Meu
nome é João, moro no morro, num barraco que era do meu avô, não
me lembro do meu pai, nem da minha mãe, nem da minha avó, tenho
cara de bobo, mas sou esperto. É uma burrice pensar que alguém pode
dizer alguma coisa pelo rosto de uma pessoa. Havia uma teoria
antigamente que pretendia explicar cientificamente, mas foi
desmoralizada. Na verdade, como dizem os filósofos, quem vê cara
não vê coração. Eu acrescento, quem vê cara não vê nada. Mas
as pessoas continuam acreditando nessa balela. E todo safado quer me
passar a perna. Antigamente eu reclamava, hoje não reclamo, finjo
que sou mesmo otário e acredito na peta e aproveito para dar o golpe
no espertalhão. Sou ignorante, isso eu sou, só cursei o primário e
minhas notas eram péssimas, com exceção do português, que só
tirava nota dez. Acho que estava apaixonado pela professora, dona
Eurídice. Ela usava óculos, mas era muito bonita. Todo mundo pensa
que é melhor do que é na realidade. Enfim, hoje vou encontrar um
espertalhaço — essa palavra existe sim, sou bom em palavras, já
disse —; o vigarista disse que me vendia um carro usado em ótimo
estado. O preço era de um carro novo, mas devia ter rodado mais que
baiana no Carnaval. Eu disse para ele, antes de pagar, quero dar uma
volta. Ele me deu a chave, eu entrei no carro e sumi. O trapaceiro
deve estar esperando até hoje eu aparecer. Vendi o carro por um
preço justo. Esta foi a primeira vez que usei em meu proveito a
minha cara de idiota. A segunda vez um sujeito gordo, de bigode e
cabeleira postiça — é fácil sacar que a cabeleira é postiça,
os cabelos ficam muito certinhos alinhados na cabeça, que nem no
tempo do anúncio no rádio dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex,
uma coisa que o meu avô disse que usava no cabelo quando era
adolescente, isto deve ter sido no tempo do onça, mas a cabeleira do
gordo não tinha Gumex, mesmo porque essa porcaria não tem mais nas
farmácias. O gordo chegou para mim e disse, meu filho, eu estou
doente das pernas e a fila nos caixas dos bancos está enorme, você
poderia receber este cheque para mim? Claro, respondi. Você tem
carteira de identidade? Tenho. Então coloque o seu nome neste
espaço. Deus te abençoe, meu filho, vou te esperar no botequim da
esquina. O banco estava mesmo cheio, eu fiquei na fila e recebi a
grana do gordo. Vi que ele estava tomando cerveja no boteco. Saí
sub-repticiamente — esta palavra também quem me ensinou foi a dona
Eurídice, a minha professora de português que usava óculos e era
linda, sub-repticiamente significa de maneira furtiva, ou seja, sem
que o gordo percebesse —, aquele cheque tinha uma podridão
qualquer e por isso o gordo não quis colocar seu nome nele, mas eu
também não coloquei o meu, inventei um nome, sabendo que o caixa
olharia a minha cara e nem conferiria coisa alguma, aquele bobo não
podia estar dando um trambique. Era uma bolada, caramba, eu nunca
tinha visto tanto dinheiro. Fui para casa, mas pelo caminho dei uma
boa esmola pro cego e outra boa esmola pro aleijadinho, pro cego eu
disse, colocando as notas na mão dele, seu Estevão, é muito
dinheiro, cuidado, pro aleijadinho eu não precisei dizer nada, ele
ficou boquiaberto vendo o tutu que eu pus na mão dele. Pra falar a
verdade, a grana que surrupiei do gordo não era tanta assim, depois
de dar uma parte para os meus amigos pés-rapados só sobrou para eu
comprar um par de tênis, que aliás eu estava precisando. Também me
preocupo com bichos, quer dizer, bichos pequenos, não estou pensando
em elefantes, nem leões, hipopótamos, rinocerontes, eles nem
existem onde eu moro, gosto muito de cavalo, acho ele bonito como um
príncipe, mas não cabe no meu barraco, estou falando de gatos e
cachorros e passarinhos e sapos, eu sei quando um sapo está com
problemas, onde eu moro, aqui no morro, tem umas valas, uma espécie
de fosso, que quando chove muito um ou dois sapos ficam presos e se
não forem tirados morrem, o fosso enche de porcarias e o sapo acaba
morrendo. Esses caras supersticiosos dizem que os sapos são
venenosos, devem ser venenosos para quem maltrata eles. Quando chega
sua época de reprodução, os sapos coaxam para atrair as fêmeas.
