Estavam
na casa de campo, ele e a mulher. Iam todos os fins de semana. Era
uma casa grande, rústica, copiada de revista americana, e afastada
de tudo. Não tinha telefone. O telefone mais próximo ficava a sete
quilômetros. O vizinho mais próximo ficava a cinco. Eles estavam
sozinhos. A mulher só ia para acompanhá-lo. Não gostava da casa de
campo. Tinha de cozinhar com lenha enquanto ele ficava mexendo no
jardim, cortando a grama, capinando, plantando. Foi da janela da
cozinha que ela viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada,
como se a enxada tivesse lhe dado um choque. Ela correu para a porta
da cozinha e gritou:
— São
as dores?
Ele
só pôde fazer “sim” com a cabeça. Ela foi buscá-lo. Trouxe-o
para dentro de casa, amparando-o a cada penoso passo. Ele suava
muito. Cheirava à terra. Ela perguntou:
— O
remédio está com você?
Ele
disse que não. Foi mais um grunhido. Subiram, a custo, os dois
degraus da porta da cozinha. Ele não quis ir para a cama. Quis ficar
na cadeira de vime da cozinha. Ia passar.
— Onde
é que está o remédio?
Ele
fez um gesto que queria dizer “por aí”. Ela insistiu, já em
pânico:
— Onde
foi que você botou o remédio? Com a mesma mão ele pediu tempo para
pensar. Onde tinha posto o remédio? Ela não esperou. Foi revistar o
casaco dele, pendurado no armário, perto da entrada. Não encontrou
o remédio. Correu para o quarto deles. Ele tinha atirado tudo que
trouxera da cidade — livros, revistas, alguns papéis do escritório
— em cima da cama. Procurou nos bolsos da calça que ele também
jogara na cama. O remédio não estava ali. Ela voltou para a
cozinha:
— Onde
é que você pôs o remédio?
Ele
tentava reconstruir, mentalmente, tudo o que fizera ao chegar à casa
no dia anterior. Desci do carro. Abri a porta da frente. Fui direto
para o nosso quarto. Atirei os livros, as revistas e os papéis em
cima da cama. Gisela estava embaixo dos lençóis, nua, só a sua
cara sorridente para fora. Mas o que é isso? Não tinha ninguém
embaixo dos lençóis. Ele fora ajudar a mulher a abrir as janelas.
Depois... Depois o quê? Voltara para o carro e pegara os pacotes de
comida. Levara para a cozinha. Saíra pela porta da cozinha e fora
ligar a chave da luz que ficava do lado de fora. Vira o seu pai no
meio do gramado, de costas para ele, chorando. Claro que não vira.
Seu pai morrera antes de eles construírem a casa.
— Tente
se lembrar! — gritou a mulher, assustada com a dor que via no seu
rosto.
— Estou
tentando. Olhe no carro.
Ela
foi olhar no carro. Procurou no porta-luvas e no chão. Enfiou a mão
dentro dos bancos. Nada. Voltou para dentro da casa e começou a
abrir gavetas. Gritou para a cozinha:
— Você
tem certeza que trouxe?
— Tenho.
Tenho! — gritou ele, impaciente porque ela interrompera a sequência
do seu pensamento. Troquei de roupa. Atirei as calças da cidade em
cima da cama. — Procure nas minhas calças, no quarto!
— Já
procurei! — gritou ela.
A
dor estava aumentando. Ele precisava organizar seu pensamento. Biguá,
Bria e Jaime. O quadrado da hipotenusa. Calma, calma. Botei minha
roupa de jardineiro. O remédio devia estar junto com as coisas de
banho que a mulher sempre trazia numa sacola de plástico. Bauer, Eli
e Bigode.
— A
sua sacola de plástico.
— Eu
nunca trago o remédio na sacola. Você é que traz com você.
— Deve
ter caído no chão.
— A
dor não está passando?
— Não.
Ela
correu para o quarto e começou a engatinhar. O remédio devia ter
caído do bolso quando ele tirara as calças. Ela procurou embaixo da
cama. Nos cantos. Atrás do armário. Voltou para a cozinha. Estava
com a cabeça atirada para trás.
— Não
melhorou?
— Mais
ou menos... Mas não tinha melhorado.
— Pense!
Ele
tentou limpar a cabeça. Dar uma varrida no cérebro. Moldá-lo.
