terça-feira, 4 de agosto de 2020

Tu não te moves de ti, uma narrativa tripla de Hilda Hilst (excerto)

Léo Gilson Ribeiro:  Hilda Hilst, você é frequentemente tachada de “autora hermética” e parece que pouca gente te lê ou pelo menos se faz um silêncio sepulcral sobre a sua obra, que eu considero a mais transtornadora e importante em língua portuguesa, hoje. Você se considera “hermética”, difícil, inacessível?
Hilda Hilst: Como vamos poder, numa página de jornal, definir toda uma conduta literária que, a meu ver, não pode deixar de ser também entranhadamente ética? A primeira coisa que eu tenho a dizer, e você sabe bem disso, Léo, é que nenhum escritor se senta e diz: “Agora vou escrever um trabalho hermético”. Isso é uma loucura. Isso simplesmente não existe! O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigir com o que nos é imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz “Não”, “Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas”. No momento em que eu ou qualquer outro escritor resolve se dizer, verbalizar o que pensa e sente, expressar-se diante do outro, para o outro, o leitor que pretende ler o que eu escrevo, então o escrever sofre uma transformação essencial.
LGR: Que tipo de transformação?
HH: Uma transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos políticos de não pactuação com o que nos circunda e que tenta nos enredar com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada.
LGR: E o que tem isto a ver com o propalado “hermetismo” do seu texto?
HH: É porque muitas pessoas veem no meu texto aquele conceito tradicional de hermético como alguma coisa como um muro, intransponível, sem aberturas, fechado sobre si mesmo. E não é assim! O hermético para mim é aquele conceito do [filósofo religioso existencialista] Kierkegaard, que define o “hermético” como sendo o escudo, a carapaça, a repressão que os homens (e o escritor também, por que não?) usam ou precisam para se fecharem dentro de si mesmos e defenderem-se do exterior.
LGR: Por que o exterior é tão ameaçador assim?
HH: O exterior apresenta para o indivíduo propostas excitantes demais, que a sociedade estabelecida, em qualquer regime político do globo terrestre, considera proibidas e portanto as reprime. Esse hermetismo, esse escudo, essa repressão são então uma defesa necessária do ser humano diante do mando castrador que o cerca e o amordaça.
LGR: O Reich falava também dessa “Verpanzerung”, da pessoa criar como que um tanque de guerra inexpugnável em torno de si para não ser violado pelos outros, é isso também?
HH: Sim, o Reich; e sobretudo, quando eu escrevo, é porque eu sinto uma vontade insuperável de dar ao outro que vai me ler, espero, uma grande abertura de intensidade.
LGR: O que é uma grande abertura de intensidade?
HH: É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
LGR: E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH: É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
LGR: Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH: Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
LGR: Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH: Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?
Entrevista com Léo Gilson Ribeiro, publicada originalmente em 1980 e está no livro “Fico besta quando me entendem”.

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