quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Mariam visita Jalil Khan

Algum tempo depois, tomou coragem e perguntou a um homem mais velho, que tinha uma gari puxada a cavalo, onde morava Jalil, o dono do cinema. Era um senhor bochechudo, usando um chapan de listras coloridas.
Você não e de Herat, não é mesmo? — indagou ele com um jeito amistoso. — Todo mundo sabe onde Jalil Khan mora.
Pode me dizer onde e? — insistiu a menina.
Ele pegou um caramelo embrulhado em papel laminado e perguntou:
Está sozinha?
Estou.
Suba aqui. Levo você até lá.
Mas não posso lhe pagar. Estou sem dinheiro.
O velho lhe deu o caramelo e disse que, como não pegava um passageiro ha duas horas, já estava mesmo pensando em voltar para casa. E Jalil morava bem no seu caminho.
Mariam subiu na charrete. Lá se foram eles, em silêncio, um ao lado do outro. Durante o trajeto, Mariam viu lojas de ervas e uns cubículos abertos onde as pessoas compravam laranjas e peras, livros, xales, e até mesmo falcões. Viu crianças jogando bolas de gude em círculos traçados no chão de terra. Diante das casas de chá, em estrados de madeira atapetados, viu homens tomando seu chá e fumando com narguilés.
O charreteiro dobrou uma esquina e parou o veículo mais ou menos na metade de uma rua margeada de coníferas.
Chegamos. Parece que você deu sorte, dokhtar jo. O carro dele está aí. Mariam pulou do veículo. O velho lhe sorriu e foi embora.
Mariam nunca tinha posto a mão num carro antes. Passou os dedos pela capota do automóvel de Jalil, que era preto, reluzente, com rodas brilhantes onde, lisonjeada, viu refletida uma versão ampliada de si mesma. Os bancos eram estofados de couro branco. Por trás do volante, dava para ver uns mostradores redondos de vidro com ponteiros.
Por um instante, ouviu a voz de Nana soando em seus ouvidos, debochando, extinguindo a luz persistente das suas esperanças. Com as pernas bambas, aproximou-se da porta da frente. Apoiou as mãos no muro. Como eram altos, como eram assustadores os muros da casa de Jalil... Tinha de inclinar a cabeça bem para trás para conseguir enxergar as pontas dos ciprestes que se erguiam do outro lado. As árvores oscilavam ao vento e a menina imaginou que estariam acenando com a cabeça, para lhe dar as boas-vindas. Com isso, acabou se acalmando, apesar das ondas de desânimo que a percorriam. Uma moça descalça veio abrir o portão. Tinha uma tatuagem sob o lábio inferior.
Vim ver Jalil Khan. O meu nome é Mariam. Sou filha dele.
Por um instante, um ar de surpresa se estampou no rosto da moça, e, depois, um lampejo de reconhecimento. Os seus lábios esboçavam, agora, um sorriso e havia ali um quê de curiosidade, de expectativa. Espere um pouco — disse a moça, apressada. E fechou o portão.
Alguns minutos se passaram até que um homem voltou a abri-lo. Era um sujeito alto, de ombros largos, com olhos sonolentos e um rosto tranquilo. Sou o chofer de Jalil Khan — disse ele, com delicadeza.
O quê?
O motorista dele. Jalil Khan não está em casa.
Mas eu vi o carro — retrucou Mariam.
O patrão teve de sair para resolver um negócio urgente.
E quando vai voltar?
Ele não disse.
Mariam afirmou que ficaria esperando. O homem fechou o portão. A menina se sentou no chão, apertando os joelhos contra o peito. Já era de tarde e ela estava ficando com fome. Comeu o caramelo que o condutor da gari tinha lhe dado. Pouco depois, o motorista apareceu novamente.
Você tem de ir para casa agora — disse ele. — Em menos de uma hora vai começar a escurecer.
Estou acostumada com a escuridão.
Vai esfriar também. Por que não deixa que eu a leve para casa? Digo a ele que esteve aqui.
Mariam limitou-se a fitá-lo.