Comandá-lo. Fazê-lo pontiagudo e preciso. Campidoglio. Mas que
Campidoglio? O remédio. O remédio. O cérebro era como o pau,
impossível de controlar. Gisela, Gisela. Emplastro de Vick Vaporub.
As caixas de pó da sua mãe. O Vingador no rádio. Buscapé. Quem é
que usa as cuecas do Fiuza? Era como se ele quisesse enxergar alguma
coisa e fosse atrapalhado por nuvens, teias, fios de açúcar, o
cheiro da loção do seu pai, fios de açúcar, o parque, seu pai no
meio do gramado, de costas para ele, tentando segurar o choro e não
conseguindo, pipoca, puxa-puxa, a volta para casa no carro, de noite,
no colo de quem, de quem? O cheiro de madressilva.
— Eu
vou até a cidade comprar o remédio.
— Não
deve ter...
— Eu
vou até lá. Como é o nome do remédio?
Oswaldo
Baliza. Não, esse era o goleiro do Botafogo. Tanta coisa inútil. Um
bom martíni deve ser mexido, nunca sacudido. “Laura” era a Gene
Tierney. O nome do remédio. Concentre-se. Caixinha branca, tarja
vermelha. Começa com “T”. Thuran Bey. Não. “Triste é cantar
na solidão...” Talmud. Trilateral. Tesão. (Gisela, Gisela!)
Bauer, Ruy, não Eli, e, e...
— Noronha!
— O
quê?
— Não.
Começa com “t”...
A
mulher disse que não importava. Na farmácia deviam saber. Ou então
ela procuraria um remédio. Onde é que estavam as chaves do carro?
— Deixe
eu pensar...
— Ai
meu Deus...
Ele
procurou as chaves do carro dentro do cérebro. Dentro de uma caixa
de pó, redonda, da sua mãe. “Seu pai se suicidou...” Fios de
açúcar. Biguá, Bria e Jaime. Procurou dentro de uma caixa de
charutos do avô que tinha transformado em projetor. Onde estão as
chaves do carro? Dentro das latas com sua coleção de tampinhas de
garrafa não estavam. Atrás dos livros na prateleira do pai, onde
ele um dia descobrira um livro pornográfico, também não. A mulher
agora segurava o seu rosto entre as mãos.
— Pense!
As chaves do carro!
Era
preciso se organizar. O nome dos seus filhos. Fernando e Felipe. O
nome dos netos. Deixa ver. 31-33... Não, esse era o número do
telefone da Gisela. 4-16-7. A combinação do cofre. 0086... Não,
seu CPF não interessava. As chaves do carro! Ásia, África, Europa,
América e Oceania. As treze capitanias hereditárias. Amapola,
lindíssima Amapola. Aquela vez em Roma, no Campidoglio, em que...
Não era isso! As chaves do carro. O remédio. O nome do remédio.
Estava com o cérebro entulhado. As coisas que a gente acumula!
Miltinho e Helena de Lima. As armas e os barões. O Gordo e o Magro.
Os negócios. Os negócios mataram seu pai. O sapo que um dia entrara
na cozinha da casa de campo. Um sapo marrom, latejante. C’est si
bon. As ruas de Copacabana, Prado Júnior, Hilário de Gouveia.
Ou Ronald de Carvalho? Orca, a baleia assassina. Homem Bala. Namor, o
Príncipe Submarino. Começavam a brotar caras. Na busca das chaves
tinha perfurado um cano de caras. Colegas da escola. Professores. O
tenente Bandeira. O cérebro alagado de caras. Delírio. Agora mesmo
é que não ia encontrar mais nada. Gisela. O tio Tonico! Einstein.
Rita Pavone. Ouviram do Ipiranga. Tentaste flertar alguém. Tudo
menos as chaves!
A
mulher procurava, de novo, nas gavetas. Despejou o conteúdo da sua
bolsa no meio da sala. Foi ao banheiro e despejou no chão o que
tinha na sacola de plástico. Voltou para a cozinha.
— Passou
a dor?
— Está
passando.
Não
estava. Estava piorando. Ela disse que iria a pé até a casa mais
próxima, buscar ajuda. Ele gritou:
— Não!
