Em
Hooverville os homens conversavam:
Meu
avô tomou a terra dos índios.
Não,
isso não tá direito. A gente só está aqui de conversa. Fazer o
que ocê diz é o mesmo que roubar. Eu não sou nenhum ladrão.
Não?
Quem foi que roubou uma garrafa de leite da porta de uma casa, inda
anteontem de noite? E quem foi que roubou aquele fio de cobre pra
vender ele por um pedacinho de carne?
Bom,
mas isso foi porque as crianças tavam passando fome.
Mas
não deixou de ser um roubo.
Cê
sabe como apareceu a fazenda Fairfield? Vou te dizer. As terras
pertenciam ao governo e podiam ser cultivadas. Bom, um dia o velho
Fairfield foi a San Francisco, andou pelos cafés e bares e ajuntou
trezentos bêbados que andavam por ali vagabundeando. E esses bêbados
ocuparam as terras. O Fairfield deu a eles comida e uísque, e quando
eles tinham tomado conta das terras, o velho tomou tudo pra ele
sozinho. O velho sempre dizia que cada hectare de terra da fazenda
dele não lhe custou mais que uma garrafa de bebida. Que é que ocê
acha, isso não foi roubo?
Não
foi direito, isso não foi mesmo, mas ele não pegou cadeia por causa
do que fez?
Não,
e nem vai pegar nunca. E também aquele sujeito que botou uma canoa
no carro e fez o seu relatório como se tudo tivesse alagado pela
água, pois que ele ia de canoa — esse também não pegou cadeia. E
também aqueles camaradas que ajeitaram os deputados e senadores
também não pegaram cadeia.
Por
todo o estado, em todas as Hoovervilles, impera a tagarelice.
Depois,
as batidas policiais — grupos de agentes uniformizados invadindo os
acampamentos:
Vão
caindo fora! Ordem da Saúde Pública. O acampamento é perigoso para
a saúde coletiva.
Mas
aonde nós vamos?
Nós
é que não temos nada com isso. Recebemos ordens de evacuar o
acampamento. Dentro de meia hora vamos botar fogo em tudo que tiver
aqui. Tem tifo ali embaixo. Vocês querem provocar uma epidemia?
Temos
ordem pra limpar o acampamento. Bom, vão saindo. Daqui a pouco tá
tudo que nem uma fogueira.
Em
meia hora, a fumaça das casas de papelão serpeava rumo ao céu, e o
pessoal expulso, nos respectivos calhambeques, inundava as estradas,
à cata de outra Hooverville.
Em
Kansas e no Arkansas, no Texas e no Novo México, os tratores vinham
e expulsavam os meeiros da terras.
Trezentos
mil na Califórnia, e mais para vir. Na Califórnia, as estradas
estão cheias de gente alucinada que corre qual formiga à procura de
algo para puxar, para suspender, para cortar, para trabalhar enfim.
Para cada carga a ser erguida, cinco braços se estendiam; para
receber cada punhado de comida, cinco bocas famintas se escancaravam.
Os
grandes proprietários, que têm que perder suas terras na primeira
rebelião, os grandes proprietários que têm acesso à história,
têm olhos para ler a história, deviam saber do grande fato: a
propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada
a ser espoliada. E do fato complementar também: quando uma maioria
passa fome e frio, tomará à força aquilo de que necessita. E
também o fato gritante, que ecoa por toda a história: a repressão
só conduz ao fortalecimento e à união dos oprimidos. Os grandes
proprietários ignoraram os três grandes gritos da história. A
terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos espoliados cresceu,
e todos os esforços dos grandes proprietários orientavam-se no
sentido da repressão. O dinheiro era gasto em armas e gases para
proteção das grandes propriedades; espiões eram enviados com a
missão de descobrir insurreições latentes, que precisavam ser
abafadas antes que nascessem. A transformação econômica era
ignorada, planos para a transformação não eram tomados em
consideração; apenas os meios de destruir as revoltas eram levados
em conta, enquanto as causas das revoltas permaneciam.
Os
tratores que expulsavam os lavradores de seu trabalho, as esteiras
rolantes que transportavam as cargas, as máquinas que produziam —
tudo isso foi melhorado, e um número cada vez maior de famílias
perambulava pelas estradas, à procura de migalhas que caíssem das
grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendiam às
margens das estradas. Os grandes proprietários formavam associações
de proteção e se reuniam para discutir o meio de intimidar, de
matar com gases... E se sentiam diante de um pavor permanente:
trezentos mil... se um dia esses trezentos mil tiverem um chefe, será
o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se algum dia eles
descobrirem a sua própria força, nesse dia as terras lhes
pertencerão, e não haverá gás, não haverá quantidade suficiente
de
Os
homens acocoravam-se no chão, homens de faces angulosas, magros de
fome e endurecidos pela resistência que a ela opunham, olhos
sombrios e maxilares fortes. E as terras ricas rodeavam-nos.
Cê
já ouviu falar daquela criança lá na quarta tenda, embaixo?
Não.
Cheguei agora mesmo.
Pois
essa criança chorou em sonho e se mexeu muito e o pessoal pensou que
tinha vermes. Então deram um purgante a ela, e a coitada morreu. Mas
o que a criança tinha mesmo era aquilo que se chama de febre
maligna. Apanha-se quando não se tem nada bom pra se comer.
Coitadinha!
Pois
é, e os pais dela não puderam nem fazer o enterro. Vai ter que ser
enterrada em vala comum.
Puxa,
que inferno!
Mãos
mergulhavam nos bolsos e puxavam pequenas moedas. Diante da tenda
crescia a pilhazinha de níqueis. E a família ali a encontrava,
agradecida.
Nossa
gente é boa gente; nossa gente é uma gente de coração. Deus
queira que algum dia a gente boa não seja toda ela gente pobre. Deus
queira que algum dia uma criança tenha o que comer.
E
as associações de proprietários sabiam que algum dia cessariam as
preces.
Então
seria o fim.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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