terça-feira, 1 de setembro de 2020

Morte e ressurreição de Fup



Na manhã seguinte, Miúdo e Fup saíram de casa à primeira luz. Tomaram um atalho no topo da bacia de Rifkin e de lá foram descendo ao longo da cerca sul, que Miúdo construíra quando tinha 16 anos. Pararam por um minuto para deixar que o dia clareasse, e então, com Fup à frente começaram a seguir a cerca à margem do denso matagal de carvalhos, em direção à nascente lamacenta onde o Cerra-Dente gostava de chafurdar. Não haviam percorrido 100 metros quando Fup começou a farejar o rastro como um cão de caça de pedigree; em poucos instantes estava grasnando de excitação. Miúdo equilibrou a espingarda 243, deslizou o dedo para o dispositivo de segurança. Não conseguia enxergar abaixo da linha da cerca do seu lado, pois um pequeno bosque de arbustos de louro lhe bloqueava a visão. Fup mergulhou direto nos arbustos, o pescoço totalmente esticado para a frente como um cobra, ainda grasnando de modo selvagem, e Miúdo foi atrás dela, fazendo um estrondo através dos arbustos. Quando afinal saíram das moitas, ambos pararam em silêncio durante uma repentina fração de segundo: o Cerra-Dente estava estirado a uns seis metros de distância, de barriga para cima, olhando para eles, a pata traseira esquerda presa à tela torcida do arame da cerca.
Miúdo ergueu a arma até o ombro, a atenção toda voltada para o animal. Fup grasnava incessantemente a seus pés, estridente, histérica. Miúdo centralizou a mira diretamente entre os olhos resolutos do porco. Era o Cerra-Dente, tinha certeza, mas parecia velho ou doente, sem presas, as orelhas esfarrapadas, os pelos pretos como breu ao longo da coluna adquirindo uma tonalidade cinza pálida. Miúdo deu uma aspirada profunda, tentando calar o grasnado maníaco de Fup; expirou lentamente, mantendo a mira firme entre os olhos do Cerra-Dente, e começou a apertar o gatilho. Fup, batendo as asas freneticamente a seus pés, viu seu dedo se encolher e mordeu-lhe a perna, o mais forte que pôde.
É o Cerra-Dente, o Cerra-Dente! – gritou Miúdo, chutando-a. Grasnando ferozmente, ela saiu correndo pela direita, para fora de seu alcance. Sem prestar atenção nela, Miúdo refez a mira, parando firmemente entre os olhos de Cerra-Dente. Enquanto ele apertava o gatilho, Fup arremessou-se em direção ao cano da arma, fazendo o rapaz perder o equilíbrio. Ele tropeçou para trás, Fup à frente da boca do cano enquanto a arma disparava. A explosão e o choque da bala a dilaceraram.
Miúdo não conseguia respirar. De quatro, engatinhou até os restos despedaçados. Ofegando, estendeu-se para juntá-la em suas mãos, recolher e reunir-lhe os pedaços, mas suas mãos se recusaram a fazer isso. Quando afinal tocou numa asas destroçada e o sangue fumegou na ponta de seus dedos, ouviu, ao longe, um grito imenso e dilacerante arrebentar de seu corpo. Sentou-se de cócoras e chorou.
Depois parou. Sentiu o Cerra-Dente fitando-o; virou-se de pronto. A cabeça do bicho estava estendida na horizontal, pousando sobre as patas dianteiras. Seu olhar era direto, amplo e totalmente indiferente. Lentamente, os olhos começaram a se embaçar, a se cobrir de uma película, a se perder por trás de um verniz prateado e opaco; da cor do céu antes de chover, tal como a parte de trás de um espelho.
Miúdo ficou de pé, foi até o corpo do porco, pegou a ferramenta no seu bolso de trás e, cortando a cerca, soltou o pé do animal. O corpo, imenso e malicento, rolou de lado. Miúdo ajoelhou-se ao lado dele e, delicadamente, tocou-lhe o olho esquerdo, deixando uma impressão digital leve e sangrenta sobre a superfície enevoada. O porco não piscou. Miúdo moveu sua mão para baixo e apertou a palma firmemente nas costelas do porco, bem atrás do ombro. Não sentia o coração bater debaixo das cerdas duras e ásperas sob sua mão úmidas. Por um instante, pensou sentir um movimento interior, uma pulsação abafada, mas não tinha certeza. Talvez uma última convulsão nervosa; o ligeiro movimento muscular involuntário que dura além da morte. Então, tornou a sentir, dessa vez com certeza, e cuidadosamente começou a mover as mãos sobre o corpo do animal, procurando a fonte da pulsação.
Um palmo acima do pênis, na parte inferior das costelas, sentiu um movimento regular. Pôs as duas mãos na barriga nua e apertou suavemente. Sentia nas mãos uma pulsação regular, não os espasmos esporádicos das tripas. Rolou o Cerra-Dente de costas, suas pernas já se enrijecendo, salientando-se desajeitadamente para o ar, e então encostou a cabeça na barriga. Sentiu a pulsação regular ressoando nos ossos do seu rosto.
