Tinha
do próprio casamento e do marido morto uma lembrança penosa. O
marido era uma nobre alma, que vivia para a esposa e para o filho.
Mas tudo que ele fizesse, de bom, de heroico, de sublime, esbarrava
diante de sua falta de amor. E isso, essa falta de amor, era pior do
que o ódio. Crispava-se quando o pobre-diabo vinha fazer-lhe festa.
Houve uma vez, em que não pôde, não aguentou, explodindo:
— Não
me beija! Não quero seu beijo! Que coisa aborrecida!
Ele
já estava doente, na ocasião. Foi talvez este episódio que
antecipou o fim. Seis meses depois ela, sem nenhum luto interior,
tinha a sua primeira experiência amorosa, na pessoa do casado
Romualdo. Viu, então, que o marido a interessava menos que o
mata-mosquitos anônimo que vinha pôr creolina no ralo. Foi uma
paixão feroz que acabou, como vimos, da maneira mais estúpida do
mundo. Durante dias, Lucília, numa tristeza obtusa, esperou um
telefonema, um bilhete, um recado. Nada. Absolutamente nada. Depois
soube, por terceiros, que ele andava com uma datilógrafa
extranumerária numa autarquia; tinham sido vistos no Passeio
Público, onde tiravam retratos, no lambe-lambe. Lucília, fora de
si, encerrava-se no quarto, ficava horas, de bruços, na cama,
chorando. Já o julgamento do filho não a interessava mais. O
garoto, diante do seu pranto, perguntava:
— Que
é que a senhora tem, mamãe?
— Não
aborrece! Não amola! Sai daqui, anda!
Na
presença do filho, ligava para o escritório do bem-amado. De lá,
queriam saber quem era.
Lucília
se identificava. Então, a resposta infalível era: “Não está.”
Uma vez, porém, coincidiu que o próprio atendesse. Mas quando
percebeu que era ela, explodiu:
— Me
deixa em paz, sim? Quero sossego! Vê se não me chateia.
O
filho não fazia comentário. Era uma testemunha muda de tudo.
Guardara, porém, o nome e o repetia: “Romualdo, Romualdo.”
Conhecia-o, de vista. Pensava nele, dia e noite, com essa obstinação
de amor ou de ódio. E já não saía mais de casa, não jogava mais
bola; passava as horas ao lado de Lucília, de olhos muito abertos,
como se esse desespero o fascinasse, apesar de tudo. Ouviu quando a
mãe, numa crise maior, amadiçoou o homem que a abandonara:
— Tomara
que ele morra, meu Deus! Fique debaixo de um automóvel! Tomara, meu
Deus!
Por
fim, ela já não queria mais nada; ou, por outra, queria morrer. Não
comia e seu desmazelo, de atitudes, de roupas, de higiene, era
aterrador. Passava dias com uma mesma combinação. Outras vezes, do
fundo do seu desespero, fazia a reflexão: “Há três dias que não
escovo os dentes.” O filho se abraçava a ela, chorava:
— Não
fique assim, mamãe! Não chore mais!
Certa
vez, na rua, o garoto ouviu dizer que não se nega nada a quem está
morrendo, a quem vai morrer. O “último” pedido de alguém,
justamente por ser o “último” é alguma coisa de terrível e
sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de maldições tremendas.
Então, afirmou:
— Ele
volta, mamãe! Volta, sim! Juro por Deus!
Nelson
Rodrigues, in A vida como ela é
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