Algum
tempo depois, tomou coragem e perguntou a um homem mais velho, que
tinha uma gari puxada a cavalo, onde morava Jalil, o dono do
cinema. Era um senhor bochechudo, usando um chapan de listras
coloridas.
— Você
não e de Herat, não é mesmo? — indagou ele com um jeito
amistoso. — Todo mundo sabe onde Jalil Khan mora.
— Pode
me dizer onde e? — insistiu a menina.
Ele
pegou um caramelo embrulhado em papel laminado e perguntou:
— Está
sozinha?
— Estou.
— Suba
aqui. Levo você até lá.
— Mas
não posso lhe pagar. Estou sem dinheiro.
O
velho lhe deu o caramelo e disse que, como não pegava um passageiro
ha duas horas, já estava mesmo pensando em voltar para casa. E Jalil
morava bem no seu caminho.
Mariam
subiu na charrete. Lá se foram eles, em silêncio, um ao lado do
outro. Durante o trajeto, Mariam viu lojas de ervas e uns cubículos
abertos onde as pessoas compravam laranjas e peras, livros, xales, e
até mesmo falcões. Viu crianças jogando bolas de gude em círculos
traçados no chão de terra. Diante das casas de chá, em estrados de
madeira atapetados, viu homens tomando seu chá e fumando com
narguilés.
O
charreteiro dobrou uma esquina e parou o veículo mais ou menos na
metade de uma rua margeada de coníferas.
— Chegamos.
Parece que você deu sorte, dokhtar jo. O carro dele está aí.
Mariam pulou do veículo. O velho lhe sorriu e foi embora.
Mariam
nunca tinha posto a mão num carro antes. Passou os dedos pela capota
do automóvel de Jalil, que era preto, reluzente, com rodas
brilhantes onde, lisonjeada, viu refletida uma versão ampliada de si
mesma. Os bancos eram estofados de couro branco. Por trás do
volante, dava para ver uns mostradores redondos de vidro com
ponteiros.
Por
um instante, ouviu a voz de Nana soando em seus ouvidos, debochando,
extinguindo a luz persistente das suas esperanças. Com as pernas
bambas, aproximou-se da porta da frente. Apoiou as mãos no muro.
Como eram altos, como eram assustadores os muros da casa de Jalil...
Tinha de inclinar a cabeça bem para trás para conseguir enxergar as
pontas dos ciprestes que se erguiam do outro lado. As árvores
oscilavam ao vento e a menina imaginou que estariam acenando com a
cabeça, para lhe dar as boas-vindas. Com isso, acabou se acalmando,
apesar das ondas de desânimo que a percorriam. Uma moça descalça
veio abrir o portão. Tinha uma tatuagem sob o lábio inferior.
— Vim
ver Jalil Khan. O meu nome é Mariam. Sou filha dele.
Por
um instante, um ar de surpresa se estampou no rosto da moça, e,
depois, um lampejo de reconhecimento. Os seus lábios esboçavam,
agora, um sorriso e havia ali um quê de curiosidade, de expectativa.
Espere um pouco — disse a moça, apressada. E fechou o portão.
Alguns
minutos se passaram até que um homem voltou a abri-lo. Era um
sujeito alto, de ombros largos, com olhos sonolentos e um rosto
tranquilo. Sou o chofer de Jalil Khan — disse ele, com delicadeza.
— O
quê?
— O
motorista dele. Jalil Khan não está em casa.
— Mas
eu vi o carro — retrucou Mariam.
— O
patrão teve de sair para resolver um negócio urgente.
— E
quando vai voltar?
— Ele
não disse.
Mariam
afirmou que ficaria esperando. O homem fechou o portão. A menina se
sentou no chão, apertando os joelhos contra o peito. Já era de
tarde e ela estava ficando com fome. Comeu o caramelo que o condutor
da gari tinha lhe dado. Pouco depois, o motorista apareceu
novamente.
— Você
tem de ir para casa agora — disse ele. — Em menos de uma hora vai
começar a escurecer.
— Estou
acostumada com a escuridão.
— Vai
esfriar também. Por que não deixa que eu a leve para casa? Digo a
ele que esteve aqui.
Mariam
limitou-se a fitá-lo.
