segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Preso em Buenos Aires

Ao cabo desse tempo fui convidado para um congresso da paz que se reunia em Colombo, na ilha do Ceilão, onde vivi há tantos anos. Estávamos em abril de 1957.
Encontrar-se com a poesia secreta não parece perigoso mas, se se trata da polícia secreta argentina, o encontro toma outro caráter não desprovido de humor, ainda que imprevisível em suas consequências. Naquela noite, recém-chegado do Chile, disposto a prosseguir minha viagem até os países mais distantes, deitei-me fatigado. Apenas começava a cochilar quando irromperam na casa vários policiais. Registraram tudo com lentidão, recolhiam livros e revistas, remexiam os guarda-roupas, vasculhavam as roupas íntimas. Já tinham levado meu amigo argentino que me hospedava quando me descobriram no fundo da casa, que é onde ficava meu quarto.
Quem é este senhor? – perguntaram.
Chamo-me Pablo Neruda – respondi.
Está doente? – perguntaram à minha mulher.
Sim, está doente e muito cansado da viagem. Chegamos hoje e tomaremos amanhã um avião para a Europa.
Muito bem, muito bem – disseram e saíram da peça.
Voltaram uma hora depois munidos de uma ambulância. Matilde protestava mas isto não alterou as coisas. Eles tinham instruções: deviam levar-me cansado ou descansado, são ou enfermo, vivo ou morto.
Chovia naquela noite. Grossas gotas caíam do céu denso de Buenos Aires. Sentia-me abatido. Perón já tinha caído. O General Aramburu, em nome da democracia, tinha jogado abaixo a tirania. No entanto, sem saber como nem quando, por que nem onde, se por isto ou por aquilo, se por nada ou se por tudo, esgotado ou enfermo, eu ia preso. Minha maca, levada por quatro policiais, se convertia num problema sério ao descer as escadas, entrar em elevadores, atravessar corredores. Os quatro padioleiros sofriam e resfolegavam. Matilde, para lhes acentuar o sofrimento, tinha dito com voz melíflua que eu pesava 110 quilos. E eu os tinha na verdade, com suéter e agasalho, coberto com cobertores até a cabeça. Resplandecia como uma massa informe, como o vulcão Osorno, sobre aquela maca com que a democracia argentina me brindava. Eu pensava, e isto me fazia sentir melhor de meus sintomas de flebite, que não eram aqueles pobres-diabos que me conduziam os que suavam e cambaleavam sob o meu peso mas sim que era o próprio General Aramburu quem carregava a minha padiola.
Fui recebido na prisão como de rotina: a catalogação do prisioneiro e o confisco de seus objetos pessoais. Não me deixaram conservar a gostosa novela policial que eu levava para não me aborrecer. A verdade é que não tive tempo de me aborrecer. Abriam-se e se cerravam grades. A maca atravessava pátios e portas de ferro, internando-se cada vez mais profundamente entre ruídos e ferrolhos. Subitamente me encontrei no meio de uma multidão: os outros presos da noite, mais de dois mil. Eu estava incomunicável, ninguém podia se aproximar de mim. No entanto não faltaram mãos que estreitassem a minha debaixo das cobertas nem o soldado que deixou o fuzil de lado e me estendeu um papel para que eu lhe assinasse um autógrafo.
Finalmente me colocaram em cima, na cela mais distante com uma janelinha muito alta. Eu queria descansar, dormir, dormir, dormir. Não consegui porque já tinha amanhecido e os presos argentinos faziam um barulho ensurdecedor, um vozerio estrondoso, como se estivessem assistindo a uma partida entre o River e o Boca.
Algumas horas depois já tinha funcionado a solidariedade de escritores amigos na Argentina, no Chile e em vários outros países. Tiraram-me da cela, levaram-me à enfermaria, devolveram meus pertences e me puseram em liberdade. Já estava para abandonar a penitenciária quando se aproximou de mim um dos guardas uniformizados e me pôs na mão uma folha de papel. Era um poema que dedicava a mim, escrito em versos toscos, cheios de simplicidade e inocência como um objeto popular. Creio que poucos poetas conseguiram receber uma homenagem poética da pessoa colocada para o vigiar.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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