Moça com brinco de pérola (1665), de Johannes Vermeer
Nunca
quis receber adiantamento, isso que no métier literário se chama
advance. Mas recebi para escrever um conto.
Escrever
é uma coisa simples e fácil, é usar sinais (letras, palavras etc.)
para exprimir uma ideia, um conhecimento, uma informação, uma
opinião, um plano.
Mas
neste momento, e já há algum tempo, não tenho nenhuma ideia para
escrever algo fictício. E já gastei o adiantamento. Mulheres, ah,
as mulheres. Não foi com putas que eu gastei o dinheiro (era uma boa
bolada), eu não gosto de puta, nunca fui para a cama com uma puta.
Gastei o dinheiro com uma mulher séria. Mas estou chegando à
conclusão de que foder puta fica mais barato do que foder mulher
séria. E que diabo é mulher séria? Sou mesmo um escritor de merda,
nem sei definir os personagens, reais ou fictícios, dos meus textos.
Mulher séria é a mulher que não vai para a cama com estranhos.
Definição apenas razoável, mas não vou perder tempo com
preocupações dicionaristas, tenho que escrever uma peça de ficção.
E na verdade ando meio confuso, às vezes não sei se estou numa
quarta ou numa quinta-feira.
Eu
podia escrever qualquer porcaria, por exemplo, a história de um
homem casado que se apaixona por uma mulher casada. O problema é que
sou um escritor com certo prestígio, não posso decepcionar os meus
leitores. Nem quero decepcionar o meu editor, e por editor me refiro
à pessoa que faz a edição, uma mulher muito competente; quanto ao
dono da editora, eu quero que ele se foda.
Já
fumei um charuto, tomei dois uísques puros e bati com a cabeça na
parede. Quando fico nervoso eu bato com a cabeça na parede. Minha
mãe disse que eu comecei a fazer isso quando tinha 12 anos. É bom,
me faz bem. Eu ponho uma toalha na parede e bato com a cabeça na
toalha.
Quando
bati com a cabeça na parede pensei: por que não escrever a história
de um homem casado apaixonado por uma mulher casada? Puta merda,
estou ficando maluco? Esta é a MINHA história. Eu sou casado, e a
mulher por quem estou apaixonado também é casada. Sim, foi com ela
que eu gastei o advance. Comprei uma joia, mulheres adoram joias, uns
brincos de diamantes. E os maridos não sabem quais joias as mulheres
têm. Brincos? Nós nem olhamos os brincos que elas estão usando.
Então
entrou na minha cabeça uma dúvida perturbadora. Eu olho os brincos
que a minha mulher está usando? Será que a minha mulher tem um
amante?
Bati
com a cabeça na parede. Mas não adiantou muito.
Mulheres
e homens casados terem amantes é muito comum hoje em dia.
Antigamente quem tinha amantes era o homem, a mulher ficava tomando
conta da casa e fazendo tricô. Mas hoje a coisa está dividida.
Eu
tenho uma unha do pé encravada. Minha podóloga, que fala sem parar,
igual aos barbeiros, uma coisa insuportável, disse que unha
encravada pode resultar de inúmeros fatores, mas sapatos inadequados
e unhas não cortadas corretamente são as causas mais comuns. E que
esse é o meu caso, eu uso sapatos impróprios para os meus pés.
Mas
a parte importante e demorada da sua conversa não foi sobre unha
encravada.
“O
senhor é casado?”
“Não,
sou solteiro.”
“Aqui
vêm muitas mulheres casadas fazer as unhas, além de podóloga eu
sou manicure, e elas, essas clientes, ficam falando no celular
segurando o aparelho com a mão que não está sendo manicurada, e eu
ouço as fofocas que fazem com as amigas. Ignoram a minha presença,
isso é muito comum entre as grã-finas ricas: empregadas e outros
seres inferiores são invisíveis para elas. Mas elas só falam dos
namorados. É assim que elas chamam os amantes. Eu estou namorando o
Gabriel, fulana está namorado sicrano etc. Ainda bem que o senhor
não é casado, se fosse sua mulher estaria namorado um sujeito e
você não saberia de nada. É o meu caso, prefiro não casar a ser
corneada.”
Minha
podóloga é gorda, feia e tem um buço que ela remove com cera
quente, mas fica sempre um resquício, um leve fragmento. Deve ser
difícil para ela arranjar um namorado.
Saí
da podóloga com a pulga atrás da orelha.
Pulga
atrás da orelha: eu jamais usaria essa expressão idiota para falar
de uma suspeição sem fundamento, uma conjectura paranoica. Não sei
por que veio à minha mente a linda pintura de Vermeer, Moça com
brinco de pérola, que tive o prazer de contemplar encantado
quando estive em Haia. A minha mulher tinha um brinco de pérola, mas
me disse que a pérola era falsa.
Quando
fiquei sozinho em casa fui ver as joias nas gavetas da Miriam —
esse é o nome da minha mulher — e fiquei bobo com a quantidade de
adornos que encontrei. Caixas e mais caixas com brincos, colares,
pulseiras, anéis, nem sei os nomes de todas aquelas coisas. O brinco
de pérola estava numa caixa preta, que eu coloquei no bolso, e saí
rapidamente.
Fui
ao joalheiro.
Esse
brinco é de pérola verdadeira?
Ele
colocou uma espécie de monóculo duplo no olho. Depois de examinar a
pérola disse:
“Não
é uma pérola, é um enfeite fingindo ser pérola.”
Perguntei
se devia alguma coisa pela consulta, eu estava tão feliz que pagaria
o que ele quisesse. Ele disse que não. Agradeci apertando a mão
dele com força.
Chegando
em casa guardei a caixa na gaveta da Miriam.
Ela
demorou a chegar. Era comum Miriam passar as tardes inteiras fora de
casa, visitando lojas. Eu já estava acostumado com isso.
Quando
Miriam entrou em casa eu notei que ela estava com um brinco de
pérola.
“Você
tem dois brincos de pérola?”
“Um
só. Puro enfeite”, disse ela.
A
orelha de Miriam parecia a da garota de Vermeer.
Fui
na gaveta do quarto da Miriam e peguei a caixa com o brinco falso.
“E
esse aqui?”
Miriam
empalideceu.
“Não
sei o que é isso...”, balbuciou.
Agarrei
Miriam pelas orelhas e arranquei os brincos. Aquelas pérolas eram
legítimas, qualquer pessoa perceberia.
As
orelhas de Miriam sangravam. Coloquei as duas mãos em volta do seu
pescoço e apertei.
“Você
saía todas as tardes, ia encontrar seu amante...”
Miriam
caiu no chão. Vi pela sua cara que ela estava morta.
Fiquei
pensando como descreveria o que ocorrera. Decidi bater com a cabeça
na parede. Bati. Miriam morrera por asfixia, um fenômeno causado
pelo impedimento da passagem do ar pelas vias respiratórias,
resultando em uma alteração bioquímica do sangue, inibindo a
hematose — transformação do sangue venoso em sangue arterial —,
o que pode levar o indivíduo à morte.
Esta
frase está uma merda. Para que esses detalhes? Por que não dizer
simplesmente: Miriam morrera estrangulada?
Bati
novamente com a cabeça na parede.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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