O
jornalista Humberto Werneck lançou seu O pai dos burros —
Dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago
Editorial). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele
passou quase 40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas
de jornais, revistas, livros. Aquelas palavras que, de tanto
ouvi-las, são as primeiras a aparecer na nossa cabeça, na ponta dos
nossos dedos. É automático. Chegam antes do pensamento. De certo
modo, são as palavras que nos libertam para não pensar. Foram ditas
muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não
provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que “a
vida imita a arte” ou que “o futebol é uma caixinha de
surpresas”. É um dizer que nada muda, é um imenso nada.
Por
que então os clichês são tão populares? Porque são seguros, é o
que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao
repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de
nós, nada sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova
ideia é sempre um risco, não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na
falta de ousadia, o que nos sobra é medo.
Li
todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para conhecer as palavras
das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo que não
sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar
a pensar antes de sair escrevendo — ou falando. Se o jogo de
palavras vier muito fácil, é porque já foi dito tantas vezes que
abriu um escaninho no nosso cérebro. Basta apertar uma tecla
invisível e sai de lá pronto. Não custa nada, nem mesmo um esforço
mínimo. “O tempo é o senhor da razão”, “a esperança é a
última que morre”, “nunca antes na história deste país”...
Os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como
estratégia de marketing.
Há
os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck, e
acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões
que repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa
autodefesa permanente — não apenas diante de outros, mas também
no banco dos réus do nosso tribunal pessoal. Ideias que já testamos
e sabemos que tipo de reação provocam, um repertório confiável de
velhos truques.
Criamos
nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na busca de um
lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos,
infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria
se agarra para não mergulhar no desconhecido, também é fácil
observar que muitos dos que riem não ousam ir além dos
comportamentos clichês em sua própria vida.
Foi
seguindo o fio dessa meada (olha o clichê aí!) que fui me tornando
incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever
sem usar fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos
novos, ser uma parte diferente de mim em cada texto. Nem sempre
consigo. Mas tento me obrigar a tentar. Depois de tantos anos
escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim mesma.
Sei
disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando um
tatu-bola, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com
um pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também
uma não ação. Sei que apenas chegando cada vez mais perto de mim
mesma é que posso alcançar a possibilidade de ser outra. E de fazer
do velho em mim algo novo.
Numa
entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio Pellegrino
disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que
leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode
dizer algo tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral
a uma pergunta que não esperava. E com tanta generosidade para
aquele que o escuta. Suas palavras não machucam porque não foram
pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas acariciam. Foram
pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São como
uma mão que alcança — e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo
em que as pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que
esmagam. A mão que alcança exige mais coragem, porque alcançar é
sempre um risco — e esmagar tem um final previsível.
O
Hélio disse, lá pelas tantas: “Escrever e criar constituem, para
mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem
medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo — e, como tal, exposto
à morte”. Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa
dos clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um
sentido mais amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu
“burrinho”, como ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras
possibilidades de nascimentos que perdemos quando repetimos um
lugar-comum em vez de uma combinação de palavras que só nós
podemos fazer.
Não
porque somos melhores que os outros, mas porque a singularidade do
nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, “se eu morrer, morre
comigo um certo modo de ver”. Ou, na frase genial do menino de oito
anos que li na seção “Quem diria” da Revista da Folha:
“Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no
mundo”. Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a
singularidade do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la
em sua integridade, precisará de muita coragem. Terá de resistir ao
conforto de uma vida de lugar-comum.
Clichês
são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e morreram pela
repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de
sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao
novo é matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um
pouco a cada dia ao matar nossa expressão no mundo. De homens, nos
reduzimos a papagaios. Como naquelas reuniões de empresa em que as
pessoas se digladiam numa guerra de jargões corporativos que nada
dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que assim mantêm o emprego,
seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem pronunciados em
inglês, mais seguras se sentem.
O
mundo das frases feitas serve também para barrar o novo. Quem não
conhece o manual — e é preciso um certo tempo para descobrir que
os jargões só são cascas de palavras e não palavras — é
colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém
— nem o funcionamento do todo — com as palavras mais subversivas
e ameaçadoras para este mundo: as próprias.
Quando
nos expressamos por palavras, temos sempre a possibilidade de nascer.
E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a possibilidade do novo
pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei pensando
nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras.
A gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta
apenas pensar antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É
preciso pensar para viver algo nosso — antes de repetir a vida de
outros.
Do
mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro chavão que
nos vem à cabeça, também é mais fácil — e mais aceito —
viver segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso
que a maioria de nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que
aparentemente já deram certo e não incomodam ninguém. O que seria
o clichê de uma vida de classe média de um brasileiro de hoje?
Vou
arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche. Começar a
falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo balé ou artes marciais
ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney
com a turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês.
