sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O colecionador

Tenho a mania de colecionar coisas. Não preciso trabalhar nem fazer economias, tenho muito dinheiro, herdado, é claro, nunca trabalhei para ganhar dinheiro. Eu trabalho para gastar dinheiro.
Comecei com filatelia. Para quem não sabe o que é isso, filatelia é colecionar selos postais. A internet está acabando com este hobby, ninguém mais escreve cartas, só e-mails. A internet prejudicou muito mais coisas, as pessoas estão deixando de ler, de se encontrar, enfim, não quero falar disso.
Eu quis que a minha coleção filatélica fosse das melhores. Consegui um Olho de Boi, o primeiro selo impresso no Brasil, por determinação do governo imperial brasileiro, em 1843. O imperador era d. Pedro II, o pai dele, também d. Pedro, havia abdicado do trono em 1831. Não digo quanto paguei pelo Olho de Boi, mas é claro que foi menos do que os milhões de dólares que um sujeito pagou pelo selo americano Imagem do avião Jenny.
O filatelista aprende muita coisa em seu trabalho. O selo tinha sido criado na Inglaterra três anos antes do nosso Olho de Boi. A prática da filatelia durante muitos anos foi o mais popular dos passatempos, desfrutado por milhões de pessoas no mundo inteiro.
Chega de falar de selos, eu podia falar horas e horas sobre isso, mas eu não aguento mais. Desfiz-me da minha coleção, com um prejuízo enorme. Como disse, acabaram as cartas, o fim do selo está próximo.
Mas a mania de colecionar não me abandonou. Um dia zanzando pela internet (sempre ela!) descobri um blog criado para os admiradores de armas de fogo que dizia: “Aqui compartilharemos diversos conhecimentos sobre armas clássicas e modernas. Deixemos de lado qualquer ponto de vista ideológico ou político, nos concentrando apenas nas análises técnicas aqui apresentadas.”
Antes de mais nada tive que fazer um requerimento à Polícia Federal provando que tinha mais de 25 anos, tive que anexar comprovantes de residência, recibos de contas de água, luz, telefone, escritura sobre a compra do imóvel onde residia, certidão de casamento (isso eu não tinha, era solteiro), declaração escrita da efetiva necessidade, expondo fatos e circunstâncias que justificariam o pedido, principalmente no tocante ao exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à minha integridade física; comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pelas justiças federal, estadual (incluindo juizados especiais criminais), militar e eleitoral, e atestados declarando não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal.
Desisti de colecionar armas.
Então resolvi colecionar moedas. Como todos os colecionadores, os de moedas também são pretensiosos. Dizem que a ação do colecionador de moedas denomina-se numismática e tem por objetivo o estudo essencialmente científico das moedas e medalhas.
Resolvi me informar sobre o assunto. Descobri que a numismática faz uso de diversas áreas do conhecimento para estudar as moedas, buscando identificá-las e situá-las no tempo histórico. Porém na atualidade a moeda se tornou, também, um documento histórico, sendo utilizada como “fonte” de dados para pesquisas, pois uma moeda pode facilmente fornecer dados sobre o povo que a cunhou, como tipo de governo, língua, religião, forma como comercializavam, situação da economia e até mesmo grau de sofisticação dos povos — através da análise do método de cunhagem —, e por isso a numismática tem um papel cada vez maior no estudo da história dos povos.
As moedas metálicas surgiram por volta de 2000 a.C., mas, como não existia um padrão e nem eram certificadas, era necessário pesá-las antes das transações e verificar a sua autenticidade. Só por volta do século VII a.C. é que se procedeu à cunhagem das moedas. Foi a partir da dracma de Atenas que se difundiu por todo o mundo a moeda metálica.
Além de ser algo mais interessante do que colecionar armas, eu não precisava fazer requerimentos, pedir autorizações, me envolver numa irritante burocracia. Além do mais, desde o Império Romano a aristocracia cultivou o interesse de colecionar moedas. Quem coleciona armas? Assaltantes, criminosos de todos os tipos, assassinos psicopatas.
A numismática desenvolveu-se no Brasil principalmente a partir do século XIX, seguindo em parte o modelo europeu. A aristocracia teve papel fundamental para o desenvolvimento da numismática no Brasil, por ser a classe mais instruída e também por ter condições de formar essas coleções, lembrando que na época elas deviam se formar basicamente de moedas greco-romanas. Temos também a contribuição especial do imperador d. Pedro II, amante das artes e da história e que frequentemente fazia viagens ao exterior, donde trazia “lembranças”. Enfim, coisa de aristocrata.
Mas, assim como aconteceu com a minha mania filatélica, a numismática também deixou de me dominar. Me desfiz, novamente com grande prejuízo, da minha coleção, que incluía até uma dracma ateniense.
Não sei por quê, até hoje sei que dia 1 de dezembro é o Dia do Numismata e que o padroeiro dos colecionadores é santo Elígio.
