril e naturalmente também símbolo fálico, vamos encontrá-lo como modelo de beleza feminina (a estatura é sempre muito apreciada) e associado às melenas femininas, mas também às águas que correm e ao sol matinal. Quase todas as funções metafóricas do cipreste valem também para o círio aceso e muitas outras mais. Em suma, o delírio das similitudes é tamanho que qualquer coisa pode significar tudo.
Como trechos de mestria feitos de metáfora uma depois da outra fazem pensar numa descrição do inverno, em que a uma série de imagens gélidas (“o ímpeto do frio fizera espada da água e água da espada”; a nota explica: as espadas dos raios solares tornam-se chuva e a chuva se transforma em espadas de relâmpagos; mesmo que a explicação não seja verdadeira, constitui sempre uma bela imagem) se sucede uma apoteose do fogo e uma simétrica descrição da primavera, inteiramente de animação vegetal, do tipo “a brisa entregou-se como penhor ao manjericão”.
Catalisadoras de metáforas são também as cores, que dominam nas sete fábulas. Como se faz para narrar uma história só de uma cor? O sistema mais simples é vestir as personagens com aquela cor, como na fábula negra em que se fala de uma senhora que se vestia sempre de negro porque fora criada de um rei que trajava sempre negro porque encontrara um estrangeiro vestido de negro que lhe contara sobre uma região da China cheia de gente vestida de negro… Mais adiante, a ligação é apenas simbólica, baseada nos significados atribuídos a cada cor: o amarelo é a cor do sol e portanto do rei; assim o conto amarelo falará de um rei e culminará numa sedução, comparável ao arrombamento de um escrínio que encerrasse ouro.
O conto branco é inesperadamente o mais erótico de todos, imerso numa luz láctea em que vemos mover-se “donzelas com seios de jacinto e pernas de prata”. Mas é também o conto da castidade, como tratarei de explicar, embora no resumo tudo se perca. Um jovem que entre os vários motivos de perfeição tem o de ser casto vê o seu jardim invadido por moças belíssimas que dançam. Duas delas, após tê-lo fustigado pensando tratar-se de um ladrão (um certo prazer masoquista não está excluído), reconhecem-no como patrão, beijam-lhe mãos e pés e convidam-no a escolher a que mais lhe agrada. Ele observa as moças enquanto tomam banho, faz sua escolha e (sempre com a ajuda das duas guardiãs ou “polícias femininas” que ao longo do relato lhe orientarão os movimentos) se encontra sozinho com a favorita. Mas nesse e nos encontros seguintes sempre sucede algo no momento culminante impedindo a conjunção: desaba o pavimento do quarto, ou um gato a ponto de agarrar um passarinho desmorona em cima dos dois amantes abraçados, ou então um rato rói o talo de uma abóbora numa pérgula e o baque da abóbora que cai quebra a inspiração amorosa do jovem. E assim por diante até a conclusão edificante: o jovem compreende que antes deve casar com a moça, pois Alá não quer que ele cometa um pecado.
O amplexo que sofre várias interrupções é um motivo difundido também no conto popular ocidental, mas sempre em chave grotesca: num cunto de Basile, os imprevistos que se sucedem assemelham-se muito aos de Nezami, mas daí surge um quadro infernal de miséria humana, sexofobia e escatologia. O de Nezami, ao contrário, é um mundo visionário de tensão e trepidação erótica simultaneamente sublimado e rico em nuances psicológicas, onde o sonho poligâmico de um paraíso de huris se alterna com a realidade íntima de um casal, e a licenciosidade desenfreada da linguagem figurada introduz às perturbações da inexperiência juvenil.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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