sábado, 15 de agosto de 2020

Sabendo o tudo e o miúdo

Cara-de-Bronze começou, mas vagaroso, feito cobra pega seu ser do sol. Assim foi-se notando. Como que, vez em quando, ele chamava os vaqueiros, um a um, jogava o sujeito em assunto, tirava palavra. De princípio, não se entendeu. Doidara? Eh, ele sempre tinha sido homem-senhor, indagador, que geria suas posses. Por perguntar noticiazinhas, perguntava, caprichava nisso. Só que, agora, estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do revirado na lida: as querências das vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e a vinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não eram outras coisas proveitosas, como saber de estórias de dinheiro enterrado em alguma parte, ou conhecer a virtude medicinal de alguma erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso. Mudara. Agora ele indagava engraçadas bobeias, como estivesse caducável.
À vez, ele mesmo parecia ter vergonha daquilo… Variava o meio da conversa…
Que era que?
Essas coisas… Quisquilha. Mamãezice… Atou e desatou... Aquilo não tinha rotinas… Tudo.
O vaqueiro Calixto: Tudo galã-galante…
O vaqueiro Abel: Era um advogo. O que não se vê de propósito e fica dos lados do rumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o que vive por si, vai, estrada vaga…
O vaqueiro José Uéua: Assim: — mel se sente é na ponta da língua… O desafã. Por exemplos: — A rosação das roseiras. O ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho no branqueado do azul. A baba de boi da aranha. O que a gente havia de ver, se fosse galopando em garupa de ema. Luaral. As estrelas. Urubús e as nuvens em alto vento: quando eles remam em voo. O virar, vazio por si, dos lugares. A brotação das coisas. A narração de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de gente pobre…
O vaqueiro Pedro Franciano: E adivinhar o que é o mar… Quem é que pode? Só o Calixto, aqui da gente, é quem já viu a pancada dele…
O vaqueiro Mainarte: Ele queria uma ideia como o vento. Por espanto, como o vento… Uma virtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente — atravessa a ideia, como alma de assombração atravessa as paredes.
O vaqueiro Noró: Que relembra os formatos do orvalho… E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade.
O vaqueiro Abel: Não-entender, não-entender, até se virar menino.
O vaqueiro José Uéua: Jogar nos ares um montão de palavras, moedal.
O vaqueiro Noró: Conversação nos escuros, se rodeando o que não se sabe.
O vaqueiro Mainarte: Era só uma claridade diversa diferente…
O vaqueiro Cicica: Dislas. E aquilo dava influição. Como que ele queria era botar a gente toda endoidecendo festinho…
O vaqueiro Parão: Tudo no quilombo do Faz-de-Conta…
O vaqueiro Pedro Franciano: Eu acho que ele queria era ficar sabendo o tudo e o miúdo.
O vaqueiro Tadeu: Não, gente, minha gente: que não era o-tudo-e-o-miúdo…
O vaqueiro Pedro Franciano: Pois então?
O vaqueiro Tadeu: …Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!
Guimarães Rosa, in Cara-de-Bronze

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