terça-feira, 22 de setembro de 2020

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          Há uma loja abandonada na esquina sudeste da Broadway com a rua 53 em Lorain, Ohio. Ela não se confunde no fundo cor de chumbo do céu nem se harmoniza com as casas de estrutura cinzenta e os postes pretos de telefone ao seu redor. Pelo contrário, insinua-se no olho do passante de uma maneira ao mesmo tempo irritante e melancólica. Os visitantes que atravessam de carro a cidade minúscula perguntam-se por que não foi demolida, enquanto os pedestres, que moram na vizinhança, simplesmente desviam o olhar quando passam.

Houve época, quando a construção abrigava uma pizzaria, em que só se viam adolescentes indolentes agrupados na esquina. Reuniam-se ali para apalpar a virilha, fumar e planejar estripulias. Tragavam fundo a fumaça dos cigarros, para que à força ela lhes enchesse os pulmões, o coração, as coxas, e contivesse os frêmitos, a energia da sua juventude. Moviam-se lentamente, riam lentamente, mas batiam a cinza do cigarro com rapidez e frequência excessivas, expondo-se, a quem se interessasse, como novatos no hábito. Mas, bem antes de eles chegarem com seus berros e exibições, o prédio foi alugado a um padeiro húngaro, modestamente famoso por seus brioches e pãezinhos com sementes de papoula. Antes, havia lá uma imobiliária, e, antes disso ainda, uns ciganos usaram o lugar como base de operações. A família cigana deu à grande vitrine mais distinção e caráter do que nunca. As garotas da família revezavam-se para sentar entre os metros de veludo e os tapetes orientais que pendiam da vitrine. Olhavam para fora e de vez em quando sorriam, davam uma piscada ou chamavam com acenos — só de vez em quando. Na maior parte do tempo, olhavam, enquanto os vestidos trabalhados, de mangas e saias compridas, ocultavam a nudez que lhes aparecia nos olhos.

A população daquela área variava tanto que provavelmente ninguém se lembra de muito, muito tempo atrás, antes da época dos ciganos e dos adolescentes, quando os Breedlove moravam ali, aninhados na parte da frente da loja. Apodrecendo juntos no entulho conseguido da veneta de um corretor de imóveis. Eles entravam e saíam de mansinho daquela caixa de pintura cinza descascada, sem criar agitação no bairro, som na força de trabalho ou problemas no gabinete do prefeito. Cada membro da família em sua própria cela de consciência, cada um fazendo a sua colcha de retalhos da realidade — coletando fragmentos de experiência aqui, pedaços de informação ali. A partir das minúsculas impressões que compilavam uns dos outros, criaram uma sensação de fazer parte do lugar e tentaram se arranjar com o que viam um no outro.

A disposição dos cômodos era a mais despida de imaginação que um proprietário grego imigrante conseguira conceber. A grande área da “loja” era dividida em dois aposentos por tábuas de madeira compensada que não chegavam ao teto. Havia uma sala de estar, que a família chamava de sala da frente, e o quarto, onde todos de fato viviam. No aposento da frente havia dois sofás, um piano de armário e uma minúscula árvore de Natal artificial que estava ali, armada e coberta de poeira, fazia dois anos. O quarto tinha três camas: uma estreita, de ferro, para Sammy, de catorze anos, outra para Pecola, de onze, e uma de casal, para Cholly e a sra. Breedlove. No centro do quarto, para a distribuição uniforme de calor, erguia-se um fogareiro a carvão. Em torno das paredes estavam colocados baús, cadeiras, uma mesinha de canto e um “guarda-roupa” de papelão. A cozinha ficava no fundo do apartamento, um aposento separado. Não havia banheiro, somente um vaso sanitário, inacessível aos olhos, ainda que não aos ouvidos, dos inquilinos.

Não há mais o que dizer dos móveis. Tendo sido concebidos, fabricados, despachados e vendidos em vários estágios de desconsideração, cobiça e indiferença, nada havia neles a descrever. Envelheceram sem jamais terem se tornado familiares. As pessoas os possuíam, mas sem conhecê-los. Ninguém tinha perdido uma moeda ou um broche embaixo das almofadas de um sofá e lembrado do lugar e da época em que os perdeu ou achou. Ninguém tinha exclamado “Mas estava aqui comigo ainda agora! Eu estava sentado ali, conversando com...”, ou “Achei! Deve ter escorregado enquanto eu dava comida para o bebê!”. Ninguém tinha dado à luz numa das camas — nem se lembrava com carinho dos lugares onde a tinta estava descascada porque o bebê, quando aprendeu a se levantar, a tinha arrancado. Nenhuma criança econômica tinha guardado um pedaço de chiclete embaixo da mesa. Nenhum bêbado feliz — um amigo da família de pescoço gordo, solteiro, sabe, mas, meu Deus, como ele come! — sentara ao piano e tocara “You are my sunshine”. Nenhuma garota olhara para a minúscula árvore de Natal lembrando de quando a havia decorado, ou perguntando-se se aquela bola azul iria parar no lugar, ou se ELE voltaria para ver a árvore.

Não havia recordações entre aqueles móveis. Certamente nenhuma recordação a ser acalentada. Ocasionalmente uma peça provocava uma reação física: um aumento de irritação ácida no intestino, uma leve transpiração na nuca, quando as circunstâncias que cercavam o móvel eram lembradas. O sofá, por exemplo. Fora comprado novo, mas chegara com um rasgão nas costas. A loja não assumiu a responsabilidade...

Olha aqui, amigo. Estava em ordem quando eu pus no caminhão. A loja não pode fazer nada depois que a mercadoria está no caminhão...” Hálito de Listerine e de cigarros Lucky Strike.

Mas eu não quero um sofá rasgado se foi comprado novo.” Olhos súplices e testículos apertados.

Azar seu, amigo, azar seu...”

Pode-se odiar um sofá, claro — isto é, se é possível alguém odiar um sofá. Mas não interessava. Ainda era preciso juntar 4,80 dólares por mês. Tendo que pagar 4,80 por mês por um sofá que já veio rasgado, em mau estado e que humilhava você, não dava para sentir alegria em tê-lo. E a ausência de alegria cheirava mal, permeava tudo nele. O mau cheiro impedia de pintar as paredes de madeira compensada, de comprar para a poltrona um pedaço de tecido que combinasse, e até de costurar o rasgão, que virou um talho, e depois uma fenda escancarada, expondo a estrutura barata e o estofamento mais barato ainda. O mau cheiro eliminava o descanso de um sono dormido nele. Impunha dissimulação ao amor feito sobre ele. Como um dente dolorido que não se contenta em latejar sozinho mas tem que difundir sua dor para outras partes do corpo, dificultando a respiração, limitando a visão, perturbando os nervos, um móvel odiado produz um mal-estar, uma irritabilidade que se impõe na casa inteira e limita o prazer das coisas desvinculadas dele.

A única coisa viva na casa dos Breedlove era o fogareiro a carvão, que tinha vida independente de tudo e de todos. Apagava ou acendia a critério próprio, embora a família o alimentasse e conhecesse todos os detalhes de manutenção: borrifar, não umedecer, não exagerar na quantidade... O fogo parecia acender, baixar ou morrer de acordo com seus próprios esquemas. De manhã, porém, sempre decidia apagar.

Toni Morrison, in O olho mais azul

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