Léo
Gilson
Ribeiro: Hilda
Hilst, você é frequentemente tachada de “autora hermética” e
parece que pouca gente te lê ou pelo menos se faz um silêncio
sepulcral sobre a sua obra, que eu considero a mais transtornadora e
importante em língua portuguesa, hoje. Você se considera
“hermética”, difícil, inacessível?
Hilda
Hilst:
Como
vamos poder, numa página de jornal, definir toda uma conduta
literária que, a meu ver, não pode deixar de ser também
entranhadamente ética? A primeira coisa que eu tenho a dizer, e você
sabe bem disso, Léo, é que nenhum escritor se senta e diz: “Agora
vou escrever um trabalho hermético”. Isso é uma loucura. Isso
simplesmente não existe! O que existe é que eu escrevo movida por
uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer
escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigir com o que nos é
imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma do
coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz “Não”,
“Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas”. No
momento em que eu ou qualquer outro escritor resolve se dizer,
verbalizar o que pensa e sente, expressar-se diante do outro, para o
outro, o leitor que pretende ler o que eu escrevo, então o escrever
sofre uma transformação essencial.
LGR:
Que
tipo de transformação?
HH:
Uma
transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe
passam a ser intrinsecamente atos políticos de não pactuação com
o que nos circunda e que tenta nos enredar com seu embuste, a sua
mentira ardilosamente sedutora e bem armada.
LGR:
E
o que tem isto a ver com o propalado “hermetismo” do seu texto?
HH:
É
porque muitas pessoas veem no meu texto aquele conceito tradicional
de hermético como alguma coisa como um muro, intransponível, sem
aberturas, fechado sobre si mesmo. E não é assim! O hermético para
mim é aquele conceito do [filósofo religioso existencialista]
Kierkegaard, que define o “hermético” como sendo o escudo, a
carapaça, a repressão que os homens (e o escritor também, por que
não?) usam ou precisam para se fecharem dentro de si mesmos e
defenderem-se do exterior.
LGR:
Por
que o exterior é tão ameaçador assim?
HH:
O
exterior apresenta para o indivíduo propostas excitantes demais, que
a sociedade estabelecida, em qualquer regime político do globo
terrestre, considera proibidas e portanto as reprime. Esse
hermetismo, esse escudo, essa repressão são então uma defesa
necessária do ser humano diante do mando castrador que o cerca e o
amordaça.
LGR:
O
Reich falava também dessa “Verpanzerung”, da pessoa criar como
que um tanque de guerra inexpugnável em torno de si para não ser
violado pelos outros, é isso também?
HH:
Sim,
o Reich; e sobretudo, quando eu escrevo, é porque eu sinto uma
vontade insuperável de dar ao outro que vai me ler, espero, uma
grande abertura de intensidade.
LGR:
O
que é uma grande abertura de intensidade?
HH:
É
difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar
ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é
proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão
definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
LGR:
E
isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH:
É
justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum
escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de
romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos
de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a
opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima?
Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com
uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política,
econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não
pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
LGR:
Mas
por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH:
Talvez
algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que
direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na
qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
LGR:
Você
acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor
ambicionar isso?
HH:
Sim,
porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da
minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu
mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele
pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma
descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível
de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?
Entrevista
com Léo Gilson Ribeiro, publicada originalmente em 1980 e está no
livro “Fico besta quando me entendem”.
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