quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A opção

Disse o professor Danilo: “Existem pelo menos quatro tipos de sexo: o jurídico, o anatômico, o gonádico e o psicológico. As palavras macho, fêmea, homem, mulher são meros símbolos representando uma realidade que não existe”.
Danilo correu os olhos pela sala.
Este caso é diferente de um outro que trouxe aqui anteriormente. Mas o problema era o mesmo: qual o sexo que nós vamos determinar, escolher para o paciente? Sobre aquele caso eu não tinha dúvidas, porque ele não tinha dúvidas. Você se lembra, Fernando?”
Fernando: “Era um garoto inteligente. Me disse: ‘Se resolverem que vou ser mulher eu me mato’”.
Danilo, selecionando slides: “Ele me disse a mesma coisa. Dizia isso para todo mundo. Sabia o que queria. Psicologicamente era homem; juridicamente era mulher. Chamava-se Nair, que é um nome mais ou menos neutro”.
Ele sabia para que tinha vindo aqui?”
Acho que os pais disseram.”
Possivelmente uns imbecis”, Duarte rindo.
E Mírian, envolta em suas sombras (mundo pequeno este!).
Possivelmente. Mas você concorda que fizeram uma coisa inteligente registrando o garoto como Nair; caso se chamasse Marlene, teria problemas quando foi para o colégio, de calças. Ele exigiu calças, e os pais concordaram. Talvez não fossem tão imbecis.”
Ele inventava coisas. Ajudou a nossa, a sua...”
A nossa...”
A nossa decisão”, disse Fernando.
Este caso é diferente”, Danilo. “Ela não.”
Ela?”, Duarte. “Isso significa —”
Sei onde você quer chegar. Não significa coisa alguma. Não posso dizer it, ou das, a língua não deixa. E se deixasse também não usaria.”
A última flor do lácio inculta e bela...”, disse Duarte. “O doutor Roux —”
O doutor Roux fica para depois; você quer falar sobre o último livro que leu, mas agora não.”
Eu quis estabelecer —”
Depois, depois. Mas perdi: onde é que eu estava mesmo?”
Esse caso é diferente...”
Obrigado. Esse caso é diferente. Mas vamos por partes.” Danilo projetou o primeiro slide. “Aqui estão os órgãos genitais externos: pênis e saco escrotal. O saco escrotal não tem testículos. O uretograma provou a existência de uma estrutura vaginal. É um caso de contradição entre a morfologia genital externa e a gônada; a biópsia da gônada mostrou tecido ovariano normal. O teste da cromatina, assim como a insuficiente elevação do 17-cetoesteroide e ausência de depressão pela cortisona, não nos autorizam a dizer, positivamente, que se trata de um caso de hiperplasia suprarrenal. Por outro lado, não se trata de um caso de vero hermafroditismo, pois não há demonstração de tecido testicular, conquanto exista o ovariano.”
Qual o sexo do paciente? Juridicamente?”, Fernando.
Feminino. Morfologicamente, masculino; gonadicamente, feminino. Psicologicamente, bem, este é o problema que faz o caso diferente: nós não sabemos”, professor Danilo.
Quantos anos tem o paciente?”
Nove. Esse é outro problema, dentro do problema. A alteração da genitália através da correção cirúrgica deve ser feita cedo.”
Mírian: (Devem, mas não fazem. Mas podiam, Danilo podia ter feito. Pergunto por que não fez, não sabia?, fugiu da dificuldade, não quis correr o risco da alternativa de decifrar ou ser devorado? Devia lhe dizer isso. Ah, ah! Antes perguntaria — sabe quem eu sou? Lembra-se de mim? Sofre agora uma parte que seja do meu sofrimento...)
Quer dizer que este caso nós poderíamos cirurgicamente fazer um homem ou uma mulher, um ou outro, se quiséssemos?”, perguntou Duarte.
Você formulou a pergunta imprecisamente. Mas sei o que você quer perguntar. A resposta é sim. Se soubéssemos.”
