Na
manhã seguinte, Miúdo e Fup saíram de casa à primeira luz.
Tomaram um atalho no topo da bacia de Rifkin e de lá foram descendo
ao longo da cerca sul, que Miúdo construíra quando tinha 16 anos.
Pararam por um minuto para deixar que o dia clareasse, e então, com
Fup à frente começaram a seguir a cerca à margem do denso matagal
de carvalhos, em direção à nascente lamacenta onde o Cerra-Dente
gostava de chafurdar. Não haviam percorrido 100 metros quando Fup
começou a farejar o rastro como um cão de caça de pedigree;
em poucos instantes estava grasnando de excitação. Miúdo
equilibrou a espingarda 243, deslizou o dedo para o dispositivo de
segurança. Não conseguia enxergar abaixo da linha da cerca do seu
lado, pois um pequeno bosque de arbustos de louro lhe bloqueava a
visão. Fup mergulhou direto nos arbustos, o pescoço totalmente
esticado para a frente como um cobra, ainda grasnando de modo
selvagem, e Miúdo foi atrás dela, fazendo um estrondo através dos
arbustos. Quando afinal saíram das moitas, ambos pararam em silêncio
durante uma repentina fração de segundo: o Cerra-Dente estava
estirado a uns seis metros de distância, de barriga para cima,
olhando para eles, a pata traseira esquerda presa à tela torcida do
arame da cerca.
Miúdo
ergueu a arma até o ombro, a atenção toda voltada para o animal.
Fup grasnava incessantemente a seus pés, estridente, histérica.
Miúdo centralizou a mira diretamente entre os olhos resolutos do
porco. Era o Cerra-Dente, tinha certeza, mas parecia velho ou doente,
sem presas, as orelhas esfarrapadas, os pelos pretos como breu ao
longo da coluna adquirindo uma tonalidade cinza pálida. Miúdo deu
uma aspirada profunda, tentando calar o grasnado maníaco de Fup;
expirou lentamente, mantendo a mira firme entre os olhos do
Cerra-Dente, e começou a apertar o gatilho. Fup, batendo as asas
freneticamente a seus pés, viu seu dedo se encolher e mordeu-lhe a
perna, o mais forte que pôde.
– É
o Cerra-Dente, o Cerra-Dente! – gritou
Miúdo, chutando-a. Grasnando ferozmente, ela saiu correndo pela
direita, para fora de seu alcance. Sem prestar atenção nela, Miúdo
refez a mira, parando firmemente entre os olhos de Cerra-Dente.
Enquanto ele apertava o gatilho, Fup arremessou-se em direção ao
cano da arma, fazendo o rapaz perder o equilíbrio. Ele tropeçou
para trás, Fup à frente da boca do cano enquanto a arma disparava.
A explosão e o choque da bala a dilaceraram.
Miúdo
não conseguia respirar. De quatro, engatinhou até os restos
despedaçados. Ofegando, estendeu-se para juntá-la em suas mãos,
recolher e reunir-lhe os pedaços, mas suas mãos se recusaram a
fazer isso. Quando afinal tocou numa asas destroçada e o sangue
fumegou na ponta de seus dedos, ouviu, ao longe, um grito imenso e
dilacerante arrebentar de seu corpo. Sentou-se de cócoras e chorou.
Depois
parou. Sentiu o Cerra-Dente fitando-o; virou-se de pronto. A cabeça
do bicho estava estendida na horizontal, pousando sobre as patas
dianteiras. Seu olhar era direto, amplo e totalmente indiferente.
Lentamente, os olhos começaram a se embaçar, a se cobrir de uma
película, a se perder por trás de um verniz prateado e opaco; da
cor do céu antes de chover, tal como a parte de trás de um espelho.
Miúdo
ficou de pé, foi até o corpo do porco, pegou a ferramenta no seu
bolso de trás e, cortando a cerca, soltou o pé do animal. O
corpo, imenso e malicento, rolou de lado. Miúdo ajoelhou-se ao lado
dele e, delicadamente, tocou-lhe o olho esquerdo, deixando uma
impressão digital leve e sangrenta sobre a superfície enevoada. O
porco não piscou. Miúdo moveu sua mão para baixo e apertou a palma
firmemente nas costelas do porco, bem atrás do ombro. Não sentia o
coração bater debaixo das cerdas duras e ásperas sob sua mão
úmidas. Por um instante, pensou sentir um movimento interior, uma
pulsação abafada, mas não tinha certeza. Talvez uma última
convulsão nervosa; o ligeiro movimento muscular involuntário que
dura além da morte. Então, tornou a sentir, dessa vez com certeza,
e cuidadosamente começou a mover as mãos sobre o corpo do animal,
procurando a fonte da pulsação.
Um
palmo acima do pênis, na parte inferior das costelas, sentiu um
movimento regular. Pôs as duas mãos na barriga nua e apertou
suavemente. Sentia nas mãos uma pulsação regular, não os espasmos
esporádicos das tripas. Rolou o Cerra-Dente
de costas, suas pernas já se
enrijecendo, salientando-se desajeitadamente para o ar, e então
encostou a cabeça na barriga. Sentiu a pulsação regular ressoando
nos ossos do seu rosto.
