Cara-de-Bronze
começou, mas vagaroso, feito cobra pega seu ser do sol. Assim foi-se
notando. Como que, vez em quando, ele chamava os vaqueiros, um a um,
jogava o sujeito em assunto, tirava palavra. De princípio, não se
entendeu. Doidara? Eh, ele sempre tinha sido homem-senhor, indagador,
que geria suas posses. Por perguntar noticiazinhas, perguntava,
caprichava nisso. Só que, agora, estava mudado. Não requeria
relatos da campeação, do revirado na lida: as querências das vacas
parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e
a vinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não
eram outras coisas proveitosas, como saber de estórias de dinheiro
enterrado em alguma parte, ou conhecer a virtude medicinal de alguma
erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso. Mudara.
Agora ele indagava engraçadas bobeias, como estivesse caducável.
— À
vez, ele mesmo parecia ter vergonha daquilo… Variava o meio da
conversa…
— Que
era que?
— Essas
coisas… Quisquilha. Mamãezice… Atou e desatou... Aquilo não
tinha rotinas… Tudo.
O
vaqueiro Calixto: Tudo galã-galante…
O
vaqueiro Abel: Era um advogo. O que não se vê de propósito e
fica dos lados do rumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o
que vive por si, vai, estrada vaga…
O
vaqueiro José Uéua: Assim: — mel se sente é na ponta da
língua… O desafã. Por exemplos: — A rosação das roseiras. O
ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras
do vermelho no branqueado do azul. A baba de boi da aranha. O que a
gente havia de ver, se fosse galopando em garupa de ema. Luaral. As
estrelas. Urubús e as nuvens em alto vento: quando eles remam em
voo. O virar, vazio por si, dos lugares. A brotação das coisas. A
narração de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de
gente pobre…
O
vaqueiro Pedro Franciano: E adivinhar o que é o mar… Quem é
que pode? Só o Calixto, aqui da gente, é quem já viu a pancada
dele…
O
vaqueiro Mainarte: Ele queria uma ideia como o vento. Por
espanto, como o vento… Uma virtudinha espritada, que traspassa o
pensamento da gente — atravessa a ideia, como alma de assombração
atravessa as paredes.
O
vaqueiro Noró: Que relembra os formatos do orvalho… E bonitas
desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade.
O
vaqueiro Abel: Não-entender, não-entender, até se virar
menino.
O
vaqueiro José Uéua: Jogar nos ares um montão de palavras,
moedal.
O
vaqueiro Noró: Conversação nos escuros, se rodeando o que não
se sabe.
O
vaqueiro Mainarte: Era só uma claridade diversa diferente…
O
vaqueiro Cicica: Dislas. E aquilo dava influição. Como que ele
queria era botar a gente toda endoidecendo festinho…
O
vaqueiro Parão: Tudo no quilombo do Faz-de-Conta…
O
vaqueiro Pedro Franciano: Eu acho que ele queria era ficar
sabendo o tudo e o miúdo.
O
vaqueiro Tadeu: Não, gente, minha gente: que não era
o-tudo-e-o-miúdo…
O
vaqueiro Pedro Franciano: Pois então?
O
vaqueiro Tadeu: …Queria era que se achasse para ele o quem
das coisas!
Guimarães
Rosa, in Cara-de-Bronze
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