sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quem vê cara não vê coração

Meu nome é João, moro no morro, num barraco que era do meu avô, não me lembro do meu pai, nem da minha mãe, nem da minha avó, tenho cara de bobo, mas sou esperto. É uma burrice pensar que alguém pode dizer alguma coisa pelo rosto de uma pessoa. Havia uma teoria antigamente que pretendia explicar cientificamente, mas foi desmoralizada. Na verdade, como dizem os filósofos, quem vê cara não vê coração. Eu acrescento, quem vê cara não vê nada. Mas as pessoas continuam acreditando nessa balela. E todo safado quer me passar a perna. Antigamente eu reclamava, hoje não reclamo, finjo que sou mesmo otário e acredito na peta e aproveito para dar o golpe no espertalhão. Sou ignorante, isso eu sou, só cursei o primário e minhas notas eram péssimas, com exceção do português, que só tirava nota dez. Acho que estava apaixonado pela professora, dona Eurídice. Ela usava óculos, mas era muito bonita. Todo mundo pensa que é melhor do que é na realidade. Enfim, hoje vou encontrar um espertalhaço — essa palavra existe sim, sou bom em palavras, já disse —; o vigarista disse que me vendia um carro usado em ótimo estado. O preço era de um carro novo, mas devia ter rodado mais que baiana no Carnaval. Eu disse para ele, antes de pagar, quero dar uma volta. Ele me deu a chave, eu entrei no carro e sumi. O trapaceiro deve estar esperando até hoje eu aparecer. Vendi o carro por um preço justo. Esta foi a primeira vez que usei em meu proveito a minha cara de idiota. A segunda vez um sujeito gordo, de bigode e cabeleira postiça — é fácil sacar que a cabeleira é postiça, os cabelos ficam muito certinhos alinhados na cabeça, que nem no tempo do anúncio no rádio dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex, uma coisa que o meu avô disse que usava no cabelo quando era adolescente, isto deve ter sido no tempo do onça, mas a cabeleira do gordo não tinha Gumex, mesmo porque essa porcaria não tem mais nas farmácias. O gordo chegou para mim e disse, meu filho, eu estou doente das pernas e a fila nos caixas dos bancos está enorme, você poderia receber este cheque para mim? Claro, respondi. Você tem carteira de identidade? Tenho. Então coloque o seu nome neste espaço. Deus te abençoe, meu filho, vou te esperar no botequim da esquina. O banco estava mesmo cheio, eu fiquei na fila e recebi a grana do gordo. Vi que ele estava tomando cerveja no boteco. Saí sub-repticiamente — esta palavra também quem me ensinou foi a dona Eurídice, a minha professora de português que usava óculos e era linda, sub-repticiamente significa de maneira furtiva, ou seja, sem que o gordo percebesse —, aquele cheque tinha uma podridão qualquer e por isso o gordo não quis colocar seu nome nele, mas eu também não coloquei o meu, inventei um nome, sabendo que o caixa olharia a minha cara e nem conferiria coisa alguma, aquele bobo não podia estar dando um trambique. Era uma bolada, caramba, eu nunca tinha visto tanto dinheiro. Fui para casa, mas pelo caminho dei uma boa esmola pro cego e outra boa esmola pro aleijadinho, pro cego eu disse, colocando as notas na mão dele, seu Estevão, é muito dinheiro, cuidado, pro aleijadinho eu não precisei dizer nada, ele ficou boquiaberto vendo o tutu que eu pus na mão dele. Pra falar a verdade, a grana que surrupiei do gordo não era tanta assim, depois de dar uma parte para os meus amigos pés-rapados só sobrou para eu comprar um par de tênis, que aliás eu estava precisando. Também me preocupo com bichos, quer dizer, bichos pequenos, não estou pensando em elefantes, nem leões, hipopótamos, rinocerontes, eles