Mas eu tinha que colecionar alguma coisa. Era a única coisa que me interessava. Eu não gostava de ler livros, ou ir ao cinema, ou beber, ou comer, de teatro já gostei, mas não gostava mais e, além de tudo, era impotente, não me interessava pelos atos sexuais.
Então, o sujeito que comprou a coleção de moedas falou em colecionadores de quadros de asas de borboleta.
Asa de borboleta?”
Isso, asa de borboleta.”
Coisa estranha. Você conhece algum colecionador?”
Conheço.”
Pode me dar o endereço?”
Não, não posso, o sujeito é um paranoico. Depois que matar borboleta foi considerado contravenção penal — você pode matar vaca, porco, galinha, mas não pode matar borboleta, ou seja, só se pode matar pra comer —, consta que puseram na cadeia vários colecionadores de quadros com asa de borboleta. Então eles sumiram do mercado.”
Mas eu queria muito entrar em contato com esse colecionador.”
O nome dele é Paulo. Posso lhe dar o telefone. Diga que fui eu que lhe dei essa informação.”
Liguei para o camarada que se chamava Paulo. Fui logo dizendo:
Quem me deu o seu telefone foi o doutor Herminio Silva. Eu gostaria de conversar com o senhor.”
Qual o assunto?”
Eu costumo fazer coleções, já fiz de selos, possuía um Olho de Boi, colecionei moedas, tive uma dracma ateniense. Gostaria de ver a sua coleção de quadros de asas de borboleta.”
Ele ficou calado. Pensei que havia desligado.
Alô, alô? Senhor Paulo?”
Me encontre neste bar”, respondeu ele, dando-me um endereço.
Esperei meia hora pelo sujeito. Ele apareceu meio embuçado. Sentou-se ao meu lado.
O senhor podia me mostrar sua carteira de identidade?”
Mostrei.”
Ele ficou me olhando desconfiado.
O senhor é da polícia?”
Não, não sou.”
Venha comigo.”
Andamos duas quadras, o Paulo sempre olhando para ver se estávamos sendo seguidos, e, afinal, depois de muitas voltas entramos num prédio.
Ele morava no décimo andar.
Entramos num apartamento, ele trancou a porta e ficou espiando pelo olho mágico um longo tempo.
Então levou-me para a sala cujas paredes exibiam os quadros com asas de borboleta. Nunca pensei que existissem borboletas como aquelas, com tantas cores.
Esse”, disse Paulo apontando um quadro grande na parede, “é o Pancromático, o meu quadro mais valioso, tem asas de todas as cores, azul, vermelho, amarelo, preto, rosa, cinza, laranja, roxo, vários matizes”.
Fiquei estupefato olhando aquele quadro.
Minha coleção está parada. Os que montavam os quadros sumiram, o que eu posso fazer? Sair apanhando borboleta? Onde? Borboleta precisa de flor, embora haja quem diga o contrário, a flor é que precisa da borboleta. Mas não importa quem precisa de quem, eu não vejo borboletas pela cidade.”
Aquela sala com as asas de borboleta me fez sentir uma grande felicidade.
Senhor Paulo, quer vender a coleção para mim? Diga o preço.”
Vender? Vender? Eu não vendo as minhas asas de borboleta por nenhum dinheiro no mundo. Eu passo os dias aqui dentro e sinto uma espécie de tanscendência metafísica, sinto a presença de Deus, não sei que Deus, Cristo, Maomé, Jeová, não importa, vivo outra vida, entendeu? E quando sentir que vou morrer vou encher esta sala de gasolina e explosivos e vamos, eu e as minhas asas de borboleta, para outra dimensão, entendeu, entendeu?”
Ele falava de forma tão enlouquecida que me assustou. Despedi-me rapidamente.
Fui para casa. Fiquei sentado, sorumbático, numa poltrona. Então lembrei-me de uma cena da peça de Shakespeare em que Hamlet segura o crânio de Yorick, o falecido bobo da corte, e fala sobre os efeitos da morte sobre o corpo. Como fui me lembrar de algo que havia visto há tanto tempo? Um crânio!
Crânio, isso é que eu devia colecionar, crânios. Uma ideia genial, algo mais proibido do que asa de borboleta! Mas onde, onde achar caveiras para comprar crânios?
Depois de um tempo, descobri o nome do zelador de um cemitério. Não vou dizer os nomes do zelador ou do cemitério. Levei o zelador para almoçar comigo e depois de algum tempo disse que queria comprar um crânio em bom estado.
Ele disse o preço.
Com todos os dentes”, acrescentei.
Aí fica mais caro.”
Eu pago o que for.”
Depois de algum tempo, algumas semanas, o zelador me trouxe o crânio, dentro de uma saca de pano. Era um crânio com todos os dentes, limpo, marfíneo, com um leve e agradável aroma.
Paguei o zelador. Ele foi embora.
Abracei o crânio. Senti uma felicidade maior do que a que sentira na sala das asas de borboleta. Uma sensação sublime, assombrosa. Eu descobrira a coleção perfeita.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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