Vou levá-la então para um hotel. Lá você pode dormir com conforto. Amanhã de manhã, veremos o que podemos fazer.
Deixe-me entrar na casa.
Recebi instruções para não fazer isso. Olhe, ninguém sabe ao certo quando ele volta. Pode levar dias.
Mariam cruzou os braços.
O motorista suspirou e a fitou brandamente, mas com um ar de reprovação.
Ao longo dos anos, Mariam teve tempo de sobra para pensar no que poderia ter acontecido se houvesse deixado o motorista levá-la de volta para a kolba. Mas não deixou. Passou a noite diante da casa de Jalil. Viu o céu ir escurecendo, as sombras engolirem as casas do outro lado da rua. A garota tatuada lhe trouxe pão e um prato de arroz, mas Mariam recusou. A garota pôs a comida ao seu lado. De quando em quando, Mariam ouvia passos na rua, portas se abrindo, saudações abafadas. Acenderam-se luzes e janelas adquiriram um brilho esmaecido. Cães latiam. Quando não conseguiu mais resistir à fome, comeu o arroz todo e o pão também. Depois, ouviu os grilos nos jardins. La no alto, nuvens passavam diante de uma lua pálida.
Pela manhã, alguém veio acordá-la. Mariam percebeu que, durante a noite, tinham lhe trazido um cobertor.
Era o motorista que a sacudia pelo ombro.
Agora chega. Você já fez a sua cena. Bas. É hora de ir embora. Mariam se sentou esfregando os olhos. Tinha as costas e o pescoço doloridos.
Vou esperar por ele — disse.
Ouça bem — retrucou o homem —, Jalil Khan mandou que eu a levasse de volta. Agora mesmo, entendeu? Foi Jalil Khan que mandou.
Abriu a porta traseira do carro.
Bia. Venha — disse em tom delicado.
Quero vê-lo — exclamou Mariam, com os olhos marejados de lágrimas.
O motorista suspirou.
Deixe que eu a leve para casa. Vamos, dokhtar jo...
Mariam se levantou e foi se dirigindo para o carro. De repente, no último momento, mudou de rumo e saiu correndo para a entrada do jardim. Sentiu a mão do homem tentando segurá-la pelo ombro. Conseguiu, porém, se desvencilhar e passou pelo portão aberto.
Durante aquele punhado de segundos em que esteve no jardim de Jalil, Mariam avistou uma estrutura de vidro reluzente, cheia de plantas, com trepadeiras subindo por treliças de madeira, um laguinho de peixes feito de lajotas de pedra cinzenta, árvores frutíferas e arbustos de flores coloridas por todo lado. O seu olhar passeou por tudo isso antes de vislumbrar um rosto, do outro lado do jardim, numa das janelas do andar de cima. Foi apenas um relance, pois o rosto ficou ali por um instante, mas foi o suficiente. O suficiente para ela ver os olhos arregalados, a boca aberta. Depois, aquela visão desapareceu. Alguém puxou um cordão às pressas. As cortinas se fecharam.
Foi então que duas mãos a seguraram pelas axilas erguendo-a do chão. Mariam esperneou. As pedrinhas caíram de seu bolso. Ela continuou esperneando e gritando enquanto era levada até o carro e depositada no couro frio do banco de trás.
Durante todo o trajeto, o motorista foi conversando com ela, num tom que tentava ser reconfortante. Mariam, porém, não o ouvia: encolhida no banco de trás, só fazia chorar. Eram lágrimas de tristeza, de raiva, de desilusão. Mas, principalmente, lágrimas da mais profunda vergonha por ter sido tão boba, por ter confiado em Jalil, por ter se preocupado tanto com a roupa que deveria usar, com o fato de seu hijab não estar combinando com o vestido, por ter ido até lá, por ter se recusado a voltar para casa e dormido na rua, como um cachorro sem dono. Tinha vergonha também porque desconsiderou o jeito aflito de sua mãe e os seus olhos inchados. Nana, que tentou avisá-la, que tinha razão desde o começo…
Khaled Hossein, in A cidade do Sol

Nenhum comentário:

Postar um comentário