quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Nossa gente é boa gente; uma gente de coração

Em Hooverville os homens conversavam:
Meu avô tomou a terra dos índios.
Não, isso não tá direito. A gente só está aqui de conversa. Fazer o que ocê diz é o mesmo que roubar. Eu não sou nenhum ladrão.
Não? Quem foi que roubou uma garrafa de leite da porta de uma casa, inda anteontem de noite? E quem foi que roubou aquele fio de cobre pra vender ele por um pedacinho de carne?
Bom, mas isso foi porque as crianças tavam passando fome.
Mas não deixou de ser um roubo.
Cê sabe como apareceu a fazenda Fairfield? Vou te dizer. As terras pertenciam ao governo e podiam ser cultivadas. Bom, um dia o velho Fairfield foi a San Francisco, andou pelos cafés e bares e ajuntou trezentos bêbados que andavam por ali vagabundeando. E esses bêbados ocuparam as terras. O Fairfield deu a eles comida e uísque, e quando eles tinham tomado conta das terras, o velho tomou tudo pra ele sozinho. O velho sempre dizia que cada hectare de terra da fazenda dele não lhe custou mais que uma garrafa de bebida. Que é que ocê acha, isso não foi roubo?
Não foi direito, isso não foi mesmo, mas ele não pegou cadeia por causa do que fez?
Não, e nem vai pegar nunca. E também aquele sujeito que botou uma canoa no carro e fez o seu relatório como se tudo tivesse alagado pela água, pois que ele ia de canoa — esse também não pegou cadeia. E também aqueles camaradas que ajeitaram os deputados e senadores também não pegaram cadeia.
Por todo o estado, em todas as Hoovervilles, impera a tagarelice.
Depois, as batidas policiais — grupos de agentes uniformizados invadindo os acampamentos:
Vão caindo fora! Ordem da Saúde Pública. O acampamento é perigoso para a saúde coletiva.
Mas aonde nós vamos?
Nós é que não temos nada com isso. Recebemos ordens de evacuar o acampamento. Dentro de meia hora vamos botar fogo em tudo que tiver aqui. Tem tifo ali embaixo. Vocês querem provocar uma epidemia?
Temos ordem pra limpar o acampamento. Bom, vão saindo. Daqui a pouco tá tudo que nem uma fogueira.
Em meia hora, a fumaça das casas de papelão serpeava rumo ao céu, e o pessoal expulso, nos respectivos calhambeques, inundava as estradas, à cata de outra Hooverville.
Em Kansas e no Arkansas, no Texas e no Novo México, os tratores vinham e expulsavam os meeiros da terras.
Trezentos mil na Califórnia, e mais para vir. Na Califórnia, as estradas estão cheias de gente alucinada que corre qual formiga à procura de algo para puxar, para suspender, para cortar, para trabalhar enfim. Para cada carga a ser erguida, cinco braços se estendiam; para receber cada punhado de comida, cinco bocas famintas se escancaravam.
Os grandes proprietários, que têm que perder suas terras na primeira rebelião, os grandes proprietários que têm acesso à história, têm olhos para ler a história, deviam saber do grande fato: a propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada a ser espoliada. E do fato complementar também: quando uma maioria passa fome e frio, tomará à força aquilo de que necessita. E também o fato gritante, que ecoa por toda a história: a repressão só conduz ao fortalecimento e à união dos oprimidos. Os grandes proprietários ignoraram os três grandes gritos da história. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos espoliados cresceu, e todos os esforços dos grandes proprietários orientavam-se no sentido da repressão. O dinheiro era gasto em armas e gases para proteção das grandes propriedades; espiões eram enviados com a missão de descobrir insurreições latentes, que precisavam ser abafadas antes que nascessem. A transformação econômica era ignorada, planos para a transformação não eram tomados em consideração; apenas os meios de destruir as revoltas eram levados em conta, enquanto as causas das revoltas permaneciam.
Os tratores que expulsavam os lavradores de seu trabalho, as esteiras rolantes que transportavam as cargas, as máquinas que produziam — tudo isso foi melhorado, e um número cada vez maior de famílias perambulava pelas estradas, à procura de migalhas que caíssem das grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendiam às margens das estradas. Os grandes proprietários formavam associações de proteção e se reuniam para discutir o meio de intimidar, de matar com gases... E se sentiam diante de um pavor permanente: trezentos mil... se um dia esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia as terras lhes pertencerão, e não haverá gás, não haverá quantidade suficiente de
Os homens acocoravam-se no chão, homens de faces angulosas, magros de fome e endurecidos pela resistência que a ela opunham, olhos sombrios e maxilares fortes. E as terras ricas rodeavam-nos.
Cê já ouviu falar daquela criança lá na quarta tenda, embaixo?
Não. Cheguei agora mesmo.
Pois essa criança chorou em sonho e se mexeu muito e o pessoal pensou que tinha vermes. Então deram um purgante a ela, e a coitada morreu. Mas o que a criança tinha mesmo era aquilo que se chama de febre maligna. Apanha-se quando não se tem nada bom pra se comer.
Coitadinha!
Pois é, e os pais dela não puderam nem fazer o enterro. Vai ter que ser enterrada em vala comum.
Puxa, que inferno!
Mãos mergulhavam nos bolsos e puxavam pequenas moedas. Diante da tenda crescia a pilhazinha de níqueis. E a família ali a encontrava, agradecida.
Nossa gente é boa gente; nossa gente é uma gente de coração. Deus queira que algum dia a gente boa não seja toda ela gente pobre. Deus queira que algum dia uma criança tenha o que comer.
E as associações de proprietários sabiam que algum dia cessariam as preces.
Então seria o fim.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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