Chamo
este de o caso da caneta de ouro. Na verdade é sem mistérios.
Mas meu ideal seria escrever alguma coisa que pelo menos no título
lembrasse Agatha Christie.
Acharam
por bem dar-me de presente uma caneta de ouro. Sempre escrevi com
lápis-tinta ou, é claro, à máquina. Mas se me veio uma caneta de
ouro, por que não? Ela é bonita e de boa marca. Tive logo um
problema ao qual também não dei importância. O probleminha era:
com caneta de ouro devem-se escrever coisas de ouro? Teria que
escrever frases especiais porque o instrumento era mais precioso? E
terminaria eu mudando de jeito de escrever? E se o jeito mudasse, na
certa ele iria, por seu turno, me influenciar – e eu também
mudaria. Mas em que sentido? Para melhor? Outra questão: com caneta
de ouro eu cairia no problema do Rei Midas, e tudo o que ela
escrevesse teria a rigidez faiscante e implacável do ouro?
A
esses probleminhas, como eu disse, não dei importância maior: estou
habituada a não considerar perigoso pensar. Penso e não me
impressiono.
O
que veio depois, sim, foi problema maior. O caso é que tenho uma só
caneta de ouro e dois filhos. Mas estou-me precipitando, devo começar
pelo início.
Meu
filho menor, ao ver a caneta de ouro, sofreu uma transformação
fisionômica realmente notável. Não disse uma palavra, depois de
examiná-la. Seu rosto porém era a verdadeira máscara da mais bela
cobiça. A cobiça por uma coisa bonita. Os olhos brilhavam em
silêncio. Entendi. Ele queria a caneta de ouro. Era tão simples.
Então
ajudei: “Já sei o que você está pensando, está pensando que
essa caneta vai terminar nas suas mãos.” Silêncio dele. Luta
entre o desejo e a culpa. Venceu a culpa, ele sugeriu sem nenhum
entusiasmo: “Você poderia mandar gravar seu nome nela e usar.”
Eu disse: “Mas se eu fizer isso, você depois vai ter que usar uma
caneta gravada com outro nome.” Silêncio, reflexão profunda.
Depois, com desânimo: “É, mas se eu usar agora ou roubam ou eu
perco.” Era mesmo. Então nós dois passamos a refletir juntos.
Minha reflexão foi produtiva: tive uma ideia. “Olhe, a caneta será
sua quando você terminar o ginásio, porque já estará mais
crescido, não roubam você e você será mais cuidadoso.” “Ah
é.” Mas ainda se sentia culpado, como se a caneta, me pertencendo,
ele a estivesse tirando de mim. Mal sabendo como eu gosto que eles
tirem coisas de mim.
Um
dia depois já não havia sinal de culpa.
Eu
não achara um lápis-tinta para anotar um recado, e havia recorrido
à caneta de ouro. Foi quando ele entrou e surpreendeu-me em
flagrante. “Ah essa não!”, reclamou indignado. “Por quê?”,
perguntei, “não posso usar de vez em quando a tua futura caneta!”
“Mas você vai terminar estragando, veja, ela já está até um
pouco arranhada!” Tinha razão: a caneta ia ser dele e eu devia ter
mais cuidado. Mostrei-lhe então onde ia guardá-la, e prometi que
não a usaria.
Mas
– tenho dois filhos. E por que o outro não havia pedido? Fiquei
triste. Achava mais certo que houvesse uma disputa franca entre os
dois a propósito da caneta de ouro, e não que um deles nem sequer
pedisse.
Esperei
um momento em que estivéssemos a sós, os dois. Contei-lhe então a
história e terminei dizendo: “Se você tivesse pedido antes, eu
teria dado a caneta a você.” “Eu nem sabia que você tinha uma
caneta de ouro.” “Pois devia saber, você anda distraído, e não
ouve as conversas de casa.” Silêncio. Perguntei esperançosa: “Mas
se você soubesse que eu tinha ganhado a caneta, pediria para você?”
“Não.” “Por quê?” “Porque é muito cara.” “E você
então não merece uma coisa cara?” “Você já teve outras coisas
caras e eu não pedi.” “Por quê?” “Senão você fica sem
nenhuma.” “Eu não me incomodo.”
Ficamos
em silêncio, num impasse total.
Afinal
ele quis resolver de uma vez o assunto e disse: “Para mim não faz
diferença. Contanto que a caneta escreva, qualquer uma serve.”
A
resposta era válida, inclusive para mim. Mas não gostei. Alguma
coisa nessa conversa não estava bem. Preferia que fosse... Não sei.
Sei lá. É. Mas não gostei, que é que posso fazer, não gostei e é
isso mesmo.
De
repente, descobri. Pouco estava importando a caneta de ouro. O que
importava é que um filho pedia e o outro não pedia. Retomei a
conversa: “Vem cá, por que é que você não me pede coisas?”
A
resposta foi pronta e contundente: “Eu já pedi muitas e você não
me deu nada.”
A
acusação era tão dura que fiquei estarrecida. Inclusive não era
verdade. Mas, exatamente por não ser verdade, é que se tornava mais
grave. Ele tinha uma queixa tão profunda que a transformara nessa
inverdade.
“O
que é que você pediu e eu não dei?” “Quando eu era pequeno eu
pedi uma câmara, quer dizer, um desses tipos de pneus que servem de
boia para eu ir à praia.” “E eu não dei?” “Não.” “Você
quer que eu dê agora?” “Não, agora não preciso mais.” “Que
pena que eu não tenha dado.”
Ele
teve piedade de mim: “Mas você não se lembra. Não deu porque
disse que era perigoso, que fica boiando nas ondas e as ondas levavam
para longe no mar, e eu era muito pequeno, não sabia nadar.” “Você
sabe então que eu não queria arriscar a te perder no mar.” “Sei.”
Mas ficara a mágoa.
A
caneta de ouro nos levara longe. Achei melhor parar. E por aí
ficamos. Nem sempre esmiuçar demais dá certo.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
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