Acho bonito o cântico de amor deles. Amor é sempre uma coisa
bonita, eu ainda não experimentei, mas sei. Tambem já salvei muitos
passarinhos, aqui no morro os moleques usam atiradeiras para matar
passarinho, quando vejo um deles fazendo isso eu encho o safado de
porrada. Tomar conta de passarinho machucado é difícil pra burro. O
bicho mais fácil é o cachorro. Bem, eu precisava arranjar mais
dinheiro. Aqui no morro eu tenho um amigo, o Zé Gororoba. Diziam que
ele era medroso, cachaceiro e batedor de carteira. Fui batedor de
carteira, não sou mais, ele me disse, essa merda do reumatismo
acabou comigo, o meu é brabo, ferrou com os meus tendões,
articulações, músculos, até febre me deu. Se não fosse o que eu
ganho com a minha aposentadoria por invalidez eu morria de fome, e o
barraco é meu. A Zulmira me deu um pé na bunda, disse que eu não
era homem, que não ficava de pau duro, é verdade, eu fico com tudo
duro, juntas, dedos, tudo, menos o pau. Você me ensina a bater
carteira?, perguntei. É dificil, mas você tem uma vantagem, com
essa cara de bobalhão o pato não vai desconfiar de você. Pato?
Pato é o cara que você vai enganar, o nome dele é pato, sacou?
Bem, pimeiro é preciso escolher o local, o metrô, o ônibus, tem
que estar cheio, na hora de mais movimento, ônibus é melhor, cheio
de gente em pé, dá uns solavancos que ajudam. Você deve carregar
uma coisa, uma jaqueta nos braços pra cobrir as suas mãos. É comum
os batedores de carteira agirem em dupla, mas eu sempre agi sozinho e
de qualquer forma não tenho nenhum nome para lhe indicar. Você se
aproxima do pato, estuda a figura, o ônibus está lotado, lembre-se
de um troço importante, os homens carregam a carteira no bolso do
lado direito da calça.Você espera um solavanco, dá um leve
encontrão no pato e nesse momento tira a carteira dele. Outra coisa,
você deve se livrar da carteira o mais rápido possível, depois de
apanhar a grana que estiver nela. Festa tambem é um bom lugar, e
locais frequentados por turistas. Mas você precisa treinar. Você
vai tirar a carteira do meu bolso sem que eu sinta a sua mão. Anda,
vamos lá. Tirei a carteira do bolso do Zé Gororoba, bem de leve,
ele nem deve ter sentido a minha mão. Puta merda, João, você quase
rasga a minha roupa. Vamos novamente. Fiquei treinando mais de dois
meses, o dia inteiro, todos os dias, até que o Zé Gororoba disse,
João, você está pronto, pode meter a cara. Peguei o ônibus às
seis da tarde. Estava um calor do cão. Perto de mim estava uma
mulher quarentona, uma cara infeliz, e a pateta tinha deixado a bolsa
aberta. Moleza tirar grana dela, mas eu não ia fazer uma coisa
dessas com aquela mulher, ela devia trabalhar a tarde toda e agora ia
para casa fazer o jantar para o puto do marido e os filhos. Minha
senhora, a sua bolsa está aberta, eu disse. Muito obrigado, ela
respondeu, sou maluca, logo hoje que recebi o pagamento do mês eu
deixo a bolsa aberta. Mais adiante havia um sujeito de bigodinho
aparado, odeio sujeitos de bigodinho. Aproximei-me dele com a minha
jaqueta nos braços e no primeiro solavanco, esses ônibus são uma
merda, graças a Deus, quando o motorista, que é outra merda, dá
uma freada, o ônibus sacode como se fosse tombar. Peguei a carteira
do bigodinho, afastei-me, com as mãos escondidas pela jaqueta,
retirei todo o dinheiro e joguei a carteira debaixo de um banco onde