Ingressar na universidade. Antes ou depois da faculdade morar um
tempo em Londres. Em algum momento tocar saxofone ou algum outro
instrumento que lembra bares boêmios, com atmosfera noir, de
uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir alguma
coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente
pode expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim
trabalhar, reclamar do trabalho e fazer umas baladas com os colegas
de trabalho e os velhos amigos da faculdade. Descobrir que ser adulto
é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar apartamento, ter um ou
dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de férias bacanas
para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais
recentemente também da África. Não sei bem como continua.
Não
é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito rico, se
for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive,
não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma
pessoa de classe média do início do terceiro milênio. Parece-me,
porém, que não pensamos muito antes de vivermos uma vida
lugar-comum.
Não
pensamos nada quando acordamos pela manhã e seguimos até a noite
uma rotina instituída, mas por quem? Ah, sim, por nós. Não
pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo diferente.
Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua
para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a
necessária honestidade, a vida está mesmo mais perto do que longe
das nossas mãos.
Podemos
viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de conforto e não
ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos tentar
viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos
transforma desde sempre, como descobriu o menino de oito anos, em
alguém em extinção.
E
com isso não falo de uma vida povoada de aventuras grandiosas, mas
das pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá da
sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem
reconhecimento público. A vida que só nós podemos viver, aquela
que busca a singularidade do que é nosso, é aquela que passamos a
vida buscando.
É
também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao descontrole. De
novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector. Ela,
ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta,
suavemente: “Hélio, é bom viver, não é?”. Ele responde, um
vento avançando pelas nossas crenças: “Viver, essa difícil
alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O
começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz
parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo extremamente
precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei
ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos
vazias. Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna
cego — cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com
verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver
se torna mais do que bom — se torna fascinante. Viver bem é
consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos
feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos movimento
sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está
encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem,
para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim
acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido”.
A
vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. Tem
vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos
oferece é isso, vida apenas.
Quando
eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que me esperava era
um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer faculdade
etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no
quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A
falta de sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então
que deixaria o colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que
não deveria estudar, mas porque eu precisava fazer algo para
interromper o fluxo inexorável rumo a uma vida feita de uma sucessão
de frases feitas.
Parar
tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez assustadora para alguém
de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse que iria a
Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui
enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever
— graças a isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na
época, ele estudava Física na Unicamp.
Peguei
um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha, e desembarquei
em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando — e disfarçando
bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã
caçula em sua rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para
Campinas e eu vivi a sua vida por uns dias. Ele morava numa garagem
de carro, nos fundos de uma casa. Em vez do carro, tinha ele. O chão
era de terra, sua cama, que passou a ser a minha cama, era um colchão
em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram guardadas num caixote
de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele estudava
das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção
para as aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais
reuniões de política estudantil. A mesma rotina que ele havia
iniciado com apenas 15 anos. Naquele tempo, sem saber por onde
começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma outra
história.
Na
primeira madrugada que passei na sua garagem-casa, acordei e o vi
ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito pobre e
muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta
se limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor
pela grandeza daquele pouco mais que um menino, solitário diante do
parapeito do mundo. Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto
fingia dormir, que o Zé estava obcecado em se tornar não apenas o
melhor físico que podia ser, mas o melhor homem que podia ser.
Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si mesmo.
Voltei
para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas atrás, quando
escrevi uma coluna sobre nosso afastamento das estrelas, o Zé me
mandou um e-mail sobre sua “visão cosmológica”. Escreveu na
linguagem informal de um irmão escrevendo um e-mail para a irmã:
“Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros
(sub)produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser
para nós, é claro). Nossa posição temporal e geográfica no
universo é totalmente irrelevante. A contrapartida é que somos
capazes de perceber nossa existência (acredito que, em outros
níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí,
o mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!).
Portanto, estamos no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as
nossas adaptações evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar
um ponto de contato entre essas duas realidades: a externa, de total
irrelevância, e a interna, onde somos centrais (tanto que nosso
universo desaparece com a nossa morte). Por isso a religião (que
resolve esse problema) é — a meu ver — uma evolução natural da
nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica
(esse é o pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel
Dennett, em Breaking the spell). Somos believers
(crentes). O que eu acho mais interessante no ponto de vista
agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos que
somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e,
portanto, temos a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que
queremos ser (como indivíduo e como espécie). A construção do
nosso mundo e para onde vamos é nossa responsabilidade. Acho que não
pode haver maior riqueza em uma vida do que essa liberdade”.
Era
um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida. Como
conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois
podemos pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia
seguinte. E temos um tapete para pisar. Mas nossa inquietação segue
latejando, às vezes doendo muito — e nos carregando para vários
lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer pretexto para
buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição,
um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que
possamos nos agarrar para não sermos afogados pelo oceano de
comportamentos clichês, para que nossa ânsia de vida nos leve
sempre a viver. Com todas as dores, as fomes, as perdas e também os
ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de nós quer
ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom
personagem.
Foi
até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck me levou.
Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo
sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio
Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.
Eliane
Brum, in A menina quebrada
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