nem existem onde eu moro, gosto muito de cavalo, acho ele bonito como um príncipe, mas não cabe no meu barraco, estou falando de gatos e cachorros e passarinhos e sapos, eu sei quando um sapo está com problemas, onde eu moro, aqui no morro, tem umas valas, uma espécie de fosso, que quando chove muito um ou dois sapos ficam presos e se não forem tirados morrem, o fosso enche de porcarias e o sapo acaba morrendo. Esses caras supersticiosos dizem que os sapos são venenosos, devem ser venenosos para quem maltrata eles. Quando chega sua época de reprodução, os sapos coaxam para atrair as fêmeas. Acho bonito o cântico de amor deles. Amor é sempre uma coisa bonita, eu ainda não experimentei, mas sei. Tambem já salvei muitos passarinhos, aqui no morro os moleques usam atiradeiras para matar passarinho, quando vejo um deles fazendo isso eu encho o safado de porrada. Tomar conta de passarinho machucado é difícil pra burro. O bicho mais fácil é o cachorro. Bem, eu precisava arranjar mais dinheiro. Aqui no morro eu tenho um amigo, o Zé Gororoba. Diziam que ele era medroso, cachaceiro e batedor de carteira. Fui batedor de carteira, não sou mais, ele me disse, essa merda do reumatismo acabou comigo, o meu é brabo, ferrou com os meus tendões, articulações, músculos, até febre me deu. Se não fosse o que eu ganho com a minha aposentadoria por invalidez eu morria de fome, e o barraco é meu. A Zulmira me deu um pé na bunda, disse que eu não era homem, que não ficava de pau duro, é verdade, eu fico com tudo duro, juntas, dedos, tudo, menos o pau. Você me ensina a bater carteira?, perguntei. É dificil, mas você tem uma vantagem, com essa cara de bobalhão o pato não vai desconfiar de você. Pato? Pato é o cara que você vai enganar, o nome dele é pato, sacou? Bem, pimeiro é preciso escolher o local, o metrô, o ônibus, tem que estar cheio, na hora de mais movimento, ônibus é melhor, cheio de gente em pé, dá uns solavancos que ajudam. Você deve carregar uma coisa, uma jaqueta nos braços pra cobrir as suas mãos. É comum os batedores de carteira agirem em dupla, mas eu sempre agi sozinho e de qualquer forma não tenho nenhum nome para lhe indicar. Você se aproxima do pato, estuda a figura, o ônibus está lotado, lembre-se de um troço importante, os homens carregam a carteira no bolso do lado direito da calça.Você espera um solavanco, dá um leve encontrão no pato e nesse momento tira a carteira dele. Outra coisa, você deve se livrar da carteira o mais rápido possível, depois de apanhar a grana que estiver nela. Festa tambem é um bom lugar, e locais frequentados por turistas. Mas você precisa treinar. Você vai tirar a carteira do meu bolso sem que eu sinta a sua mão. Anda, vamos lá. Tirei a carteira do bolso do Zé Gororoba, bem de leve, ele nem deve ter sentido a minha mão. Puta merda, João, você quase rasga a minha roupa. Vamos novamente. Fiquei treinando mais de dois meses, o dia inteiro, todos os dias, até que o Zé Gororoba disse, João, você está pronto, pode meter a cara. Peguei o ônibus às seis da tarde. Estava um calor do cão. Perto de mim estava uma mulher quarentona, uma cara infeliz, e a pateta tinha deixado a bolsa aberta. Moleza tirar grana dela, mas eu não ia fazer uma coisa dessas com aquela mulher, ela devia trabalhar a tarde toda e agora ia para casa fazer o jantar para o puto do marido e os filhos. Minha senhora, a sua bolsa está aberta, eu disse. Muito obrigado, ela respondeu, sou maluca, logo hoje que recebi o pagamento do mês eu deixo a bolsa aberta. Mais adiante havia um sujeito de bigodinho aparado, odeio sujeitos de bigodinho. Aproximei-me dele com a minha jaqueta nos braços e