domingo, 20 de setembro de 2020

O escravo etíope

 

Saiu do colégio com 15 anos e trouxe para o mundo a sua inocência maravilhada. Ninguém mais sensível e exclamativa. De uma fragilidade física impressionante, qualquer esforço dava-lhe palpitações, falta de ar; uma simples aragem a resfriava. O médico da família, que a examinou várias vezes, repetia:

Tem uma saúde muito delicada. É preciso cuidado, muito cuidado.

Havia na família, o medo ou o presságio de que viesse a sofrer do peito como uma tia que morrera tísica. Filha de pais ricos, era tratada na palma da mão, com os mimos de uma princesa. E justamente por ser tão fina e frágil, de uma natureza tão delicada e suscetível, ninguém a contrariava. Aos 16 anos, teve o seu primeiro namorado. Era um primo, ótimo rapaz, educadíssimo, simpático e mesmo bonito, aristocrata nos modos, ideias e sentimentos. Ela se chamava Margô e ele, Paulo. Pareciam feitos um para o outro. Para as duas famílias foi, como se disse, “um achado”. Não houve duas opiniões. Todos disseram: “Ótimo, ótimo.” E o pai, que tinha a religião do dinheiro e a ideia fixa da pompa, exigia, esfregando as mãos:

Quero um casamento de arromba! — e sublinhava: — Um casamento que deixe todo mundo besta!


Preparativos nupciais

Enfim, foi proclamado o noivado. O velho — que era de origem plebeia e tivera de criar, tostão a tostão, a própria fortuna — queria um vestido de noiva inédito e deslumbrante, que embasbacasse a cidade. Acirrava as mulheres, dando murros na mesa: “Gastem sem dó nem piedade.” Na sua mania, fazia cálculos alucinados: “Um vestido de uns cem, duzentos contos.” Tal desperdício arrepiava as presentes. A própria noiva sentia-se desfalecer. Mas ele, desvairado, batia nos próprios bolsos: “Gastem! Eu pago! Pago!” Sob esse estímulo, todas as mulheres da casa se entregaram a um verdadeiro delírio. A mania de grandeza se transmitiu e se generalizou. Catou-se por entre páginas de revistas o figurino ideal. Afinal, descobriu-se um modelo encantador. O velho olhou e deu sua adesão: “Bacana.” A filha, muito mais aristocrática que o pai, suspirou:

Como é bonito, meu Deus!

Um batalhão de costureiras pôs-se a trabalhar, dia e noite, no vestido mágico.

Quando uma delas cansava, o velho vinha lá de dentro com a ideia do suborno. “Eu pago extraordinário! Dou gorjeta, o diabo!” Já a cerimônia estava com data marcada. E quando o vestido ficou pronto, uma meia dúzia de parentes mais chegadas, inclusive a mãe, se fecharam com a noiva no quarto. Então lânguida, delicada, com seu aspecto de flor de luxo, Margô vestiu peça por peça. Houve um momento em que só ficaram faltando a grinalda e o véu. Ao redor, havia histerismos. Primas, tias, cunhadas, suspiravam:

Que amor! Que amor!

Na verdade, era algo de indescritível. No meio de tanta alvura, a fragilidade física de Margô era ainda mais tocante. Faltavam uns 15 dias para o casamento. E, à noite, depois do jantar, ela se queixou de palpitações. As pessoas próximas se entreolharam num pavor de pneumonia. Alguém sugeriu: “Vai ver que foi um golpe de ar!” Passou. Mas na hora de se despedir do noivo, Margô fez-lhe o pedido:

Precisava de um favor teu.

Ele, sempre cavalheiresco, limitou-se a dizer:

Dois.

Margô baixou a vista, fugindo do seu olhar intenso:

Eu queria adiar o nosso casamento.


Mistério

Justiça se lhe faça: ele foi impecável. Explicou que naturalmente estaria muito interessado em que o casamento fosse o mais rápido possível. “Mas já que você quer, meu anjo...” Um pouco vaga, Margô explicou que não se sentia bem, que devia ter alguma coisa e, enfim, que andava nervosa, etc., etc. Paulo com sua polidez irrepreensível afirmou: “Por mim não há dúvida.” Quem se doeu com a transferência foi o velho. Estava mais ansioso pelo casamento do que os noivos. Gemeu, desabando numa cadeira:

Que caso sério! Que caso sério!

Margô foi ao médico, que a examinou meticulosamente. Não achou, no seu estado, a menor novidade. Continuava fisicamente delicada, mas não apresentava nenhum sintoma que sugerisse doença. Passaram-se dois, três, cinco meses. A família do noivo estranhava:

Que diabo! Vocês se casam ou não se casam?

Ele parecia abdicar dos próprios direitos:

Quem decide é Margô.

Protesto geral:

E você não pia? Ora veja! Não está certo, não está direito!

Sob a pressão dos parentes, foi conversar com a noiva:

Meu anjo, precisamos marcar uma nova data.

Ela suspirou:

Já? Vamos esperar mais um pouco.

Como ele insistisse, embora com um máximo de tato e delicadeza, Margô acabou concordando. Houve um conselho de família, com a presença dos noivos, fixou-se o casamento para daí a três meses. Todos se animaram de novo. Houve a febre dos preparativos. Mãe, tias e amigas se reuniam planificando a festa. Foram ver se o vestido de noiva estava com alguma mancha; fizeram, nele, uma revisão minuciosa, com medo de alguma possível barata. O pai, com sua vocação para o desperdício, foi de uma liberalidade estupenda, outra vez:

Acho mais negócio fazer outro vestido!