Apoiando
o corpo do porco em sua perna, pegou o canivete e abriu a lâmina
longa e fina que usava para destripar animais. Começou o corte pelo
osso pélvico e prosseguiu ao longo da parte ao lado do pênis, e
para cima, até o esterno, com sangue espirrando no caminho. Quando
deixou o porco a tornar a cair de lado, as tripas se esparramaram,
livres. Entre os espirais das tripas quentes, havia um saco
membranoso, fino, liso, laranja-sangue, latejando. Habilmente, usando
apenas a ponta da faca, Miúdo fez uma incisão e abriu.
Dentro,
divisou o que sua mãe tinha visto brilhar no fundo do lago: um ponto
de luz – intenso, intenso, regular e denso. Dividia-se em dois. Em
quatro. Oito. Começou a rodopiar enquanto instantaneamente se
multiplicava através da trajetória ofuscante da forma em direção
a alguma nova coerência, o arco de energia transformada em matéria,
o papel branco de um pergaminho se desenrolando, brilhando ao sol.
A
luz rodopiante, como que consolidada ou absorvida, desvaneceu-se na
forma de um patinho. Fup se sacudiu, libertando-se da membrana
pegajosa, abanando as asas molhadas enquanto uns poucos e leves
grasnados experimentais. Crescendo a cada momento, continuou a
adquirir penugem sob o olhar atônito de Miúdo; crescida, emitiu uma
rajada triunfante: QUAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ-UAQ.
Quando
Miúdo tentou tocá-la, Fup explodiu num voo, direto para cima, como
seria de se esperar de um pato de lagoa, numa explosão de água e
asas. Miúdo berrou. Fup estabilizou o voo e convergiu para o leste,
grasnando alegremente. De modo abrupto, surpreendentemente graciosa
para o seu volume, fez uma curva, saiu do vento, e
iniciou o caminho de volta.
– Fup!
Fup! – berrou
Miúdo para ela, acenando-lhe com os braços enquanto ela passava.
Ela
fez uma manobra ascendente e curva, e voltou circulando ao seu redor.
De repente, dobrou-se como se tivesse levado um tiro e mergulhou
alguns metros antes de tornar a abrir as asas, grasnou freneticamente
enquanto fazia uma curva, precipitando-se,
e então parou de emitir ruídos e começou a se elevar por cima
dele, num espiral perfeito que se abria. Miúdo ficou parado,
arraigado ao chão, apalermado, contemplando-a enquanto desaparecia
no céu.
Vovô
Jake, acordado de supetão pelo tiro, dera um pulo e saíra correndo,
de ceroulas, seguin do os gritos de dor de Miúdo até uma colina
acima da cerca. Chegara ao topo da colina no momento em que Miúdo
tinha acabado de destripar o Cerra-Dente, e permanecera ali, pregado
ao chão, enquanto Fup aparentemente ressuscitava de dentro do corpo
do porco e começava sua ascensão em espiral. Jake olhou, em transe,
murmurando consigo mesmo, sem parar:
– Puta
que pariu, não acredito –
e no entanto acreditava de
verdade.
Quando
a ave desapareceu no céu, ele começou a gritar para Miúdo, mas
este estava de gatinhas no chão, procurando os restos de Fup. Tinham
desaparecido: nem uma pena chamuscada, nem um fragmento de carne. Não
havia traço dela.
Dividido
entre a gratidão e o terror, Miúdo deu um giro e correu para a
cerca. Parou em frente a uma estaca de sequoia, travou as mãos num
só punho e golpeou, com todo o seu peso. O golpe rompeu a estaca ao
nível do chão – mas
seu talento de construtor de cercas era tal que a tensão dos arames
a segurou, fazendo-a vibrar sem sair do lugar. Puxou violentamente o
arame até as mãos ficarem escorregadias de sangue, gritando:
– Aí
está você! Vai, passa. Vai. Vai, passa… –
até que a dor se reduziu o
suficiente para se lembrar da ferramenta, e então usou o cortador
para seccionar o arame, cada fio retesado sibilando ao passar por
ele, como o estalar de um nervo rompido.
Quando
cortou o último fio, a estaca suspensa chicoteou para o outro lado,
quase atingindo vovô, cuja
presença ainda não notara, e chegando bastante perto para que o
velho tivesse que mergulhar na direção contrária, por puro
reflexo. Ainda no chão, vovô berropu:
– Com
os diabos, Miúdo, chega disso. Veja se recobra o juízo, filho.
Podia ter-me cortado feito ovo cozido.
Ouvindo
sua voz, Miúdo largou a ferramenta e correu, soluçando, levantou o
avô e o abraçou fortemente, as pernas magras de Jake metidas nas
ceroulas, chutando o ar. Abraçaram-se por um bom tempo. Miúdo
chorando, vovô Jake consolando-o:
– Está
tudo bem, filho, tudo, bem; pode chora –
e ao mesmo tempo lhe batia
levemente nas costas com os braços ossudos, e então caminharam de
volta para casa, a fim de
tomarem um gole de uísque: um gole que, segundo vovô, tinha um
destino glorioso, pois era totalmente necessário e merecido até a
última gota.
Jim
Dodge, in Fup
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