Como?”
Digamos que depois de um diagnóstico cuidadoso nós optássemos pelo sexo feminino. Nesse caso faríamos a amputação pura e simples do pênis e do saco escrotal. A vagina seria construída. Seria fácil. É mais fácil construir uma genitália feminina do que um aparatus genital masculino. Não é difícil abrirmos um orifício perineal e produzirmos uma vagina adequada.”
E se quiséssemos fazer um homem?”
Íamos para a laparotomia; extirpávamos útero e ovários. E como o saco escrotal do paciente está vazio, colocaríamos nele dois testículos de matéria plástica. Para fazê-lo feliz. Um homem para ser feliz precisa ter uma genitália normal. Por isso os testículos de plástico, que não permitiriam espermatogênese, mas dariam uma sensação de normalidade.”
Então era só jogar a moedinha para o ar: cara, mulher, coroa, homem”, Duarte.
Na medicina você não joga moedinhas para o ar.” (É um palhaço. Que faço aqui, ensinando esse palhaço? Devo ensinar minha Arte, como quer Hipócrates...?) “Você lê muito, já leu Hipócrates?”
Não está um pouco ultrapassado? E por que não Galeno?” (Não leu o Roux, vem para cima de mim com Hipócrates.)
Galeno também serve. Mas voltando a Hipócrates, que você não leu, ele dizia mais ou menos isso: a medicina, entre todas, é a mais nobre das Artes, mas, devido à ignorância daqueles que a praticam, está atrás de todas as outras. Tais pessoas, diz ele, são como aquelas figuras introduzidas no teatro que têm a forma, a roupa e a aparência pessoal de um ator, mas não são atores; assim, também médicos existem muitos em título, mas poucos na realidade”, professor Danilo.
Estou de pleno acordo”, Duarte.
Fernando: (O que que há com Danilo? Sempre que a Mírian vem ele fica assim, amargo, nervoso, querendo brigar.)
Mas não devia”, disse Danilo. (Não adianta continuar. E terá esse cretino o amor pelo trabalho, e a perseverança que permitirão que o ensino, o meu ensino, propicie frutos abundantes? Estarei sendo emocional? Esse sujeito me cansa.)
Voltando ao assunto. Esse caso é difícil, porque o paciente tem nove anos e o gender role é para nós indefinível. Nós não sabemos o que ele é psicologicamente.”
O paciente não diz o que ele acha que é?”
Ele não sabe o que é. O papel masculino ou feminino que a criança assume é alguma coisa adquirida durante o curso de todas as experiências e transações do crescimento. Chamo a atenção de vocês para as observações da doutora Joan Hampson, num folheto que distribuirei, sobre o gender role. O que somos em matéria de sexo inclui o erotismo, mas é mais do que isto: inclui, por exemplo, a roupa, o nome, o corte de cabelo, a postura, o gesto, os maneirismos, afetações, devaneios, ilusões, ambições para o futuro, mas é também mais do que isso. É o que os outros acham que nós somos; é aquilo que nós achamos que somos — e é, ainda, mais do que isso. Algo impresso irreversivelmente que nós precisamos descobrir, pois o ser humano não pode viver com essa contradição que vemos no nosso paciente. Existe a contradição social, moral, a de caráter: a essas o homem sobrevive sem maior vicissitude. Mas à contradição sexual é difícil resistir: é impossível ser feliz, com ela. Essa matéria de sexo — esta palavra é semanticamente imprecisa mas não há outra — o ser precisa ser definido.”
O que é preciso para um homem ser feliz, neste aspecto?”, Fernando.
Ter um falo adequado; acreditar que é homem; acreditar que os outros acreditam que ele é homem; ter orgasmo, e, mais importante, acreditar que pode fazer uma mulher ter orgasmo.”
E uma mulher?”
Ter uma genitália adequada; acreditar que é mulher; e acreditar que pode, ou poderia, ter filhos.”
