domingo, 20 de setembro de 2020

San Tiago

 

Não, nem todo o tipo de lucidez é frieza. San Tiago Dantas, por exemplo, que era acusado de frieza. Mas o próprio Schmidt se contradizia a respeito.

Conheci San Tiago em Paris. Formamos logo um grupo. E não sei por que resolvemos que naquela noite iríamos percorrer os nightclubs de Paris. O que fizemos até o amanhecer. Onde os violinos cantavam finos demais e perto demais de nós, saíamos. Mas acontece que em noite longa bebe-se. E eu não sei beber. Se bebo, ou me dá sono ou choro um pouco. Mas se continuo a beber, começo a ficar brilhante, a dizer coisas. E não sei o que é pior. Nessa noite aconteceram ambas. San Tiago, se era de chorar, não demonstrava. Sua lucidez na verdade era um grande controle e não frieza.

Ah, quantos mortos já havia em potencial no grupo. Bluma, Schmidt, Wainer, San Tiago. Ninguém sabia. Ou sabíamos? Tanto que não suportávamos os finos violinos finos.

Havia uma dona de boate que também servia de caixa. Estava com os ombros decotados, ombros bem cheios e bem fortes. Falamos muito de ombros. Os meus ficaram frágeis. Que é que eu bebi? O que me deram, e misturei muito.

Até que começou a madrugar, a quase amanhecer devagar. Ninguém tinha sono mas era a hora. Fomos andando. E San Tiago descobriu nas esquinas de Paris as primeiras vendedoras de flores. Não posso dizer quantas rosas ele comprou para mim. Sei que eu andava pelas ruas sem poder carregar tantas, e à medida que eu andava as rosas caíam pelo chão. Se jamais fui bonita foi naquele amanhecer de Paris com rosas caindo de meus braços plenos. E um homem que enfeita uma mulher não tem lucidez fria.

O quarto do hotel ficou cheio de perfume fresco, fresco. Mais morri do que adormeci.

Ao meio-dia acordei e mal podia abrir os olhos de tanta ressaca. Acordei o meu então marido e pedi que tocasse a campainha chamando o garçom e encomendando o café mais forte que houvesse.

Em breve o garçom entrava. Mas não só com o café. Com braçadas de mais flores: San Tiago já as tinha mandado. E enquanto eu bebia o café tocava o telefone: era San Tiago querendo saber como eu estava. Eu estava péssima. Perguntou se podíamos almoçar todos juntos. Mas chega nesse ponto e não me lembro mais: parece-me que tínhamos de tomar o trem para Berna naquela hora e não podíamos.

Quando fui ver San Tiago de novo? No Rio. Fomos jantar na casa dele e de Edmeia. Mas aí ele me estranhou. Eu não tinha bebido, eu não chorava, eu não brilhava. Estava meio calada. Perguntou-me se eu estava triste. Respondi-lhe que eu era isso.

No meio do jantar falou-se do quadro de um museu italiano. San Tiago perguntou se eu gostara. Disse-lhe que não me lembrava. Respondeu com simplicidade: ah, é verdade que você é dos que só se lembram do que aconteceu antes de ter dez anos de idade.

Passou-se tempo. Quando ele ia a Washington dava-me a alegria de me telefonar na mesma hora. Jantava lá em casa, ficávamos conversando até mais de três horas da madrugada. E eu aprendia. O que aprendi, já esqueci, mas tenho a certeza de que de algum modo ficou em mim.

Uma vez jantamos num hotel em Washington. E ele falou muito de política comigo. Fiquei desconfiada: não se fala de política com mulher. Estaria eu ficando menos mulher? Perguntei-lhe com franqueza. Respondeu que pelo contrário, e que até tomasse cuidado. Então jantei melhor.

E muito depois a doença dele. Um dia recebo um convite impresso para um banquete com discurso político de San Tiago. Quem se lembraria de me convidar para isso, senão ele? Fui. Depois do banquete, levanta-se San Tiago, branco como uma folha de papel. Sua voz falhava. Então ele tomava um gole de água. E recomeçava como um herói de si mesmo, todo herói é um herói de si mesmo. Quem vence está-se vencendo.

Depois fui abraçá-lo, controlando minhas lágrimas. Eu abraçava a morte. E a morte lúcida. Ele aceitou a morte, tenho a certeza.

Esqueci de dizer que San Tiago tinha várias sobrinhas que ele muito amava. Uma delas era a preferida. E quando ela esteve em Washington, trouxe carta dele recomendando-a a mim. E mais: que eu tivesse uma conversa com ela. Tivemos várias. Jantava em casa à vontade.

E depois veio aqui no Rio o convite para o casamento dela. O noivo e a noiva tímidos e lindos. Sentei-me num dos bancos da igreja. Olhei San Tiago no outro. Ele estava morrendo sentado. Houve o casamento.

Quando todos se levantaram e cumprimentaram os noivos, encontrei-me com San Tiago. Quase não falava mais. Perguntou-me se eu estava escrevendo. Respondi-lhe que acabara de escrever um livro e que o nome era A paixão segundo G. H. E ele disse que gostava muito do nome.

Ia gostar desse livro, eu sei. Mas morreu antes da publicação. Não fui ao enterro. Porque nem todos morrem.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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