no primeiro solavanco, esses ônibus são uma merda, graças a Deus, quando o motorista, que é outra merda, dá uma freada, o ônibus sacode como se fosse tombar. Peguei a carteira do bigodinho, afastei-me, com as mãos escondidas pela jaqueta, retirei todo o dinheiro e joguei a carteira debaixo de um banco onde duas mulheres gordas estavam sentadas. Ultimamente só vejo mulheres gordas, em todo lugar, mulheres gordas nas ruas, mulheres gordas nos shoppings, mulheres gordas nos botecos, mulheres gordas nos morros, mulheres gordas pobres, mulheres gordas remediadas, mulheres gordas pretas, mulheres gordas mulatas, mulheres gordas brancas, alguém precisa me explicar o que está acontecendo. Naquele dia fiz somente aquela jogada com o homem do bigodinho. Fui para casa, procurei o Zé Gororoba e dei a ele metade do dinheiro. Zé, aqui está m etade, eu disse. O que é isto? Metade? Tá maluco, João, você tem que me dar no máximo um terço, sacou? Um terço? Sei lá que merda é um terço, não sei nada de aritmética, não sei multiplicar acima de sete, sete vezes sete?, não tenho a menor ideia, o meu negócio é português. Qual foi o total? Zé Gororoba perguntou. Então um terço é 25. Durante algum tempo batia uma carteira por dia. Só de homem. Mulher que anda de ônibus é uma pobre-diabo. Eu disse que gosto de bicho, mas gosto também de mulher, não das gordas, mas sou tímido e acho que elas não gostam da minha cara de palerma, mulher gosta de homem com cara de esperto. Ganhando mais dinheiro aumentei também o número da turma que eu podia ajudar. Além do ceguinho Estevão e do aleijadinho conhecido como Pirolito, acho que esqueci de dizer antes o nome dele, não gosto desse nome, mas agora é tarde para mudar, ele tem uns oitenta anos, além desses dois eu passei a dar uma mãozinha pra dona Benedita, que tinha um negócio nas pernas que não deixava ela andar, e para o Bolão, não sei qual o seu nome, ele era diabético e já tinha perdido um braço, essa doença ataca muito os obesos, e o Bolão tinha que tomar insulina, então eu passei a dar dinheiro para ele comprar o remédio e um aparelho para fazer a aplicação. Ainda sobrava um dinheirinho para mim e fui ao dentista para obturar os meus dentes cariados. Depois de algum tempo desenvolvi uma tal habilidade que passei a bater de três a quatro carteiras por dia. Só de homem, mulher não. O Zé Gororoba me disse, maneira, João, o segredo do sucesso, como disse um famoso filósofo cujo nome não recordo, o segredo do sucesso é maneirar. Com essa palavra, que a dona Eurídice, a minha linda professora, disse anos atrás que não existia, com essa palavra o Zé Gororoba queria dizer para eu não exagerar. Então segui o conselho do Zé Gororoba e decidi maneirar. Além de tudo, o Zé Gororoba disse que não queria que eu lhe desse nem mais um tostão. Chega, João, agora neres de pitibiriba. Então passei a bater carteira apenas às terças, quintas e sábados, o Zé Gororoba perguntou por que não às segundas, quartas e sextas. Respondi, como disse um filósofo, é melhor errar do que deixar de escolher, claro que eu inventei esse filósofo, como o Zé Gororoba inventara o dele. Sou muito sortudo. Só pego carteira cheia de grana, como tem sujeito distraído nesse mundo! Mudei para um barraco com laje e no sábado vou dar uma festa, já convidei a menina que eu quero namorar, o nome dela é Kelly. Nesse sábado eu vou tirar uma folga. Estou pensando em convidar a Kelly para ser minha noiva. Tenho um trabalho garantido, seguro, minha vida mudou. Quer dizer, tudo mudou, mas continuo com cara de bobo.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

Nenhum comentário:

Postar um comentário