duas mulheres gordas estavam sentadas. Ultimamente só vejo mulheres
gordas, em todo lugar, mulheres gordas nas ruas, mulheres gordas nos
shoppings, mulheres gordas nos botecos, mulheres gordas nos morros,
mulheres gordas pobres, mulheres gordas remediadas, mulheres gordas
pretas, mulheres gordas mulatas, mulheres gordas brancas, alguém
precisa me explicar o que está acontecendo. Naquele dia fiz somente
aquela jogada com o homem do bigodinho. Fui para casa, procurei o Zé
Gororoba e dei a ele metade do dinheiro. Zé, aqui está m etade, eu
disse. O que é isto? Metade? Tá maluco, João, você tem que me dar
no máximo um terço, sacou? Um terço? Sei lá que merda é um
terço, não sei nada de aritmética, não sei multiplicar acima de
sete, sete vezes sete?, não tenho a menor ideia, o meu negócio é
português. Qual foi o total? Zé Gororoba perguntou. Então um terço
é 25. Durante algum tempo batia uma carteira por dia. Só de homem.
Mulher que anda de ônibus é uma pobre-diabo. Eu disse que gosto de
bicho, mas gosto também de mulher, não das gordas, mas sou tímido
e acho que elas não gostam da minha cara de palerma, mulher gosta de
homem com cara de esperto. Ganhando mais dinheiro aumentei também o
número da turma que eu podia ajudar. Além do ceguinho Estevão e do
aleijadinho conhecido como Pirolito, acho que esqueci de dizer antes
o nome dele, não gosto desse nome, mas agora é tarde para mudar,
ele tem uns oitenta anos, além desses dois eu passei a dar uma
mãozinha pra dona Benedita, que tinha um negócio nas pernas que não
deixava ela andar, e para o Bolão, não sei qual o seu nome, ele era
diabético e já tinha perdido um braço, essa doença ataca muito os
obesos, e o Bolão tinha que tomar insulina, então eu passei a dar
dinheiro para ele comprar o remédio e um aparelho para fazer a
aplicação. Ainda sobrava um dinheirinho para mim e fui ao dentista
para obturar os meus dentes cariados. Depois de algum tempo
desenvolvi uma tal habilidade que passei a bater de três a quatro
carteiras por dia. Só de homem, mulher não. O Zé Gororoba me
disse, maneira, João, o segredo do sucesso, como disse um famoso
filósofo cujo nome não recordo, o segredo do sucesso é maneirar.
Com essa palavra, que a dona Eurídice, a minha linda professora,
disse anos atrás que não existia, com essa palavra o Zé Gororoba
queria dizer para eu não exagerar. Então segui o conselho do Zé
Gororoba e decidi maneirar. Além de tudo, o Zé Gororoba disse que
não queria que eu lhe desse nem mais um tostão. Chega, João, agora
neres de pitibiriba. Então passei a bater carteira apenas às
terças, quintas e sábados, o Zé Gororoba perguntou por que não às
segundas, quartas e sextas. Respondi, como disse um filósofo, é
melhor errar do que deixar de escolher, claro que eu inventei esse
filósofo, como o Zé Gororoba inventara o dele. Sou muito sortudo.
Só pego carteira cheia de grana, como tem sujeito distraído nesse
mundo! Mudei para um barraco com laje e no sábado vou dar uma festa,
já convidei a menina que eu quero namorar, o nome dela é Kelly.
Nesse sábado eu vou tirar uma folga. Estou pensando em convidar a
Kelly para ser minha noiva. Tenho um trabalho garantido, seguro,
minha vida mudou. Quer dizer, tudo mudou, mas continuo com cara de
bobo.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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