sábado, 8 de agosto de 2020

O carpinteiro

Senta-te sultanicamente entre as luas de Saturno, e imagina um solitário homem abstrato; e ele te parecerá um prodígio, uma grandeza, um sofrimento. Do mesmo ponto, porém, imagina toda a humanidade, e, na maior parte, ela te parecerá uma turba de desnecessárias duplicatas, a um só tempo contemporâneas e hereditárias. No entanto, por mais humilde que fosse, e longe de fornecer um exemplo da alta abstração humana; o carpinteiro do Pequod não era uma duplicata; destarte, ele sobe agora em pessoa para este palco.
Como todos os carpinteiros marítimos, e mais especialmente aqueles que pertencem aos navios baleeiros, ele era, de maneira um tanto prática e improvisada, igualmente experiente em diversos afazeres e funções paralelos ao seu mister; sendo a arte do carpinteiro o tronco antigo e repleto de galhos de todos os numerosos ofícios mais ou menos ligados à madeira como material auxiliar. Entretanto, além de se dedicar às referidas observações gerais, este carpinteiro do Pequod era singularmente competente nas mil inomináveis emergências mecânicas que acometem regularmente um navio grande, numa viagem de três ou quatro anos, por longínquos e incultos mares. Para não falar apenas de sua habilidade em tarefas comuns: – consertar botes avariados, mastros quebrados, remodelar a pá de remos malfeitos, inserir aberturas no convés, ou pinos de madeira nas tábuas laterais, e outras variadas tarefas mais diretamente relacionadas à sua profissão específica; ele era ainda um especialista seguro de todos os tipos de ofícios contrastantes, úteis ou inauditos.
O grande palco onde desempenhava tantos e tão diversos papéis era sua bancada de torno; uma comprida e pesada mesa rústica provida de vários tornos de tamanhos diferentes, de ferro e de madeira. Sempre, exceto quando havia baleias no costado, a bancada ficava solidamente amarrada na transversal do navio na parte de trás da refinaria.
Uma cavilha é muito grande para ser colocada no buraco: o carpinteiro a coloca num de seus tornos sempre disponíveis e de pronto reduz seu tamanho. Um estranho pássaro de terra perdeu o rumo e é capturado a bordo: com varetas bem polidas de ossos da baleia franca e estruturas de marfim do cachalote, o carpinteiro faz uma gaiola parecida com um pagode. Um remador torce o pulso: o carpinteiro prepara uma loção lenitiva. Stubb deseja pintar estrelas vermelhas na pá de seus remos: prendendo cada remo no grande torno de madeira, o carpinteiro produz uma constelação simétrica. Um marinheiro deseja usar brincos de osso de tubarão: o carpinteiro fura suas orelhas. Outro está com dor de dente: o carpinteiro pega o alicate e batendo a mão na bancada pede para que se sente ali; mas o pobre coitado tem um sobressalto incontrolável durante a operação inconclusa; girando o cabo de seu torno de madeira, o carpinteiro faz um sinal para que coloque o maxilar ali, caso queira extrair o dente.
Assim, o carpinteiro estava preparado para tudo, igualmente indiferente e irreverente em relação a tudo. Os dentes, ele tinha por pedaços de marfim; as cabeças, ele entendia como roldanas de guindaste; os próprios homens não passavam de cabrestantes. Contudo, num campo de ação tão vário e amplamente bem-sucedido, com uma habilidade tão vigorosa; tudo isso pareceria confirmar-lhe uma rara vivacidade intelectual. Mas não era bem o caso. Pois não havia nada de especial naquele homem exceto uma certa insensibilidade impessoal; impessoal, repito; pois ela tanto se imiscuía no infinito circundante das coisas que parecia constituir um todo com a insensibilidade geral do mundo visível; que, sempre ativo de diferentes maneiras, ainda guarda eternamente a paz e nos ignora, mesmo que você cave fundações para catedrais. Mas aquela era uma insensibilidade tão horrorosa, que também implicava, como se via, uma dureza inabalável; – e, no entanto, por vezes estranhamente matizada por uma comicidade antiga, claudicante, antediluviana e asmática, não privada de uma certa espirituosidade anciã; tal como deve ter sido usada para passar o tempo nas vigílias noturnas no castelo de proa da arca do barbudo Noé. Não teria sido esse velho carpinteiro um vagabundo eterno que, de tanto rolar de cá para lá, não tivesse criado musgo; e, além disso, tivesse eliminado quaisquer resíduos exteriores que lhe pudessem ter pertencido? Ele era uma abstração, nua e crua; um integral sem frações; descompromissado como um recém-nascido; um ser vivente sem relações premeditadas com este ou outro mundo. Pode-se mesmo dizer que sua estranha falta de comprometimento supusesse alguma falta de inteligência; pois, em suas numerosas ocupações, não parecia trabalhar com a razão ou por instinto, ou apenas por ter sido instruído, ou pela combinação, igual ou desigual, disso tudo; mas por uma espécie de processo espontâneo e literal de surdo-mudo. Era um simples manipulador; se chegou a ter um cérebro, esse deve ter escorregado para os músculos dos dedos. Era como um daqueles objetos absurdos, porém altamente úteis, feitos em Sheffield, multum in parvo, que têm o aspecto exterior – embora um pouco volumoso – de um canivete comum; mas que não apenas têm lâminas de todos os tamanhos, como chaves de fenda, saca-rolhas, pinças, furadores, canetas, réguas, lixas e escareadores. Assim, se os superiores quisessem usar o carpinteiro como chave de fenda, bastava abrir aquela sua parte, e o parafuso girava ligeiro; ou se como pinças, que o pegassem pelas pernas e lá estavam elas.
No entanto, como antes se deu a entender, aquele carpinteiro abre-e-fecha, multitarefa, não era mero mecanismo de um autômato. Se não tinha uma alma comum, tinha algo sutil que, de forma talvez anômala, cumpria seu dever. O que era, se essência de mercúrio, ou umas poucas gotas de amoníaco, não se sabe bem. Mas ali estava; e ali ele vivia há uns sessenta anos, se não mais. E era isso seu princípio vital, inexplicável e engenhoso; era isso que o fazia falar sozinho a maior parte do tempo; mas apenas como uma roda irracional que ao zunir fala sozinha; ou antes seu corpo era uma guarita e ele ali mantinha guarda, falando o tempo todo para se manter acordado.
Herman Melville, in Moby Dick

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