Quer dizer que para ser feliz o ser humano precisa estar em paz com as suas ilusões?”, Duarte.
Precisamente”, Danilo.
Mírian: (E quem não tem ilusões? Para com elas viver em paz ou em guerra? E quem não tem dúvidas por falta de certezas?)
Ser macho e fêmea simultaneamente é impossível, se não se é personagem de mitologia grega — e aí só se verifica o aspecto erótico da dualidade — ou então ostra, ou drosófila melanogaster —”
Onde o erotismo não se verifica”, Duarte.
É”, Danilo. (O taquipsiquismo desse cara vai empulhar muita gente; pensarão que é inteligência. A minha paciência se esgota; estou ficando velho; crio cismas, preconceitos? Fico cada vez mais cônscio de minha ignorância e isso me desagrada. Mas não desagradava, quando descobri isso, até gostava e dizia: quanto mais se sabe menos se sabe, repetindo outros, que porém, como eu, na verdade diziam: eu sei muito, ainda falta alguma coisa mas chego lá. Não chego; nem sei o que falta, ao certo; nem sei aonde chegar. Queria ficar quieto, num canto, pensando sem descobrir coisa alguma; nada de diagnósticos, comunicações à Academia, nada de cumprir meu papel sociométrico. E meus filhos? Esses estranhos a quem estamos presos pela inércia do hábito. O ajudante do consertador de televisão me comunica que teve um filho e eu, dentro deste contexto de erros e equívocos — a posse da televisão, e, ainda pior, o conserto da televisão —, lhe pergunto se ele preferia menino ou menina, e o sujeito me responde que queria um filho; e eu pergunto por que e ele diz que um filho é melhor que uma filha, que o filho continua a obra do pai.)
Já que tem de ser uma coisa, o que o senhor decidiu que ele vai ser?”, Duarte.
Ainda não sei. Alguma coisa tem que ser feita. Alguma coisa tem sempre que ser feita”, Danilo.
Como é que o paciente se veste?”, Fernando.
Como mulher.”
A convenção jurídica...”
Mas urina em pé.”
Ah...”
Seus cabelos são longos...”
Ainda a convenção jurídica.”
...mas ele sonha que é homem...”
Ah...”
...mas nos seus sonhos não existem mulheres, nem outros homens, só ele, e se parece com o Moisés de Michelangelo, cuja figura viu num livro de sua casa.”
Com barbas e tudo?”
Tudo.”
Interessante...”
Tem medo de raios e trovões. Mais de trovões... Não brinca com bonecas, nem revólveres. Gosta de ler.”
O quê?”
Sabatiní, Delly, Karl May, mistura Tarzan com a Filha do Dono do Circo. Lê muito. Não tem amigos ou amigas. É um ser quieto e tímido.”
E os pais?”
Deixam-no em paz e ele, ela, o paciente, não incomoda ninguém. É obediente.”
Foi examinado por psiquiatras?”
Eles dizem que não há nada errado com o paciente, a não ser um certo excesso de introversão. Isso hoje. Temem o futuro, no entanto. Mas nada decidem, fazem hipóteses, pulam de Freud para Horney para Adler, e no fim querem saber o que diz o laboratório, o homem das lâminas. Queriam ter tempo, observar mais, mas não há tempo; no caso, o tempo é um inimigo, um veneno para o ser humano. O medo é um veneno, e o ódio, e a frustração e a dúvida, e a estricnina. Mas o pior de todos os venenos — sempre — é o tempo. Estou parafraseando Emerson.”
Duarte: (Não citaria Sartre nunca. Conheço esse tipo de pessoa. Só acredita nos clássicos, os clássicos sobreviveram, passaram o Grande Teste. Quantos anos são necessários? Cinquenta? Einstein fica de fora. Cem? Freud fica de fora. Duzentos? Fora Kant. Trezentos? Isaac Newton riscado. Quatrocentos? Descartes sem chance. Onde é que eles param? Nos gregos.) Duarte sorriu. (Eu também tenho uma cultura clássica. Hum, só sei nomes e datas, mas não tem importância, todo mundo só sabe nomes e datas, e epígrafes.)