Apoiando o corpo do porco em sua perna, pegou o canivete e abriu a lâmina longa e fina que usava para destripar animais. Começou o corte pelo osso pélvico e prosseguiu ao longo da parte ao lado do pênis, e para cima, até o esterno, com sangue espirrando no caminho. Quando deixou o porco a tornar a cair de lado, as tripas se esparramaram, livres. Entre os espirais das tripas quentes, havia um saco membranoso, fino, liso, laranja-sangue, latejando. Habilmente, usando apenas a ponta da faca, Miúdo fez uma incisão e abriu.
Dentro, divisou o que sua mãe tinha visto brilhar no fundo do lago: um ponto de luz – intenso, intenso, regular e denso. Dividia-se em dois. Em quatro. Oito. Começou a rodopiar enquanto instantaneamente se multiplicava através da trajetória ofuscante da forma em direção a alguma nova coerência, o arco de energia transformada em matéria, o papel branco de um pergaminho se desenrolando, brilhando ao sol.
A luz rodopiante, como que consolidada ou absorvida, desvaneceu-se na forma de um patinho. Fup se sacudiu, libertando-se da membrana pegajosa, abanando as asas molhadas enquanto uns poucos e leves grasnados experimentais. Crescendo a cada momento, continuou a adquirir penugem sob o olhar atônito de Miúdo; crescida, emitiu uma rajada triunfante: QUAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ.
Quando Miúdo tentou tocá-la, Fup explodiu num voo, direto para cima, como seria de se esperar de um pato de lagoa, numa explosão de água e asas. Miúdo berrou. Fup estabilizou o voo e convergiu para o leste, grasnando alegremente. De modo abrupto, surpreendentemente graciosa para o seu volume, fez uma curva, saiu do vento, e iniciou o caminho de volta.
Fup! Fup! berrou Miúdo para ela, acenando-lhe com os braços enquanto ela passava.
Ela fez uma manobra ascendente e curva, e voltou circulando ao seu redor. De repente, dobrou-se como se tivesse levado um tiro e mergulhou alguns metros antes de tornar a abrir as asas, grasnou freneticamente enquanto fazia uma curva, precipitando-se, e então parou de emitir ruídos e começou a se elevar por cima dele, num espiral perfeito que se abria. Miúdo ficou parado, arraigado ao chão, apalermado, contemplando-a enquanto desaparecia no céu.
Vovô Jake, acordado de supetão pelo tiro, dera um pulo e saíra correndo, de ceroulas, seguin do os gritos de dor de Miúdo até uma colina acima da cerca. Chegara ao topo da colina no momento em que Miúdo tinha acabado de destripar o Cerra-Dente, e permanecera ali, pregado ao chão, enquanto Fup aparentemente ressuscitava de dentro do corpo do porco e começava sua ascensão em espiral. Jake olhou, em transe, murmurando consigo mesmo, sem parar:
Puta que pariu, não acredito e no entanto acreditava de verdade.
Quando a ave desapareceu no céu, ele começou a gritar para Miúdo, mas este estava de gatinhas no chão, procurando os restos de Fup. Tinham desaparecido: nem uma pena chamuscada, nem um fragmento de carne. Não havia traço dela.
Dividido entre a gratidão e o terror, Miúdo deu um giro e correu para a cerca. Parou em frente a uma estaca de sequoia, travou as mãos num só punho e golpeou, com todo o seu peso. O golpe rompeu a estaca ao nível do chão mas seu talento de construtor de cercas era tal que a tensão dos arames a segurou, fazendo-a vibrar sem sair do lugar. Puxou violentamente o arame até as mãos ficarem escorregadias de sangue, gritando:
Aí está você! Vai, passa. Vai. Vai, passa… até que a dor se reduziu o suficiente para se lembrar da ferramenta, e então usou o cortador para seccionar o arame, cada fio retesado sibilando ao passar por ele, como o estalar de um nervo rompido.
Quando cortou o último fio, a estaca suspensa chicoteou para o outro lado, quase atingindo vovô, cuja presença ainda não notara, e chegando bastante perto para que o velho tivesse que mergulhar na direção contrária, por puro reflexo. Ainda no chão, vovô berropu:
Com os diabos, Miúdo, chega disso. Veja se recobra o juízo, filho. Podia ter-me cortado feito ovo cozido.
Ouvindo sua voz, Miúdo largou a ferramenta e correu, soluçando, levantou o avô e o abraçou fortemente, as pernas magras de Jake metidas nas ceroulas, chutando o ar. Abraçaram-se por um bom tempo. Miúdo chorando, vovô Jake consolando-o:
Está tudo bem, filho, tudo, bem; pode chora e ao mesmo tempo lhe batia levemente nas costas com os braços ossudos, e então caminharam de volta para casa, a fim de tomarem um gole de uísque: um gole que, segundo vovô, tinha um destino glorioso, pois era totalmente necessário e merecido até a última gota.
Jim Dodge, in Fup

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