Não
queria ficar sozinho com as suas memórias. Seu cérebro estava
tentando matá-lo. Era isso. Estava sendo assassinado por
banalidades. Se lembrara de coisas de quando tinha 4 anos de idade e
não se lembrava onde pusera as chaves do carro. Ou o remédio. Era
tudo química, ele sabia. Enzimas, células, combinações celulares.
Nada pessoal. Quanto mais se pensava sobre pensar mais havia sobre o
que se pensar. O coração era o que mantinha vivo o mecanismo que
mantinha o coração vivo. A morte é a última coisa que eu quero
que me aconteça. Alguma coisa no seu cérebro não queria que ele
encontrasse o remédio. Ele procurava as chaves do carro e a salvação
e encontrava o gosto da papinha de frutas que comia quando ainda não
tinha dentes. Era uma conspiração. Veja ilustre passageiro. Todas
as coisas sem importância armazenadas em 50 anos de vida agora
entulhavam os corredores. Sua ânsia de viver queria matá-lo.
Emergência! Emergência! Desobstruam todos os acessos. Isto não,
repito, NÃO é um treino. O remédio. As chaves. Sua mulher. Como
era mesmo o nome dela? Os Zugspitzartisten. Por que diabo estava se
lembrando dos Zugspitzartisten? Onde estava sua mulher?
Ela
saíra. Devia estar correndo pela estrada. Ela que tinha horror de
barro e de mato. Ele ia morrer. Sério, agora. Era uma armadilha. Eu
mesmo me atraí para aqui, comprei esta casa solitária com meu
próprio dinheiro e esqueci onde botei os remédios e as chaves do
carro. Devia ter desconfiado de mim mesmo quando fiz questão de não
instalar telefone. Seu pai dera um tiro na memória. Quem se mata,
mata a sua mortalidade. O suicídio e a masturbação são
manifestações clandestinas de autogratificação que o sistema não
previa. Como as hortas privadas nos regimes comunistas. Biguá, Bria
e Jaime. Eli, Danilo e Bigode. O homem é o único animal que se
mata. O homem é o único animal que coleciona figurinha de bala. O
homem é o único animal que faz caretas para a sua própria câmera.
O homem é o único animal que lambe os pés de Gisela. A dor
aumenta. Eu vou morrer. Meu cérebro, purgado pelo terror,
transforma-se. Torna-se grave e agudo. Está pronto para a última
revelação. Sério, agora. O que nós não podemos conceber é não
ter a memória da nossa morte. É não poder pensar nela depois. Não
poder relembrar com os amigos no velório. Passamos a vida inteira
nos preparando para a nossa morte e quando ela vem não podemos
assistir. A morte não tem depois. Isto não é um treino. Meu pai se
matou por causa dos negócios. Paguei suas dívidas, reergui os
negócios, tenho nome e casa de campo. Mas ele deve, um dia, ter
procurado alguma coisa no fundo do cérebro e dado com aquele horror,
como um sapo latejando. O homem é o único animal que soluça
escondido. Se matou porque era mortal. Porque o seu filho era mortal.
Sério,
agora. Chega de banalidades. Já que eu vou morrer, que venha a
última revelação. No fim até os tolos são trágicos. Até o
caramujo, na hora da sua morte, participa do grande drama da
existência. O homem enche a cabeça de bobagens porque não
suportaria a única ideia que traz no fundo, a de que vai acabar. O
cérebro é um tubarão. Não pode parar senão vai para o fundo. Mas
agora eu quero. Pousar no fundo. Atravessei camadas de fios de açúcar
para chegar ao meu centro. Chega de desconversa. Não sinto mais dor.
Talvez já tenha morrido. Estou no fundo. Sim, sim. É uma clareira
numa floresta escura. Chegou a hora. Vejo cipós reluzentes. Muita
umidade. Bem no meio da clareira, no centro do centro, há uma pedra
grande. Maior do que eu, seja lá quem eu for. A pedra é escura. Há
alguma coisa escrita em letras brancas. Enfim, a explicação de
tudo. Me aproximo, como se boiasse. No fim todo homem tem direito,
pelo menos, à solenidade. Voltei ao meu começo. A primeira pedra. A
revelação. Já posso ler as letras brancas. Sério, agora.
Na
pedra está escrito: “Casas Pernambucanas”.
Depois
ficou tudo escuro.
Luís
Fernando Veríssimo, in Os últimos quartetos de Beethoven
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