Ainda falta alguma coisa para o senhor decidir?”
Depende da definição, que ainda não sei fazer. Passamos a vida fazendo definições: eu, você, e você — você (Mírian). Definimos todas as coisas; definimos o bem e o mal, o falso e o verdadeiro e achamos que somos livres porque podemos definir. Mas ocorre que somos obrigados a definir e porque somos obrigados a definir não somos livres. Essa definição, quanto ao paciente, eu não sei fazer, mas acabarei fazendo-a e direi que não há dúvidas de que se trata de um homem, vamos destruir suas características femininas. Ou vice-versa.”
Fernando: “Tudo que existe tem uma razão de ser. E se nada fosse feito?”
Mírian: (O nada feito já foi feito. Pensa, Danilo, você já esqueceu? Tem tantas marcas assim o meu rosto que você já não vê aquela — aquele — aquilo?)
Você diz... ?”
Se não sabemos o que fazer, nada devemos fazer”, Fernando.
Mas temos que saber.”
Sim. Mas na hipótese de não sabermos é melhor não decidirmos.”
Danilo: “Isto é anti-inteligência, anti-homem.” (E também o descanso, o meu desejo fundo, que minha hipocrisia esconde.)
Mírian, o lápis inteiramente mordido, a sensação de quem rasteja por um túnel negro apertado de ar rarefeito: (Depois de nove meses de vômitos, dores nas costas, inconforto, depressão, cistite, hemorroidas, economia, algolagnia, a última angústia: medo. O da mãe, o do feto, uma passando o medo para o outro; o do feto o grande medo de todos: medo da vida. O da mulher, o medo da morte, vai crescendo insuportável como o de alguém que se afoga — mas a mulher é dura: e ocorre o alívio, feito de libertação e rejeição, como se o feto fosse fezes há longo tempo reprimidas, como uma luz rompendo o duro invólucro de escuridão que a envolvia, provando a crueldade do ser contra o ser, a solidão de todos. Menino ou menina? Galeria Uffizi. A Sala dell’Ermafrodita: reclinado, de olhos fechados, Hermafrodita sonha; seu rosto de cisne deita-se sobre o braço, seu corpo apoia-se sobre o joelho da perna esquerda ligeiramente encolhida. As pernas, e o torso, e as nádegas são feitos de frescor e imortalidade, chegam a ter paladar e som: de sua mãe Afrodite. De seu pai Hermes: um falo macio, adormecido. On voit dans le Musée antique, sur un lit de marbre sculpté, une statue énigmatique d’une inquiétante beauté. Est-ce un jeune homme, est-ce une femme? Une déesse ou bien un dieu? L’Amour, ayant peur d’être infâme, hésite et suspend son aveu. Uma cópia do original de Policles, diz o guia. Me olha: saberá? Menino ou menina? O que dirão para a mãe, que começa a ficar em paz com o que jogou fora, o corpo estranho que expeliu do seu corpo? Ela quer saber. Vamos, Danilo, diga. Diga — não sei, e eles, pai e mãe, que armem o seu segredo; só deles, uma cumplicidade de crime abominável. Dentro do quarto trancado, como se escondendo um cadáver esquartejado numa mala, a mãe muda a fralda do, da, oh! Meu Deus.) O horror se abate sobre o coração de Mírian.
Uiiiiii!” O gemido de Mírian arrepiou os cabelos de Danilo. A sala ficou em silêncio, todos imóveis inclusive Mírian que deitou a cabeça sobre os braços e, em outras circunstâncias, pareceria estar dormindo.
Danilo põe os slides rapidamente numa caixinha. Suas mãos tremem. Ele chegou a uma decisão, e tem pressa.
Rubem Fonseca, in A coleira do cão

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