— Vou
levá-la então para um hotel. Lá você pode dormir com conforto.
Amanhã de manhã, veremos o que podemos fazer.
— Deixe-me
entrar na casa.
— Recebi
instruções para não fazer isso. Olhe, ninguém sabe ao certo
quando ele volta. Pode levar dias.
Mariam
cruzou os braços.
O
motorista suspirou e a fitou brandamente, mas com um ar de
reprovação.
Ao
longo dos anos, Mariam teve tempo de sobra para pensar no que poderia
ter acontecido se houvesse deixado o motorista levá-la de volta para
a kolba. Mas não deixou. Passou a noite diante da casa de
Jalil. Viu o céu ir escurecendo, as sombras engolirem as casas do
outro lado da rua. A garota tatuada lhe trouxe pão e um prato de
arroz, mas Mariam recusou. A garota pôs a comida ao seu lado. De
quando em quando, Mariam ouvia passos na rua, portas se abrindo,
saudações abafadas. Acenderam-se luzes e janelas adquiriram um
brilho esmaecido. Cães latiam. Quando não conseguiu mais resistir à
fome, comeu o arroz todo e o pão também. Depois, ouviu os grilos
nos jardins. La no alto, nuvens passavam diante de uma lua pálida.
Pela
manhã, alguém veio acordá-la. Mariam percebeu que, durante a
noite, tinham lhe trazido um cobertor.
Era
o motorista que a sacudia pelo ombro.
— Agora
chega. Você já fez a sua cena. Bas. É hora de ir embora.
Mariam se sentou esfregando os olhos. Tinha as costas e o pescoço
doloridos.
— Vou
esperar por ele — disse.
— Ouça
bem — retrucou o homem —, Jalil Khan mandou que eu a levasse de
volta. Agora mesmo, entendeu? Foi Jalil Khan que mandou.
Abriu
a porta traseira do carro.
— Bia.
Venha — disse em tom delicado.
— Quero
vê-lo — exclamou Mariam, com os olhos marejados de lágrimas.
O
motorista suspirou.
— Deixe
que eu a leve para casa. Vamos, dokhtar jo...
Mariam
se levantou e foi se dirigindo para o carro. De repente, no último
momento, mudou de rumo e saiu correndo para a entrada do jardim.
Sentiu a mão do homem tentando segurá-la pelo ombro. Conseguiu,
porém, se desvencilhar e passou pelo portão aberto.
Durante
aquele punhado de segundos em que esteve no jardim de Jalil, Mariam
avistou uma estrutura de vidro reluzente, cheia de plantas, com
trepadeiras subindo por treliças de madeira, um laguinho de peixes
feito de lajotas de pedra cinzenta, árvores frutíferas e arbustos
de flores coloridas por todo lado. O seu olhar passeou por tudo isso
antes de vislumbrar um rosto, do outro lado do jardim, numa das
janelas do andar de cima. Foi apenas um relance, pois o rosto ficou
ali por um instante, mas foi o suficiente. O suficiente para ela ver
os olhos arregalados, a boca aberta. Depois, aquela visão
desapareceu. Alguém puxou um cordão às pressas. As cortinas se
fecharam.
Foi
então que duas mãos a seguraram pelas axilas erguendo-a do chão.
Mariam esperneou. As pedrinhas caíram de seu bolso. Ela continuou
esperneando e gritando enquanto era levada até o carro e depositada
no couro frio do banco de trás.
Durante
todo o trajeto, o motorista foi conversando com ela, num tom que
tentava ser reconfortante. Mariam, porém, não o ouvia: encolhida no
banco de trás, só fazia chorar. Eram lágrimas de tristeza, de
raiva, de desilusão. Mas, principalmente, lágrimas da mais profunda
vergonha por ter sido tão boba, por ter confiado em Jalil, por ter
se preocupado tanto com a roupa que deveria usar, com o fato de seu
hijab não estar combinando com o vestido, por ter ido até
lá, por ter se recusado a voltar para casa e dormido na rua, como um
cachorro sem dono. Tinha vergonha também porque desconsiderou o
jeito aflito de sua mãe e os seus olhos inchados. Nana, que tentou
avisá-la, que tinha razão desde o começo…
Khaled
Hossein, in A cidade do Sol
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