A mãe, que era uma senhora fina, interrogou os noivos: “Como é? Vocês vão viajar?” Margô teve que admitir: “Não pensamos nisso.” Então, a santa senhora fez-lhe uma repreensão: “Minha filha, acho você uma noiva tão não sei como; muito desanimada.” Sorriu, lânguida: “Sou assim, mamãe.” E a outra: “Está errado. Você deve se corrigir. Onde já se viu?” Finalmente, deu para a filha e o futuro genro a sugestão:

Se eu fosse vocês, sabem o que eu fazia? Uma viagem! — e já animada, já excitada pela própria ideia, continuou: — Casamento sem viagem de núpcias é tão sem graça! Vocês podiam ir à Europa, aos Estados Unidos!

O noivo pareceu impressionado; comentou, grave: “Boa ideia.” Virou-se para Margô: “Você não acha, Fulana?” Ela respondeu:

Não. Acho pau. Gosto de ficar em casa.

Dois dias depois, pediu que se adiasse, de novo, o casamento. Houve assombro na família. Crivaram-na de perguntas: “Mas adiar por quê? Qual o motivo?” Ela, desesperada, procurou um motivo, como se estivesse disposta a inventá-lo; disse, por fim: “Ando nervosa.” Insistiram, e a menina acabou perdendo cor, pulso, até desmaiar. Uma semana depois, a mãe foi sondá-la: “Você gosta mesmo do Paulo, minha filha?” Disse que sim, que gostava, mas que...

Ainda uma vez, o noivo foi magnífico: concordou com o adiamento.


A sogra

Quem não gostou foi a futura sogra. Chamou o filho. Instigou-o: “Essa menina está fazendo você de gato e sapato. Isso não é papel! Onde é que nós estamos?” Ele, que adorava a noiva, que a colocava acima de tudo e de todos, cortou o debate: “Vamos mudar de assunto, sim, mamãe?” A velha, porém, era tremenda. Largou o filho, com as seguintes palavras: “Está certo, não se fala mais nisso. Mas quero te dizer uma coisa: aqui há dente de coelho.” E o fato é que, sem dizer nada a ninguém, ela andava desconfiadíssima. De quem ou de que, nem ela própria saberia dizê-lo. Nesta mesma tarde, porém, recorreu a vários conhecidos, atrás de uma informação, até que descobriu um detetive particular. Chamou o homem; perguntou:

O senhor é discreto?

Um túmulo!

Ótimo. Eu preciso mesmo de um túmulo. Trata-se do seguinte...

Incumbiu o sujeito de acompanhar os passos de Margô; advertiu: “Pode ser palpite meu, mas não custa apurar.” O Fulano concordou, grave: “Evidente! Evidente!” Deixou-o, com a super-recomendação: “Ninguém pode saber disso!” Quarenta e oito horas depois, o detetive reaparecia, de olho esgazeado. Contou, longamente, o que apurara. De vez em quando, interrompia o relatório para exprimir seu estupor: “De arder! De arder!” Assombrada, a velha balbuciou: “Eu só acredito vendo com os meus próprios olhos!” E o detetive: “Amanhã, eu mostro o homem à senhora!”


O bem-amado

No dia seguinte, encontraram-se a velha e o detetive na porta de uma companhia de ônibus. Súbito, o profissional indica: “Olha o homem!” Ela espiou. Lá vinha ele, no meio de outros motoristas, um negro gigantesco. Segundo apurara o detetive, ele saíra, no último carnaval, no rancho, de escravo etíope, com o dorso nu e retinto. A velha, fora de si, gaguejava: “Quer dizer que é esse o namorado de minha nora?” O detetive pigarreou:

Isto é, mais do que namorado. Eu apurei tudo, direitinho. Tenho endereços, o diabo. E posso provar.

Então, a velha cambaleou. Seu estômago se contraiu, sofreu, ali mesmo, uma náusea violenta. Afastaram-se; ela pagou o preço que ele impôs e partiu num táxi. Como era uma mulher viril, de muito gênio, preferiu ir, de uma vez, à casa da menina. E, lá, fez um escândalo medonho. Quiseram expulsá-la; foi chamada de louca. Ela, em desespero de causa, virou-se para a própria Margô que, sem uma palavra, ouvia tudo:

É verdade ou não é?

Todos se voltaram na direção da menina. Então, aquela mocinha frágil, fina, que desfalecia ao aspirar um perfume mais intenso, ergueu o olhar firme, quase cruel. Disse apenas, sem medo:

É verdade.

A ex-futura sogra saiu dali feliz e vingada. Foi um escândalo pavoroso. O pai veio, esbravejante. Falou em dar tiros. Ela o conteve com a ameaça: “Se fizer isso, eu me mato!”

Ante a perspectiva do suicídio, a família capitulou. Tiraram o rapaz da companhia de ônibus, arranjaram um emprego. E, um dia, casaram-se às escondidas. No seguinte carnaval, quando o sogro passava, de Cadillac, pela praça Onze, viu o genro, num rancho — fantasiado de escravo etíope.

Nelson Rodrigues, in A vida como ela é

Nenhum comentário:

Postar um comentário